segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Gente Pobre - 32. os lamentos dos esfomeados - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


32.




5 de setembro


continuando...


Para lhe falar com franqueza, meu amor, escrevi lhe tudo isto, não só para desafogar o meu coração, mas também — e principalmente para isso, devo confessar-lhe — a fim de lhe dar uma amostra do meu bom estilo. Já deve, decerto, ter notado, querida Bárbara, que ultimamente o meu estilo tem melhorado de modo apreciável. Mas em vez de com isto desafogar o coração, enquanto escrevia, invadiu-me tal pena, que, realmente, começo a sentir verdadeira piedade dos meus próprios sentimentos, embora saiba muito bem que com esta piedade nada consigo. Mas, ao menos, de certo modo, faço justiça a mim mesmo! 

Na verdade, meu amor, a gente humilha-se até mais não poder ser, sem razão; julga-se valer menos que um kopek, menos que uma palha. Mas isso deve-se apenas ao facto de nos assustarmos e diminuirmos, exatamente como aquele pequeno que hoje me pediu esmola. 

Mas deixe-me continuar com as minhas alegorias, querida Bárbara, e preste atenção ao que lhe vou dizer. 

Às vezes, quando me levanto de manhã para ir para o trabalho, ponho-me a contemplar o aspecto da cidade, a ver como ela desperta gradualmente e se vai levantando, o fumo que começa a subir das chaminés, o movimento e o barulho. Esqueço-me, então, de mim mesmo e perante esse espetáculo sinto-me pequeno e insignificante, como se alguém me tivesse dado um soco no nariz curioso... Sim, nessas ocasiões, prossigo no meu caminho, acanhado e sem sequer me atrever a pensar em nada! Mas faça ideia, por um momento, do que se passa no interior dessas casas grandes e negras, faça um esforço de imaginação, e depois veja se teremos motivos para nos humilharmos tanto e deixarmo-nos acobardar tão indignamente... Lembre-se, querida Bárbara, de que estou a falar apenas alegoricamente; as minhas palavras não devem ser tomadas ao pé da letra. 

Vejamos agora o que há dentro destas casas. 

Ali, no canto mofento de um sótão defumado, que só por grande necessidade se pôde tornar uma residência para seres humanos, acordou um operário. Passou toda a noite a sonhar com um corte que ontem, por descuido, deu num par de botas. Como se um homem só devesse sonhar com insignificâncias!... Sim, mas é que esse operário é sapateiro, e isso explica tudo. Tem filhos pequenos e a sua mulher passa fome. Não pense, porém, minha querida, que essas coisas só sucedem aos sapateiros. O caso, em si, nada representaria, nem mereceria qualquer referência especial; mas repare, meu amor, nesta circunstância: na mesma casa, mas num quarto com todo o luxo, outra pessoa passou a noite a sonhar também com um par de botas. Claro que essas botas do sonho do cavalheiro rico eram de outra classe, naturalmente, mais elegantes, mas ao fim e ao cabo não passavam de umas botas. Quero eu dizer com esta minha alegoria que todos somos um pouco sapateiros. Isto também nada teria de particular; o mal está em que não haja um homem, um só, junto dele, que lhe pudesse sussurrar ao ouvido: «Deixa-te dessas coisas, não penses nisso; pensa apenas em ti, em ti, e lembra-te de que não és um pobre sapateiro e tens os teus filhos com saúde e uma mulher que não se queixa com fome; olha em tua volta e vê se descobres outra coisa mais nobre e digna das tuas preocupações, do que as tuas botas». 

Era isto, querida Bárbara, que eu queria explicar em forma alegórica. Talvez que isto seja uma ideia um pouco avançada; no entanto, às vezes agita-se dentro do nosso peito, e quando assim acontece, escapam-se-nos do coração palavras amargas. Por isso é que eu digo que não há motivo para nos humilharmos como eu fiz, só porque alguém murmurou qualquer coisa a nosso respeito. Talvez considere uma insinuação maldosa o que acabo de expor, ou que fui beber estas ideias a qualquer livro. Não, querida Bárbara; não é nada disso; esteja descansada, que eu não sei pintar as coisas com cores negras, nem tão pouco sou precipitado nas minhas afirmações, devo dizer-lhe! 

Regressei a casa muito triste, sentei-me à mesa, pus um pouco de água a aquecer e ia deitar-lhe um bocado de chá, quando, de repente, entrou no meu quarto Gorchkov, o pobre que vive em nossa casa. Já de manhã tivera a impressão de que ele andava através do corredor a espreitar às portas dos outros quartos, e de uma vez até me parecera que ele mostrava vontade de se dirigir a mim. Diga-se de passagem que a sua situação é pior, muito pior do que a minha. Nem pode comparar-se! Tem mulher e filhos para manter... Quer dizer, eu no seu lugar... Ora... Não sei o que faria no seu caso!... Pois, como ia dizendo, o bom Gorchkov entrou no meu quarto e cumprimentou-me, com uma lágrima a brilhar-lhe nas pestanas, como de costume... A sua boca emitia um ruidozito, mas sem chegar a articular qualquer palavra. Ofereci-lhe uma cadeira, desengonçada, claro, pois é a única que possuo. Convidei-o a tomar chá e ele recusou com insistência, mas por fim aceitou. Em seguida, queria bebê-lo sem açúcar, mas eu opus-me, e ele, depois de apresentar pretextos e desculpas para a sua preferência, que eu rebati, agradeceu, voltou a insistir na sua obstinação e acabou por deitar um torrãozinho na chávena. Afirmou então que o chá, de tão doce, até estava enjoativo. Ora veja, querida Bárbara, aonde a miséria nos pode conduzir! 

— Então, que há de novo, meu amigo? — perguntei-lhe.

— Simplesmente isto, Makar Alexeievitch. Peço-lhe que nos socorra; ajude-me, ampare uma família desgraçada, que se encontra na maior miséria! Meus filhos e minha mulher!... Não temos absolutamente nada que meter na boca!... E eu, como pai... Ponha-se no meu lugar, compreenda o meu sofrimento!... 

Ia para dizer qualquer coisa, mas ele interrompeu-me: 

— Aqui, tenho medo de toda a gente, Makar Alexeievitch; quer dizer, não é precisamente que lhes tenha medo, mas, compreende, sinto vergonha... São todos tão orgulhosos e altivos! Também não queria incomodar o senhor — acrescentou — se não fosse... Já sei que tem tido grandes dificuldades e que não me pode dar muito; mas talvez tenha possibilidade de me emprestar qualquer coisa! Por conhecer a bondade do seu coração e saber que também já tem passado necessidades e é pobre, foi que ousei pedir-lhe auxilio, na certeza de que, por tais motivos, se compadeceria da minha triste situação... 

Por último, pediu-me desculpa do seu atrevimento e ousadia. Respondi-lhe que da melhor vontade lhe valeria, mas que não tinha nada, ou quase nada, que lhe dar. 

— Oh! Makar Alexeievitch, não julgue que lhe vou pedir muito — principiou, corando até à raiz dos cabelos —, mas a minha mulher e os meus filhos têm fome. Não poderia emprestar-me dez kopeks apenas, Makar Alexeievitch? 

Que havia de lhe dizer, querida Bárbara? Aquelas palavras faziam-me sangrar o coração. Comparado com ele, eu era rico! Na verdade, vinte kopeks constituíam toda a minha fortuna, com a qual contava aguentar-me até receber o meu ordenado. Respondi, por isso, que me era de todo impossível valer-lhe... E pu-lo ao corrente da situação. 

— Dez kopeks, apenas dez kopeks, meu amigo, senão morremos de fome, Makar Alexeievitch... 

Fui então buscar à gaveta os vinte kopeks e dei-lhos, minha boa amiga... Era uma obra de caridade. Sim, a miséria... Coitado de quem vive nela! Depois conversámos durante uns momentos, perguntando-lhe, entre outras coisas, como é que ele se encontrava em tão desesperada situação e morava num quarto que não custava menos de cinco rublos de prata por mês. 

O pobre homem explicou-me então que alugara o quarto por seis meses, tendo pago um trimestre adiantadamente. Mas depois as coisas pioraram e já não pudera pagar os outros três meses, nem tão pouco arranjar dinheiro para mudar de casa. Entretanto, aguardava debalde a solução de um processo em curso. Mas um processo é uma coisa tão complicada, querida Bárbara. Como sabe, foi acusado de conivência em irregularidades cometidas por um negociante, nuns fornecimentos que este fez ao Estado. Os abusos foram descobertos e o comerciante foi preso, tendo então metido Gorchkov no assunto. Este, contudo, apenas pôde, na realidade, ser acusado de negligência por não ter inspecionado convenientemente os fornecimentos e não haver zelado, como devia, os interesses do Estado. De qualquer modo, porém, há já dois anos que o processo corre os seus trâmites e, até hoje, ainda não estão bem esclarecidas todas as circunstâncias. Assim, não pode, por enquanto, ser reconhecida a inocência de Gorchkov. «Estou completamente inocente da infâmia que me atribuem — diz o próprio Gorchkov. — É certo que, de certo modo, não cumpri o regulamento, mas não cometi qualquer fraude nem a encobri.» 

Apesar dos seus protestos de inocência, e de nada se haver apurado de concreto contra ele, como já disse, exoneraram-no do cargo que desempenhava. Enquanto não surgir a sentença que o reabilitará, não pode tomar conta de uma quantia apreciável que o comerciante lhe deve e que o tribunal tem em seu poder. E assim se vai passando lamentavelmente o tempo, sem que o infeliz veja proclamada a sua inocência. 

Eu acredito sinceramente nas suas palavras, querida Bárbara, mas a justiça não pensa do mesmo modo. O assunto é tão complicado, que, possivelmente, nem em cem anos ficará esclarecido. Às vezes parece o caso caminhar para a solução definitiva; mas o comerciante, então, volta a complicá-lo, e tudo muda novamente de feição. Tenho sincera pena da infelicidade de Gorchkov, meu amor, e estou inteiramente do seu lado. Um homem sem emprego dificilmente consegue trabalho, pois a notícia da sua incapacidade depressa se espalha. O pouco que o pobre Gorchkov tinha amealhado, já o comeu. E este estado de coisas pode prolongar-se, sabe-se lá por quanto tempo... Mas eles têm de viver... E eis que, em situação tão crítica, lhes nasceu um filho, o que ocasiona sempre despesas. A mulher também se encontra doente e ele, por seu turno, padece não sei de que moléstia contagiosa. Em suma: infeliz sorte, muito infeliz. 

O pobre homem assevera, convicto, que o processo deve ser julgado dentro de dias, e a seu favor, não o duvida. Tenho compaixão dele, muita compaixão, é verdade! Tratei-o o mais afetuosamente possível, pois tem-se tornado extremamente tímido e o que anseia é uma palavra de conforto, de bondade e de afeto. Eu, como digo, tratei-o nos mais afetuosos termos. 

Bem, adeus, meu amor. O Senhor a acompanhe e lhe conserve a saúde. Quando penso em si, minha querida, é como se derramasse um bálsamo na minha alma doente. Até mesmo sofrer por si é para mim um prazer. 

Seu sincero amigo


Makar Dievuchkin




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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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