Simone de Beauvoir
28. Fatos e Mitos
Segunda Parte
História
CAPITULO I
V
"dava preferência às mulheres casadas... "
EM SEU CONJUNTO, o movimento reformista que se desenvolve no século XIX é favorável ao feminismo, pelo fato de buscar a justiça na igualdade. Há uma exceção notável: Proudhon. Sem dúvida por causa de suas raízes camponesas reage violentamente contra o misticismo saint-simoniano; permanece partidário da pequena propriedade e com isso limita a mulher ao lar. "Dona de casa ou cortesã", eis o dilema em que a encerra. Até então os ataques contra o feminismo tinham sido dirigidos pelos conservadores que combatiam também, com tenacidade, o socialismo. O Charivari, entre outros, nisso encontrava uma fonte inesgotável de facécias; é Proudhon que rompe a aliança entre os feminismo e o socialismo; protesta contra o banquete das mulheres socialistas presidido por Leroux, fulmina Jeanne Decoin. Na obra intitulada La justice, afirma que a mulher deve permanecer na dependência do homem; só ele vale como indivíduo social; não há no casal uma associação, o que pressuporia a igualdade, mas uma união; a mulher é inferior ao homem, primeiramente porque sua força física atinge apenas dois terços da dele, em seguida porque é intelectual e moralmente inferior a ele na mesma proporção: seu valor é no conjunto de 2x2x2 contra 3x3x3, ou seja 8/27 da do sexo forte. Duas mulheres, Mme Adam e Mme d'Héricourt, tendo-lhe respondido, uma com firmeza, outra com uma exaltação menos feliz, Proudhon retorquiu com a Pomocratie ou la femme dans les temps modernes. Entretanto, como todos os antifeministas, dedica litanias à "verdadeira mulher", escrava e espelho do homem; apesar dessa devoção, teve de reconhecer ele próprio que a vida que lhe impôs não tornou feliz a sua própria mulher: as cartas de Mme Proudhon são apenas uma longa lamentação.
No princípio do século XIX a mulher era explorada mais vergonhosamente ainda do que os trabalhadores do outro sexo. O trabalho em domicílio constituía isso que os ingleses chamam sweating system; apesar de um trabalho contínuo, a operária não ganhava o suficiente para atender às suas necessidades. Jules Simon em L'Ouvrière e até o conservador Leroy-Beaulieu em Le Travail des jemmes au XIX*, publicado em 1873, denunciam abusos odiosos; este último declara que mais de duzentas mil operárias francesas não chegam a ganhar cinquenta cêntimos por dia. Compreende-se que se tenham apressado em emigrar para as manufaturas; aliás, fora destas, muito breve não lhes restarão senão os trabalhos de agulha, a lavanderia e a domesticidade, ofícios todos de escravos e pagos com salários de fome; até a renda, a roupa branca etc. são açambarcadas pela fábrica; em compensação há oferecimentos maciços de emprego nas indústrias do algodão, da lã e da seda; as mulheres são principalmente utilizadas na fiação e na tecelagem. Os patrões muitas vezes as preferem aos homens. "Trabalham melhor e mais barato." Esta fórmula cínica esclarece o drama do trabalho feminino. Porque é pelo trabalho que a mulher conquista sua dignidade de ser humano; mas foi uma conquista singularmente árdua e lenta. Fiação e tecelagem realizam-se em condições higiênicas lamentáveis. "Em Lião, escreve Blanqui, nas manufaturas de passamanaria, as mulheres são obrigadas a trabalhar quase suspensas a correias, servindo-se dos pés e das mãos ao mesmo tempo." Em 1831, as operárias da seda trabalhavam das três horas da manhã até a noite no verão, e no inverno das cinco horas até às onze da noite, ou seja, dezessete horas por dia, "em locais amiúde malsãos e onde não penetram nunca, diz Norbert Truquin, os raios do sol. Metade dessas moças tornam-se tuberculosas antes de terminar seu aprendizado. Quando se queixam, acusam-nas de fazerem fita" (1). Além disso, os empregados abusavam das jovens operárias. "Para conseguir o que queriam valiam-se dos meios mais revoltantes, a necessidade e a fome", diz o autor anônimo de La Vérité sur les événements de Lyon. As mulheres acumulam o trabalho agrícola com o da fábrica. Exploram-nas cinicamente. Marx conta em uma nota do O Capital: "O Sr. E., industrial, disse-me que só empregava mulheres nos seus teares mecânicos, que dava preferência às mulheres casadas e, entre elas, às que tinham família em casa, porque mostravam mais atenção e docilidade do que as celibatárias e trabalhavam até o esgotamento de suas forças, a fim de conseguir os meios indispensáveis à subsistência dos seus. Assim é, acrescenta Marx, que as qualidades inerentes à mulher são deturpadas em seu próprio detrimento, e todos os elementos morais e delicados de sua natureza se transformam em meios de escravizá-la e fazê-la sofrer". Resumindo O Capital e comentando Bebel, G. Derville escreve: "Animal de luxo ou animal de carga, eis o que é, hoje, quase exclusivamente a mulher. Mantida pelo homem quando não trabalha é ainda mantida por ele quando se mata no trabalho". A situação da operária
(1) N. Truquin, Mémoires et aventures d''un prolétaire, cit. segundo E. Dolléans, Histoire du Mouvement Ouvrier, t. I.
era tão lamentável que Sismondi e Blanqui pedem que se proíba o acesso das mulheres às fábricas. A razão disso está em parte no fato de as mulheres não terem sabido, desde o início, organizar-se em sindicatos. As "associações" femininas datam de 1848 e, a princípio, são associações de produção. O movimento progride com extrema lentidão como se vê pelas cifras seguintes:
Em 1905 contam-se 69.405 mulheres num total de 781.392 sindicalizados;
Em 1908 contam-se 88.906 mulheres num total de 957.120 sindicalizados;
Em 1912 contam-se 92.336 mulheres num total de 1.064.413 sindicalizados;
Em 1920 contam-se 239.016 operárias e empregadas sindicalizadas para 1.580.967 trabalhadores e, entre as trabalhadoras agrícolas, somente 36.193 sindicalizadas entre 1.083.957, ou seja, ao todo, 292.000 mulheres sindicalizadas num conjunto de ... 3.076.585 trabalhadores inscritos nos sindicatos. E uma tradição de resignação e de submissão, uma falta de solidariedade e de consciência coletiva que as deixam assim desarmadas diante das novas possibilidades que se abrem para elas.
Resulta dessa atitude que só lenta e tardiamente foi o trabalho feminino regulamentado. É preciso esperar até 1874 para que a lei intervenha; e, apesar das campanhas levadas a efeito durante o Império, só duas disposições referem-se às mulheres; uma delas proíbe às menores o trabalho noturno e exige que se lhes dê descanso nos domingos e dias feriados. Seu dia de trabalho é limitado a doze horas; quanto às mulheres de vinte e um anos, restringem-se a proibir-lhes o trabalho subterrâneo, nas minas e nas pedreiras. A primeira carta de trabalho feminino data de 2 de novembro de 1892; ela proíbe o trabalho noturno e limita o horário da fábrica, mas deixa a porta aberta a todas as fraudes. Em 1900, esse horário é fixado em dez horas; em 1905, o descanso hebdomadário torna-se obrigatório; em 1907, a trabalhadora obtém a livre disposição de seu ganho; em 1909, é assegurada licença remunerada às parturientes; em 1911, os dispositivos de 1892 são revalidados imperativamente; em 1913, regulamentam-se as modalidades concernentes ao descanso das mulheres antes e depois do parto, e proíbem-lhes trabalhos perigosos e excessivos. Pouco a pouco, a legislação social constitui-se e o trabalho feminino cerca-se de garantias de higiene: exigem-se assentos para as vendedoras, sendo proibida a demorada permanência diante dos mostruários exteriores etc. O B. I. T. conseguiu realizar convenções internacionais acerca das condições sanitárias do trabalho feminino, das férias remuneradas a serem concedidas em caso de gravidez etc.
Uma segunda consequência da inércia resignada das trabalhadoras foram os salários com que tiveram de se contentar. Foram propostas várias explicações para o fenômeno — que depende de um conjunto de fatores — de os salários femininos terem sido fixados num nível tão baixo. Não basta dizer que as necessidades das mulheres são menores do que as dos homens; isso é apenas uma justificação posterior. O mais certo é, como se viu, que as mulheres não souberam defender-se contra seus exploradores; tinham que enfrentar a concorrência das prisões que lançavam no mercado produtos fabricados sem despesa de mão-de-obra. Elas se faziam mutuamente concorrência. É preciso, ademais, observar que é no seio de uma sociedade em que subsiste a comunidade conjugal que a mulher procura emancipar-se pelo trabalho; ligada ao lar do pai e do marido, contenta-se, o mais das vezes, com trazer para casa um auxílio; trabalha fora da família mas para esta; e como não se trata, para a operária, de atender à totalidade de suas necessidades, ela é induzida a aceitar uma remuneração muito inferior à exigida por um homem. Contentando-se grande quantidade de mulheres com salários inferiores, o conjunto do salário feminino alinha-se naturalmente nesse nível que é o mais vantajoso para o empregador.
Na França, segundo inquérito realizado em 1889-1893, para um dia de trabalho igual ao de um homem, a operária só obtinha metade da remuneração masculina. Segundo o inquérito de 1908, os mais altos salários horários das operárias trabalhando em domicílio não ultrapassavam vinte cêntimos por hora e desciam, às vezes, até cinco cêntimos. Era impossível à mulher, assim explorada, viver sem esmola ou sem protetor. Na América do Norte, em 1918, a mulher recebia apenas metade do salário masculino. Nessa mesma época, por igual quantidade de carvão extraído das minas alemãs, a mulher ganhava 25% menos do que o homem. Entre 1911 e 1943, os salários femininos, na França, se elevaram um pouco mais rapidamente do que os dos homens, mas permaneceram nitidamente inferiores.
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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