Simone de Beauvoir
30. Fatos e Mitos
Segunda Parte
História
CAPITULO I
V
" e o direito de voto é concedido "
É PELA CONVERGÊNCIA destes dois fatores: participação na produção, libertação da escravidão da reprodução, que se explica a evolução da condição da mulher. Como o previra Engels, seu estatuto social e político deveria necessariamente transformar-se. O movimento feminista esboçado na França por Condorcet, na Inglaterra por Mary Wollstonecraft em sua obra Vindication of the Rights of Women, e reiniciado no princípio do século pelos saint-simonianos, não pôde atingir um resultado enquanto careceu de bases concretas. Agora, as reivindicações da mulher vão pesar realmente na balança. Elas serão ouvidas até no seio da burguesia. Em conseqüência do rápido desenvolvimento da civilização industrial, a propriedade imobiliária recua ante a propriedade mobiliária: o princípio da unidade do grupo familiar perde parte de sua força. A mobilidade do capital permite a seu detentor possuir e dispor de sua fortuna em vez de ser por ela possuído. Através do patrimônio é que a mulher se achava substancialmente presa ao marido; abolido o patrimônio encontram-se eles somente justapostos e os próprios filhos não constituem laço de solidez comparável à do interesse. Assim o indivíduo vai afirmar-se contra o grupo; essa revolução é particularmente impressionante na América do Norte, onde a forma moderna do capitalismo triunfa: o divórcio aí se desenvolve e marido e mulher apresentam-se desde então como simples associados provisórios. Na França onde a população rural é importante, onde o Código Napoleão colocou sob tutela a mulher casada, a evolução será lenta. Em 1884, o divórcio é restabelecido e a mulher pode obtê-lo, no caso de o marido cometer adultério; entretanto, do ponto de vista penal, a diferença entre os sexos é mantida: o adultério só é um delito quando perpetrado pela mulher. O direito de tutela outorgado com restrições em 1907 só é plenamente conquistado em 1917. Em 1912, autorizou-se a pesquisa da paternidade natural. Mas foi preciso esperar até 1938 e 1942 para ser modificado o estatuto da mulher casada; ab-roga-se então o dever de obediência, embora o pai continue a ser chefe da família; êle fixa o domicílio mas a mulher pode opor-se à escolha apresentando razões válidas; suas capacidades são ampliadas. Entretanto, na fórmula confusa: "A mulher casada tem plena capacidade de direito. Esta só é limitada pelo contrato de casamento e a lei", a última parte do artigo contesta a primeira. A igualdade dos esposos não está ainda realizada.
Quanto aos direitos políticos, não foi sem dificuldade que se conquistaram na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos. Em 1867, Stuart Mill fazia, perante o Parlamento, a primeira defesa oficialmente pronunciada do voto feminino. Reclamava imperiosamente, em seus escritos, a igualdade da mulher e do homem no seio da família e da sociedade. "Estou convencido de que as relações sociais dos dois sexos, que subordinam um sexo a outro em nome da lei, são más em si mesmas e constituem um dos principais obstáculos que se opuseram ao progresso da humanidade; estou convencido de que devem ser substituídas por uma igualdade perfeita." Seguindo-lhes os passos, as inglesas organizaram-se politicamente sob a direção de Mrs. Fawcett; as francesas agrupam-se em torno de Maria Deraismes que entre 1868 e 1871 estuda, em uma série de conferências públicas, a sorte da mulher; sustenta uma viva controvérsia com Alexandre Dumas Filho, que aconselha ao marido traído por uma mulher infiel: "Mate-a". Foi León Richier o verdadeiro fundador do feminismo, criando em 1869 Les Droits de la Femme e organizando o congresso internacional desses direitos em 1878. A questão do direito de voto não é ainda ventilada: as mulheres restringem-se a reclamar direitos civis; durante trinta anos o movimento permanecerá muito tímido, na França como na Inglaterra. Uma mulher, entretanto, Hubertine Auclert, inicia uma campanha sufragista; cria um grupo Suffrage des Femmes e um jornal La Citoyenne. Numerosas sociedades constituem-se sob sua influência mas com atuação bem pouco eficiente. Essas fraquezas do feminismo tem suas causas nas dissenções intestinas; em verdade, como já se disse, as mulheres não são solidárias enquanto sexo; acham-se primeiramente ligadas à sua classe; os interesses das burguesas e o das mulheres proletárias não- coincidem. O feminismo revolucionário reata com a tradição saint-simoniana e marxista; é preciso observar, de resto, que Louise Michel se pronuncia contra o feminismo porque esse movimento não leva senão a um desvio de forças que devem ser inteiramente empregadas na luta de classe; com a abolição do capital, o destino das mulheres estará resolvido.
Em 1892, reúne-se o chamado Congresso Feminista que deu seu nome ao movimento; dele não resulta grande coisa. Entretanto, em 1897, aprova-se uma lei que permite às mulheres serem testemunhas em processos, mas uma doutora em direito vê negar-lhe o direito de exercer a profissão. Em 1898, elas obtêm o direito de voto no Tribunal do Comércio, o mesmo direito e a elegibilidade no Conselho Superior do Trabalho, e o de admissão ao Conselho Superior da Assistência Pública e à Escola de Belas-Artes. Em 1890, novo congresso reúne os feministas: mas não conduz a grandes resultados. Entretanto, pela primeira vez, em 1901, a questão do voto feminino é apresentada por Viviani à Câmara. Propõe êle, de resto, restringir o voto às celibatárias e às divorciadas. Nesse momento, o movimento feminista ganha terreno. Em 1909, é fundada a União Francesa pelo Sufrágio das Mulheres, cuja animadora é Mme Brunschwig; organiza conferências, comícios, congressos, manifestações. Em 1909, a propósito de um projeto de Dussausoy, Buisson apresenta um parecer concedendo direito de voto às mulheres para as assembléias locais. Em 1916, Thomas apresenta um projeto de lei a favor do sufrágio feminino. Renovado em 1918, triunfa em 1919 na Câmara, porém malogra no Senado em 1922. A situação é bastante complexa. Ao feminismo revolucionário, ao feminismo independente de Mme Brunschwig juntou-se o feminismo cristão. Bento XV, em 1919, pronuncia-se a favor do voto feminino; Monsenhor Baudrillart e o Padre Sertillanges fazem ardorosa propaganda nesse sentido; os católicos pensam, com efeito, que as mulheres representam, na França, um elemento conservador e religioso; é, em verdade, o que temem os radicais. A verdadeira razão de sua oposição está no medo que têm de um deslocamento da votação em se dando às mulheres o direito de voto. No Senado, numerosos católicos, o grupo da União Republicana e, por outro lado, os partidos de extrema esquerda são pelo voto das mulheres; mas a maioria da Assembléia é contra. Até 1932, ela vale-se de processos dilatórios e recusa-se a discutir os projetos concernentes ao sufrágio feminino. Nesse ano, entretanto, tendo a Câmara aprovado por 319 votos contra um a emenda que dava às mulheres direito de votar e eleger-se, o Senado abriu um debate que durou várias sessões e a emenda foi rejeitada. A ata da última sessão, publicana pelo Officiel, é das mais significativas; nela se encontram os argumentos que os antifeministas desenvolveram durante meio século em obras cuja enumeração seria fastidiosa. Em primeiro lugar, os argumentos galantes como: gostamos demais das mulheres para deixá-las votar; exalta-se, à maneira de Proudhon, a "verdadeira mulher" que aceita o dilema "cortesã ou dona de casa"; votando, a mulher perderia seu encanto; está num pedestal, que não desça dele; tem tudo a perder e nada a ganhar tornando-se eleitora; governa os homens sem necessidade da cédula eleitoral etc. Mais gravemente objeta-se com o interesse da família: o lugar da mulher é em casa; as discussões políticas provocariam a discórdia no lar. Alguns confessam um antifeminismo moderado. As mulheres são diferentes do homem. Não fazem serviço militar. Deverão votar as prostitutas? Outros afirmam com arrogância sua superioridade de machos: votar é uma obrigação, não um direito, as mulheres não são dignas desse dever. São menos inteligentes e menos instruídas do que os homens. Se votassem, os homens se tornariam efeminados. Não têm educação política, votariam em obediência ao marido. Se querem ser livres, que se libertem antes de tudo de suas costureiras. Propõe-se este argumento de soberba ingenuidade: há mais mulheres do que homens na França. A despeito da pobreza de todas essas objeções, foi preciso esperar até 1945 para que a francesa conquistasse todas as suas capacidades políticas.
A Nova Zelândia já em 1893 concedera à mulher a plenitude de seus direitos; seguiu-se a Austrália em 1908. Mas, na Inglaterra e na América do Norte, a vitória foi difícil. A Inglaterra vitoriana restringia imperiosamente a mulher ao lar; Jane Austen escondia-se para escrever. Era preciso muita coragem e um destino excepcional para tornar-se George Eliot ou Emily Brontë. Em 1888, um sábio inglês escrevia: "As mulheres não somente não são a raça como não são sequer a metade da raça, mas sim uma subespécie destinada unicamente à reprodução". Mrs. Fawcett funda, em fins do século, o movimento sufragista, mas trata-se, como na França, de um movimento tímido. É por volta de 1903 que as reivindicações femininas assumem uma feição particular. A família Pankhurst cria em Londres a Woman Social and Political Union que se alia ao Partido Trabalhista e empreende uma ação resolutamente militante. É a primeira vez na história que se vê as mulheres tentarem um esforço como mulheres; é o que empresta um interesse particular à aventura das sufragistas da Inglaterra e da América do Norte. Durante quinze anos realizam uma política de pressão que lembra por certos aspectos a atitude de um Gandhi. Recusando a violência, inventam sucedâneos mais ou menos engenhosos. Invadem o Albert Hall durante os comícios do Partido Liberal, brandindo flâmulas de pano ordinário em que se inscrevem as palavras Vote for women; penetram à força no gabinete de Lorde Asquith; promovem comícios em Hyde Park ou Trafalgar Square, desfilam pelas ruas com cartazes, fazem conferências; no decurso das manifestações, insultam os policiais ou atacam-nos a pedradas a fim de suscitar processos; na prisão adotam a tática da greve da fome; angariam fundos, reúnem em torno delas milhões de mulheres e de homens; impressionam a tal ponto a opinião que, em 1907, há duzentos membros do Parlamento que constituem uma comissão para propugnar pelo sufrágio feminino; a partir de então, todos os anos alguns deles apresentam um projeto de lei favorável ao voto das mulheres, projeto que é sempre rejeitado com os mesmos argumentos. Foi em 1907 que a W. S. P. U. organizou a primeira marcha contra o Parlamento e da qual participam numerosas trabalhadoras de xales e algumas mulheres da aristocracia. A polícia rechaçou-as, mas no ano seguinte, tendo havido uma ameaça de se proibir às mulheres casadas o trabalho em certas galerias das minas, as operárias do Lancashire foram convidadas pela W. S. P. U. para um grande comício em Londres. Houve novas prisões a que as sufragistas responderam, em 1909, com uma prolongada greve de fome. Libertadas, organizam novos cortejos; uma delas montada em um cavalo lambuzado de cal representa a Rainha Isabel. A 18 de julho de 1910, dia em que a lei sobre o sufrágio feminino deveria ser apresentada à Câmara, houve em Londres um desfile de nove quilômetros de extensão; rejeitada a lei, verificaram-se novos comícios e novas prisões. Em 1912, elas adotam uma tática mais violenta: incendeiam casas inabitadas, laceram quadros, espezinham canteiros, jogam pedras contra a polícia; ao mesmo tempo enviam delegação após delegação a Lloyd George e a Sir Edmond Grey; escondem-se no Albert Hall e interrompem ruidosamente os discursos de Lloyd George. A guerra susta suas atividades. É muito difícil saber em que medida tal ação apressou os acontecimentos. O direito de voto foi concedido às inglesas primeiramente em 1918, de maneira restrita, e em seguida, em 1928, sem restrições! Foram em grande parte os serviços que prestaram durante a guerra que lhes valeram o êxito.
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 25. Fatos e Mitos: Ei-lo, eis o verdadeiro mártir!
O Segundo Sexo - 26. Fatos e Mitos: muitas vezes, ela esgota-se na luta
O Segundo Sexo - 27. Fatos e Mitos: a mulher... volta a ser duramente escravizada
O Segundo Sexo - 28. Fatos e Mitos: dava preferência às mulheres casadas...
O Segundo Sexo - 29. Fatos e Mitos: a vida era então uma série ininterrupta de partos
O Segundo Sexo - 31. Fatos e Mitos: faz da mulher casada uma morta cívica
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