Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa
XXXV
AS JANELAS
Quem olha de fora por uma janela aberta não vê nunca tantas coisas como quem olha uma janela fechada. Não há objeto mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante, do que uma janela iluminada por uma candeia. O que se pode ver ao sol é sempre menos interessante do que o que se passa por detrás de uma vidraça. Dentro daquela abertura negra ou luminosa, a vida vive, a vida sonha, a vida sofre.
Para além das vagas de tetos, distingo uma mulher madura, já enrugada, pobre, sempre curvada sobre alguma coisa, e que não sai nunca. Com seu rosto, com sua roupa, com seus gestos, com quase nada, eu refiz a história dessa mulher, ou antes, sua lenda, e às vezes, chorando, conto-a a mim mesmo.
Se fosse um pobre velho, eu teria feito o mesmo com igual facilidade.
Deito-me, orgulhoso de ter vivido e sofrido em outros que não eu.
Dir-me-ei talvez: — Estás certo de que é essa a lenda verdadeira? Que importa o que pode ser a realidade colocada fora de mim, se ela não me ajudou a viver, a sentir que sou, o que sou?
XXXVI
DESEJO DE PINTAR
Desgraçado talvez o homem, mas feliz o artista torturado pelo desejo! Queimo do desejo de pintar aquela que me apareceu tão raramente e que tão depressa fugiu, como uma bela coisa pranteada, atrás do viajante transportado na noite. Há tanto tempo que desapareceu! Ela é bonita, mais do que bonita: é surpreendente. O negro nela prevalece: tudo o que inspira é noturno e profundo. Seus olhos são dois antros onde vagamente cintila o mistério, e o seu olhar ilumina como o relâmpago: é uma explosão nas trevas.
Eu a compararia a um sol negro, se se pudesse conceber astro negro derramando luz e felicidade. Todavia, lembra mais a lua, que sem dúvida a marcou com sua terrível influência. Não a lua branca dos idílios, que se assemelha a uma fria mulher casada, mas a lua inebriante e sinistra, suspensa no fundo de uma noite tempestuosa e bruscamente impelida pelas nuvens que correm. Não a lua calma e discreta que visita o sono dos homens puros, mas a lua arrancada do céu, revoltada e vencida, que as feiticeiras da Tessália (36) cruelmente obrigavam a dançar na relva terrificada! Habitam-lhe a pequena fronte uma vontade tenaz e o amor à presa. No entanto, embaixo daquele inquietante rosto, onde narinas móveis aspiram o desconhecido e o impossível, explode, com uma graça inexprimível, a gargalhada de uma grande boca silenciosa, vermelha e branca, que faz sonhar com o milagre de uma flor soberba que desabrochasse num terreno vulcânico.
Há mulheres que inspiram o desejo de vencê-las e gozá-las. Aquela, porém, dá o desejo de morrer devagarinho sob o seu olhar.
Eu a compararia a um sol negro, se se pudesse conceber astro negro derramando luz e felicidade. Todavia, lembra mais a lua, que sem dúvida a marcou com sua terrível influência. Não a lua branca dos idílios, que se assemelha a uma fria mulher casada, mas a lua inebriante e sinistra, suspensa no fundo de uma noite tempestuosa e bruscamente impelida pelas nuvens que correm. Não a lua calma e discreta que visita o sono dos homens puros, mas a lua arrancada do céu, revoltada e vencida, que as feiticeiras da Tessália (36) cruelmente obrigavam a dançar na relva terrificada! Habitam-lhe a pequena fronte uma vontade tenaz e o amor à presa. No entanto, embaixo daquele inquietante rosto, onde narinas móveis aspiram o desconhecido e o impossível, explode, com uma graça inexprimível, a gargalhada de uma grande boca silenciosa, vermelha e branca, que faz sonhar com o milagre de uma flor soberba que desabrochasse num terreno vulcânico.
Há mulheres que inspiram o desejo de vencê-las e gozá-las. Aquela, porém, dá o desejo de morrer devagarinho sob o seu olhar.
XXXVII
OS BENEFÍCIOS DA LUA
A Lua, que é a personificação do capricho, olhou pela janela, enquanto dormias no teu berço, e disse consigo: — Gosto desta criança.
Desceu preguiçosamente a escada de nuvens e passou de mansinho pelas vidraças.
Depois, estendeu-se em cima de ti com a ternura macia de uma mãe e coloriu o teu rosto.
Tuas pupilas ficaram verdes e tuas faces extraordinariamente pálidas. Foi ao contemplar essa visitante que os teus olhos aumentaram de um modo tão estranho. E foi tal a ternura com que apertou tua garganta que ficaste para sempre com vontade de chorar.
Na expansão de sua alegria, a Lua enchia todo o quarto como uma atmosfera fosfórica, como um luminoso veneno. E toda aquela luz viva pensava e dizia: — Sofrerás eternamente a influência do meu beijo. Serás bela à minha maneira.
Amarás o que eu amo e o que me ama: a água, as nuvens, o silêncio e a noite; o mar verde e imenso; a água informe e multiforme; o lugar onde não estiveres; o amante que não conheceres; as flores monstruosas; os perfumes que fazem delirar; os gatos pasmados em cima dos pianos e gemendo como mulheres, com uma voz rouca e macia. Serás amada por meus amantes, cortejada por meus cortesãos. Serás a rainha dos homens de olhos verdes, cuja garganta eu também apertei nas minhas carícias noturnas; daqueles que amam o mar, o mar imenso, tumultuoso e verde, a água informe e multiforme, o lugar onde não estão, a mulher que não conhecem, as flores sinistras que parecem incensórios de uma religião desconhecida, os perfumes que perturbam a vontade, e os voluptuosos animais selvagens que simbolizam a loucura desses homens É por isso, maldita e querida enfant gatée, que eu agora estou deitado aos teus pés, procurando em toda a tua pessoa o reflexo da temível Divindade, da fatídica madrinha, da ama que envenena os lunáticos.
Desceu preguiçosamente a escada de nuvens e passou de mansinho pelas vidraças.
Depois, estendeu-se em cima de ti com a ternura macia de uma mãe e coloriu o teu rosto.
Tuas pupilas ficaram verdes e tuas faces extraordinariamente pálidas. Foi ao contemplar essa visitante que os teus olhos aumentaram de um modo tão estranho. E foi tal a ternura com que apertou tua garganta que ficaste para sempre com vontade de chorar.
Na expansão de sua alegria, a Lua enchia todo o quarto como uma atmosfera fosfórica, como um luminoso veneno. E toda aquela luz viva pensava e dizia: — Sofrerás eternamente a influência do meu beijo. Serás bela à minha maneira.
Amarás o que eu amo e o que me ama: a água, as nuvens, o silêncio e a noite; o mar verde e imenso; a água informe e multiforme; o lugar onde não estiveres; o amante que não conheceres; as flores monstruosas; os perfumes que fazem delirar; os gatos pasmados em cima dos pianos e gemendo como mulheres, com uma voz rouca e macia. Serás amada por meus amantes, cortejada por meus cortesãos. Serás a rainha dos homens de olhos verdes, cuja garganta eu também apertei nas minhas carícias noturnas; daqueles que amam o mar, o mar imenso, tumultuoso e verde, a água informe e multiforme, o lugar onde não estão, a mulher que não conhecem, as flores sinistras que parecem incensórios de uma religião desconhecida, os perfumes que perturbam a vontade, e os voluptuosos animais selvagens que simbolizam a loucura desses homens É por isso, maldita e querida enfant gatée, que eu agora estou deitado aos teus pés, procurando em toda a tua pessoa o reflexo da temível Divindade, da fatídica madrinha, da ama que envenena os lunáticos.
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Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.
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Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: XXXV As Janelas
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