Simone de Beauvoir
31. Fatos e Mitos
Segunda Parte
História
CAPITULO I
V
" faz da mulher casada uma morta cívica "
AS MULHERES NORTE-AMERICANAS encontram-se, a princípio, mais emancipadas que as europeias. No início do século XIX, essas mulheres viram-se obrigadas a tomar parte no duro trabalho de pioneiro executado pelos homens; lutaram ao lado deles. Eram muito menos numerosas do que eles e em consequência valorizaram-se muitíssimo. Mas, pouco a pouco, sua condição aproximou-se da das mulheres do Velho Mundo. Conservou-se a galanteria com que as tratavam. E elas conservaram também certos privilégios culturais e uma posição dominante dentro da família; as leis concediam-lhes benevolamente um papel religioso e moral; mas as rédeas da sociedade continuavam, contudo, nas mãos dos homens. Algumas começaram, por volta de 1830, a reivindicar direitos políticos. Empreenderam igualmente uma campanha a favor dos negros. Tendo-lhe sido vedado participar do congresso antiescravista de Londres, em 1840, a quacre Lucretia Mott fundou uma associação feminista. Numa reunião realizada em 1840 em Seneca Falls redigiram elas um manifesto de inspiração quacre e que deu o tom a todo o feminismo norte-americano. "O homem e a mulher foram criados iguais e providos pelo Criador de direitos inalienáveis... O governo é feito tão-somente para salvaguardar esses direitos... O homem faz da mulher casada uma morta cívica. . . Usurpa as prerrogativas de Jeová que é o único a designar aos homens sua esfera de ação." Três anos depois, Mme Beecher-Stowe escreve A Cabana, do Pai Tomás que subleva a opinião pública a favor dos negros. Emmerson e Lincoln apoiam o movimento feminista. Quando rebenta a Guerra da Secessão as mulheres dela participam com ardor: mas em vão solicitam que a emenda que outorga o direito de voto aos negros assim se redija: "Nem cor nem sexo. . . constituem obstáculo ao direito eleitoral". Entretanto, ante a ambiguidade de um dos artigos da emenda, Miss Anthony, grande líder feminista, vale-se do pretexto para votar em Rochester, juntamente com quatorze companheiras. Foi condenada a cem dólares de multa. Em 1869, funda ela a Associação Nacional para o Sufrágio das mulheres e nesse mesmo ano o Estado de Wyoming concede o direito de voto às mulheres. Mas é somente em 1893 que o Colorado e, em seguida, em 1896, Idaho e Utah seguem o exemplo. A partir de então os progressos são muito lentos. Mas no terreno econômico as mulheres alcançam maior êxito do que na Europa. Há, em 1900 nos Estados Unidos, 5 milhões de mulheres trabalhando, das quais 1 300 000 na indústria, 500 mil no comércio; bom número delas encontra-se nas empresas comerciais e industriais, nos negócios e nas profissões liberais. Há advogadas, médicas e 3 373 mulheres-pastores. A famosa Mary Baker Eddy funda a Christian Scientist Church. As mulheres habituam-se a reunir-se em clubes, os quais em 1900, agregam cerca de dois milhões de membros.
Entretanto, somente nove Estados deram às mulheres direito de voto. Em 1913, o movimento sufragista organiza-se nos moldes do movimento militante inglês. Dirigem-no duas mulheres: Miss Stevens e uma jovem quacre, Alice Paul. Obtêm de Wilson autorização para desfilar num grande cortejo com flâmulas e insígnias; organizam, em seguida, uma campanha de conferências, comícios, desfiles e manifestações de toda espécie. Dos nove Estados em que o voto feminino é admitido, as eleitoras dirigem-se com grande solenidade ao Capitólio, reclamando o sufrágio feminino para toda a nação. Em Chicago vê-se pela primeira vez as mulheres se unirem a fim de libertar seu sexo: a assembleia transforma-se no "Partido das Mulheres". Em 1917, as sufragistas inventam uma nova tática: instalam-se de plantão às portas da Casa Branca, brandindo flâmulas, e muitas vezes acorrentadas às grades para que não as possam expulsar. No fim de seis meses prendem-nas e enviam-nas à penitenciária de Oxcaqua; elas fazem a greve da fome e acabam sendo soltas. Novos desfiles acarretam arruaças. O governo consente, afinal, em nomear uma Comissão de sufrágio na Câmara. A Comissão Executiva do Partido das Mulheres participa de uma conferência em Washington; em consequência, a emenda a favor do voto feminino é apresentada e aprovada pela Câmara a 10 de janeiro de 1918. Resta conseguir o voto do Senado. Não tendo Wilson prometido exercer uma pressão suficiente, as sufragistas recomeçam a manifestar; realizam um comício às portas da Casa Branca. O presidente resolve dirigir um apelo ao Senado, mas a emenda é rejeitada por uma maioria de dois votos. É um Congresso republicano que aprova a emenda em junho de 1919. A luta pela completa igualdade dos sexos prossegue, em seguida, durante dez anos. Na sétima conferência das repúblicas americanas realizada em Havana, em 1928, as mulheres obtêm a criação de uma Comissão Interamericana das Mulheres. Em 1933, os tratados de Montevidéu melhoram a condição da mulher mediante uma convenção internacional. Dezenove repúblicas americanas assinam essa convenção que concede às mulheres a igualdade de todos os direitos.
Na Suécia existe também um movimento feminista muito importante. Em nome das velhas tradições, as suecas reivindicam o direito "à instrução, ao trabalho, à liberdade". São principalmente as letradas que dirigem a luta e é o aspecto moral do problema que as interessa primeiramente; mais tarde, reunidas em associações poderosas, elas conquistam os liberais, mas chocam-se contra os conservadores. As norueguesas, em 1907, e as finlandesas, em 1906, obtêm o sufrágio que as suecas ainda têm de esperar durante muitos anos.
Os países latinos, como os países orientais, oprimem a mulher pelo rigor dos costumes mais do que pelo rigor das leis. Na Itália, o fascismo freou sistematicamente a evolução do feminismo. Procurando a aliança da Igreja, respeitando a família e prolongando uma tradição de escravidão feminina, a Itália fascista escravizou duplamente a mulher: aos poderes públicos e ao marido. A situação foi muito diferente na Alemanha. Em 1790, lançara o estudante Hippel o primeiro manifesto do feminismo alemão. No início do século XIX florescera um feminismo sentimental, análogo ao de George Sand. Em 1848, a primeira feminista alemã, Louise Otto, reclamava para as mulheres o direito de ajudar a transformar o país: seu feminismo era essencialmente nacionalista. Ela fundava em 1865 a Associação Geral das Mulheres Alemãs. Entrementes, os socialistas alemães reclamam, com Bebel, a abolição da desigualdade dos sexos. Clara Zetkin entra, em 1892, para os conselhos do Partido. Surgem associações operárias femininas e uniões de mulheres socialistas agrupadas em uma Federação. As alemãs malogram em 1914 na tentativa de criar um exército nacional das mulheres, mas participam com ardor do esforço de guerra. Depois da derrota alemã, obtêm o direito de voto e tomam parte na vida política: Rosa Luxemburgo luta dentro do grupo Spartacus ao lado de Liebknecht e morre assassinada em 1919. A maioria das alemãs pronuncia-se pelo partido da ordem; muitas delas têm assento no Reichstag. É, portanto, a mulheres emancipadas que Hitler impõe de novo o ideal de Napoleão: Küche, Kirche, Kinder; "A presença de uma mulher desonraria o Reichstag", declarou ele. Como o nazismo era anticatólico e antiburguês, deu à mãe um lugar privilegiado; a proteção outorgada às mães solteiras e aos filhos naturais libertou, em grande parte, a mulher do casamento; como em Esparta, ela dependia do Estado muito mais do que de qualquer indivíduo, o que lhe dava ao mesmo tempo maior e menor autonomia do que a uma burguesa vivendo em regime capitalista.
Foi na Rússia que o movimento feminista teve mais amplitude. Ele se esboçara em fins do século XIX, entre as estudantes da intelligentzia; estas interessam-se menos pela sua causa pessoal do que pela ação revolucionária em geral; vão "ao povo", lutam contra o Okrena com métodos niilistas: Vera Zessulitch liquida, em 1878, o chefe de polícia Trepov. Durante a guerra russo-japonesa, as mulheres substituem os homens em muitos ofícios; tomam consciências de si mesmas e a União Russa pelos Direitos da Mulher reivindica a igualdade política dos sexos; cria-se no seio da primeira Duma um grupo parlamentar dos direitos da mulher, que não tem porém eficiência. É da revolução que virá a emancipação das trabalhadoras. Já em 1905 elas tinham participado das greves políticas de massa deflagradas no pais, tinham-se entrincheirado nas barricadas. Em 1917, alguns dias antes da revolução, por ocasião do Dia Internacional das Mulheres, 8 de março, elas realizam grande manifestação nas ruas de São Petersburgo exigindo pão, paz e retorno dos maridos. Tomam parte na insurreição de outubro; entre 1918 e 1920 desempenham grande papel econômico e até militar na luta contra os invasores. Fiel à tradição marxista, Lênin ligou a emancipação das mulheres à dos trabalhadores; deu-lhes a igualdade política e a igualdade econômica.
O artigo 122 da Constituição de 1936 diz que: "Na U.R.S.S., a mulher goza dos mesmos direitos que o homem em todos os campos da vida econômica, oficial, cultural, pública e política". E esses princípios foram especificados pela Internacional Comunista. Esta reclama: "Igualdade social da mulher e do homem perante a lei e na vida prática. Transformação radical do direito conjugai e do código da família. Reconhecimento da maternidade como função social. Entrega à sociedade do encargo de cuidar da educação das crianças e adolescentes. Luta civilizadora organizada contra a ideologia e as tradições que fazem da mulher uma escrava". No terreno econômico, as conquistas da mulher foram extraordinárias. Obteve a igualdade de salário com os trabalhadores masculinos e participou intensamente da produção; com isso adquiriu uma importância política e social considerável. Na brochura editada recentemente pela associação França-U.R.S.S. informa-se que nas eleições gerais de 1939 havia 457 000 deputados do sexo feminino nos Soviets regionais, de departamentos, de cidades e de aldeias, 1 480 nos Sovietes superiores das repúblicas socialistas, 227 com assento no Soviete Supremo e cerca de 10 milhões de membros de sindicatos. Constituíam as mulheres 40% do contingente dos operários e empregados da U.R.S.S.; entre os stakhanovistas contava-se grande numero de operárias. Conhece-se a contribuição da mulher russa para a última guerra; realizaram enorme trabalho, inclusive nos setores de produção em que predominam as profissões masculinas: metalurgia e minas, indústria da madeira, estradas de ferro etc. Distinguiram-se também como aviadoras, paraquedistas, e organizaram exércitos guerrilheiros.
Essa participação da mulher na vida pública suscitou um problema difícil: o de seu papel na vida familiar. Durante todo um período, procurou-se libertá-la dos deveres domésticos: a 16 de novembro de 1924, a Assembleia Geral do Comintern proclamou que: "A revolução é impotente enquanto subsistem a noção de família e as relações familiares". O respeito votado à livre união, a facilidade dos divórcios, a regulamentação legal do aborto asseguravam a liberdade da mulher perante o homem; leis sociais sobre licenças à parturiente, creches, jardins de infância etc, aliviavam os encargos da maternidade. E difícil, através dos testemunhos apaixonados e contraditórios, deslindar a situação concreta; o certo é que hoje as exigências da repopulação levaram a uma política familiar diferente: a família apresenta-se como a célula social elementar e a mulher é a um tempo trabalhadora e dona de casa (1). A moral sexual
(1) Olga Michakova, secretária da Comissão Central da Organização da Juventude Comunista, declarou em 1944 numa entrevista: "As mulheres soviéticas devem procurar tornar-se tão atraentes quanto o permitem a natureza e o bom gosto. Depois da guerra, elas deverão vestir-se como mulheres e ter uma atitude feminina. .. Dir-se-á às jovens que se conduzam e andem como mulheres e por esse motivo adotarão provavelmente saias muito estreitas que as obrigarão a um modo de andar gracioso".
é das mais estritas; depois da lei de junho de 1936, que a de 7 de junho de 1941 reforçou, o aborto foi proibido, o divórcio quase suprimido; o adultério foi condenado pelos costumes. Estreitamente subordinada ao Estado, como todos os trabalhadores, estreitamente ligada ao lar, mas com acesso à vida política e à dignidade que confere o trabalho produtor, a mulher russa encontra-se numa condição singular que seria útil estudar de muito perto em sua singularidade; infelizmente, as circunstâncias me impedem.
Na sessão que acaba de se realizar na O.N.U., a comissão para a condição da mulher sugeriu que a igualdade de direitos dos dois sexos fosse reconhecida por todas as nações e aprovou várias moções tendentes a fazer desse estatuto legal uma realidade concreta. Parece, pois, que a partida está ganha. O futuro não pode conduzir senão a uma assimilação sempre mais profunda da mulher à sociedade outrora masculina.
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 25. Fatos e Mitos: Ei-lo, eis o verdadeiro mártir!
O Segundo Sexo - 26. Fatos e Mitos: muitas vezes, ela esgota-se na luta
O Segundo Sexo - 27. Fatos e Mitos: a mulher... volta a ser duramente escravizada
O Segundo Sexo - 28. Fatos e Mitos: dava preferência às mulheres casadas...
O Segundo Sexo - 29. Fatos e Mitos: a vida era então uma série ininterrupta de partos
O Segundo Sexo - 30. Fatos e Mitos: e o direito de voto é concedido
O Segundo Sexo - 26. Fatos e Mitos: muitas vezes, ela esgota-se na luta
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O Segundo Sexo - 29. Fatos e Mitos: a vida era então uma série ininterrupta de partos
O Segundo Sexo - 30. Fatos e Mitos: e o direito de voto é concedido
O Segundo Sexo - 32. Fatos e Mitos: "Com saias, que quer que se faça?"
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