Simone de Beauvoir
22. Fatos e Mitos
Segunda Parte
História
CAPITULO I
III
: uma liberdade inócua: é livre "para nada"
É O CONFLITO ENTRE A FAMÍLIA e o Estado que define a história da mulher romana. Os etruscos constituíam uma sociedade de filiação uterina e é provável que, no tempo da realeza, Roma conhecesse ainda a exogamia ligada ao regime do direito materno: os reis latinos não transmitiam hereditariamente o poder. O certo é que, depois da morte de Tarquínio, o direito patriarcal se afirma: a propriedade agrícola, a propriedade privada, e portanto a família, são a célula da sociedade. A mulher será estreitamente escravizada ao patrimônio e, destarte, ao grupo familial: as leis privam-na mesmo de todas as garantias que eram reconhecidas às mulheres gregas; a mulher passa a existência na incapacidade e na servidão. Bem entendido, está excluída dos negócios públicos, todo "ofício viril" é-lhe rigorosamente proibido; e, em sua vida civil é ela uma eterna menor. Não lhe recusam diretamente sua parte da herança paterna, mas mediante certos dispositivos Impedem-na de dispor dela: submetem-na à autoridade de um tutor. "A tutela foi estabelecida no interesse dos próprios tutores, diz Gaio, a fim de que a mulher, de que são herdeiros presuntivos, não possa arrancar-lhes a herança por testamento, nem empobrecê-los por alienações ou dívidas". O primeiro tutor da mulher é o pai; na falta deste, os agnatos paternos preenchem a função. Quando a mulher se casa, passa "para a mão" do esposo. Há três formas de casamento: a conferratio em que os esposos oferecem a Júpiter Capitolino um bolo de espelta em presença do flamen dialis; a coemptio, venda fictícia pela qual o pai plebeu "emancipava" a filha ao marido; e o usus, resultante de uma coabitação de um ano. Todas as três são com manu, isto é, o esposo substitui o pai ou os tutores agnatos; a mulher é assimilada a uma de suas filhas e é ele que, desde então, tem todo poder sobre a pessoa dela e os bens. Mas desde a época da Lei das Doze Tábuas, em pertencendo a romana ao mesmo tempo à gens paterna e à gens conjugai, surgiam conflitos que se encontram na origem de sua emancipação legal. Com efeito, o casamento com manu despoja os tutores agnatos. Para defender os interesses dos parentes paternos, vê-se aparecer o casamento sine manu; neste caso, os bens da mulher permanecem na dependência dos tutores, tendo o marido apenas direitos sobre a pessoa dela; e até esse poder ele o partilha com o pater famílias que conserva a autoridade absoluta sobre a filha. O tribunal doméstico é encarregado de resolver as questões que possam ocorrer entre o marido e o pai: uma tal instituição permite à mulher recorrer do pai para o marido, do marido para o pai; ela não é a propriedade de um indivíduo. Aliás, embora a gens seja extremamente forte, como o prova a própria existência desse tribunal independente dos tribunais públicos, o pai de família que é seu chefe é antes de tudo um cidadão. Sua autoridade é limitada; ele governa de maneira absoluta a mulher e os filhos; mas estes não são propriedade sua; ele administra-lhes a vida tendo em vista o bem público; a mulher que põe no mundo os filhos e cujo trabalho doméstico, que engloba muitas vezes tarefas agrícolas, é muito útil ao país, é profundamente respeitada. Observa-se, aqui, um fato muito importante que encontramos no curso da história: o direito abstrato não basta para definir a situação concreta da mulher; esta depende em grande parte do papel econômico que representa. E, muitas vezes mesmo, a liberdade abstrata e os poderes concretos variam em sentido inverso. Legalmente mais escravizada do que a grega, a romana está muito mais profundamente integrada na sociedade; em casa, mantém-se no átrio que é o centro da residência, ao invés de ser relegada ao segredo do gineceu; ela é que preside ao trabalho dos escravos; orienta a educação dos filhos e, não raro, sua influência exerce-se sobre eles até uma idade avançada; compartilha o trabalho e as preocupações do esposo, e é considerada coproprietária de seus bens. A fórmula do casamento Ubi tu Gaius, ego Gaia, não é uma fórmula vazia. À matrona chamam de domina; é senhora do lar, associada ao culto, companheira do homem e não escrava; o laço que os une é tão sagrado que em cinco séculos não encontramos um divórcio. Ela não é confinada a seus cômodos: assiste às refeições, às festas, vai ao teatro; na rua, os homens cedem-lhe o passo, os cônsules e os litores dão-lhe passagem. As lendas concedem-lhe, na história, um papel eminente: conhecem-se a das Sabinas, a de Lucrécia, a de Virgínia. Coriolano atende às súplicas de sua mãe e de sua esposa; a lei de Licínio, que consagra o triunfo da democracia romana, ter-lhe-ia sido inspirada pela mulher; é Cornélia quem forja a alma dos Gracos. "Por toda parte os homens governam as mulheres, dizia Catão, e nós que governamos todos os homens somos governados pelas mulheres."
Pouco a pouco, a situação legal da romana adapta-se à sua condição prática. No tempo da oligarquia patrícia, cada pater famílias é, no seio da república, um soberano independente; mas, quando se fortalece, o poder do Estado luta contra a concentração das fortunas, contra a arrogância das grandes famílias. O tribunal doméstico curva-se diante da justiça pública e a mulher conquista direitos cada vez maiores. Quatro poderes limitavam primitivamente sua liberdade: o pai e o marido dispunham de sua pessoa, o tutor e a manus de seus bens. O Estado vale-se da oposição entre o pai e o marido para restringir-lhes os direitos: é o tribunal de Estado que julga os casos de adultério, de divórcio etc. Da mesma forma, destroem-se, uma pela outra, a manus e a tutela. No interesse do tutor já se havia separado a manus do casamento. A seguir a manus torna-se um expediente de que se utilizam as mulheres para libertar-se dos tutores, contratando casamentos fictícios, ou obtendo, dos pais ou do Estado, tutores complacentes. Com a legislação imperial, a tutela será inteiramente abolida. Ao mesmo tempo, a mulher obtém uma garantia positiva de sua independência: o pai é obrigado a dar-lhe um dote; este não passa aos agnatos após a dissolução do casamento e nunca pertence ao marido; a mulher pode, de um momento para o outro, exigir a devolução, o que coloca o homem à sua mercê. "Aceitando o dote, ele vendia seu poder", diz Plauto. Desde o fim da República à mãe fora reconhecido, como ao pai, o direito ao respeito dos filhos: cabe-lhe a guarda da progenitura em caso de tutela ou má conduta do marido. Com Adriano, um senatus-consulto confere-lhe, no caso de ter ela três filhos e o defunto não ter posteridade, um direito à sucessão ab intestat de cada um deles. Com Marco Aurélio chega ao fim a evolução da família romana. A partir de 178 a mãe tem como herdeiros os filhos que assim passam à frente dos agnatos; a família baseia-se daí por diante na conjunctio sanguinis e a mãe surge em pé de igualdade com o pai; a filha herda como os irmãos.
Entretanto, observa-se na história do direito romano um movimento que contradiz o que acabamos de descrever: tornando a mulher independente da família, o poder central recoloca-a, ele próprio, sob tutela: sujeita-a a várias incapacidades legais.
Com efeito, ela adquiriria uma importância inquietante se pudesse ser a um tempo rica e independente; vão, portanto, esforçar-se por tirar-lhe com uma mão o que lhe concederam com a outra. A lei Ápia que proibia o luxo às romanas foi votada no momento em que Aníbal ameaçava Roma; passado o perigo, as mulheres reclamaram sua ab-rogação; Catão num célebre discurso pediu que fosse mantida, mas a manifestação das matronas em praça pública predominou. Diferentes leis, tanto mais severas quanto mais se relaxavam os costumes, foram em seguida propostas, mas sem grande êxito; não conseguiram senão suscitar fraudes. Só triunfou o senatus-consulto que proibia à mulher "interceder" para outrem (1), privando-a de quase toda capacidade civil. É no momento em que a mulher se acha mais emancipada, praticamente, que se proclama a inferioridade de seu sexo, o que constitui um notável exemplo do processo de justificação masculina de que falei: como não limitam mais seus direitos como filha, esposa, irmã, é como sexo que lhe recusam a igualdade com o homem, pretextando, para dominá-la, "a imbecilidade, a fragilidade do sexo".
(1) Isto é, ligar-se a outrem por contrato.
O fato é que as matronas não souberam empregar muito bem sua liberdade recente, mas é verdade também que lhes foi proibido tirar proveito dela de maneira positiva. Dessas duas correntes contrárias — uma individualista que arranca a mulher à família, outra estatal que a molesta como indivíduo — resulta uma situação sem equilíbrio. Ela é herdeira; tem direito, como o pai, ao respeito dos filhos; pode legar e escapa, graças à instituição do dote, ao constrangimento conjugai; pode divorciar e tornar a casar como queira. Mas é somente de uma maneira negativa que se emancipa, posto que não se lhe propõe nenhum emprego concreto de suas forças. A independência econômica permanece abstrata porquanto não engendra nenhuma capacidade política; e assim, não podendo agir, as romanas manifestam: espalham-se em tumulto pela cidade, assediam os tribunais, fomentam conjuras, ditam prescrições, atiçam guerras civis; vão em cortejo buscar a estátua da Mãe dos Deuses e a escoltam ao longo do Tibre, introduzindo, desse modo, em Roma, as divindades orientais; em 114 rebenta o escândalo das Vestais, cujo colégio é suprimido. Permanecendo-lhes inacessíveis a vida e as virtudes públicas, quando a dissolução da família torna inúteis e obsoletas as virtudes privadas de outrora, nenhuma moral mais se propõe às mulheres. Elas podem escolher entre duas soluções: obstinar-se em respeitar os mesmos valores de suas avós ou não reconhecer nenhum. No fim do primeiro século e no início do segundo, veem-se numerosas mulheres continuarem companheiras e associadas de seus maridos como no tempo da República. Plotina partilha a glória e as responsabilidades de Trajano; Sabina torna-se tão célebre por suas boas ações que, ainda em vida, estátuas a divinizam; no reinado de Tibério, Sextia recusa-se a sobreviver a Emílio Escauro e Pascea a Pompônio Labeu; Paulina corta as veias junto com Sêneca; Plínio, o Jovem, tornou célebre o Poete, non dolet de Árria; Marcial admira em Cláudia Rufina, em Virgínia, em Culpícia, esposas irreprocháveis e mães dedicadas. Mas há muitas mulheres que se opõem à maternidade e multiplicam os divórcios; as leis continuam a proibir o adultério: algumas matronas chegam a inscrever-se entre as prostitutas para não serem perturbadas em suas devassidões (2). Até então a literatura latina sempre respeitara as mulheres: a partir de então os satíricos desencadeiam-se contra elas. Não se voltam, aliás, contra a mulher em geral, mas, essencialmente, contra suas contemporâneas. Juvenal censura-lhes o luxo e a glutonaria; admoesta-as por pretenderem as ocupações dos homens: elas se interessam pela política, pelos processos, discutem com os gramáticos, os retóricos, apaixonam-se pela caça, corridas de carros, esgrima e luta. Em verdade, é principalmente pelo seu amor aos prazeres e pelos seus vícios que elas rivalizam com os homens; para visar metas mais elevadas carecem de uma educação suficiente. Nenhum fim lhes é proposto, aliás; a ação permanece-lhes proibida. A romana da antiga República tem um lugar na terra, mas continua de mãos atadas em consequência da falta de direitos abstratos e de independência econômica; a romana da decadência é o tipo da falsa emancipada que não possui, no mundo de que os homens são concretamente os donos, senão uma liberdade inócua: é livre "para nada".
(2) Roma, como a Grécia, tolera oficialmente a prostituição. Havia duas classes de cortesãs: uma viviam fechadas em bordéis, outras, as bonae meretrices, exerciam livremente a profissão; não tinham o direito de vestir-se como as matronas, mas tinham certa influência sobre a moda, os costumes, as artes, embora não tenham nunca ocupado uma posição tão elevada como as hetairas de Atenas.
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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