segunda-feira, 20 de agosto de 2018

O Segundo Sexo - 24. Fatos e Mitos: admite-se que "uma mulher vale um homem"

Simone de Beauvoir



24. Fatos e Mitos


Segunda Parte
História

CAPITULO I


IV



admite-se que "uma mulher vale um homem"




NA REALIDADE, CONQUANTO AMENIZE A SORTE DA MULHER, a cortesia não a modifica profundamente. Não são as ideologias, religião ou poesia, que conduzem a uma libertação da mulher; é em virtude de causas muito outras que no fim da era feudal ela ganha um pouco de terreno. Quando a supremacia do poder real se impõe aos feudatários, o suserano perde boa parte de seus direitos; em particular, suprimem-lhe, pouco a pouco, o de decidir do casamento de seus vassalos; ao mesmo tempo, tira-se do tutor feudal o gozo dos bens de sua pupila; as vantagens ligadas à tutela desaparecem e, quando o serviço do feudo é reduzido a uma prestação em dinheiro, a própria tutela desaparece; a mulher era incapaz de assegurar o serviço militar, mas ela pode, tanto quanto o homem, desobrigar-se de uma responsabilidade monetária. O feudo não passa, então, de simples patrimônio e não há mais razão para que os dois sexos não sejam tratados em pé de igualdade. Na realidade, as mulheres permanecem na Alemanha, na Suíça, na Itália, submetidas a uma tutela perpétua, mas na França admite-se, segundo a expressão de Baumanoir, que "uma mulher vale um homem". A tradição germânica dava um campeão como tutor à mulher; quando ela não precisa mais de campeão dispensa o tutor; como sexo, ela não é mais taxada de incapaz. Celibatária ou viúva, tem todos os direitos do homem; a propriedade confere-lhe a soberania; possuindo um feudo, ela o governa, o que quer dizer, distribui a justiça, assina tratados, dita leis. Vemo-la até desempenhar um papel militar, comandar exércitos, participar dos combates. Antes de Joana d'Arc existiram mulheres soldados, e se a Donzela espanta não escandaliza. 

Entretanto, tantos elementos conjugam-se contra a independência da mulher que nunca se encontram abolidos ao mesmo tempo: a força física não mais importa, mas a subordinação feminina permanece útil à sociedade no caso de ser casada. Por isso, o poder marital sobrevive ao desaparecimento do regime feudal. Vê-se afirmar o paradoxo que se perpetua até hoje: a mulher mais plenamente integrada na sociedade é a que possui menor número de privilégios; na feudalidade civil, o casamento conserva o mesmo aspecto que tinha na feudalidade militar; o esposo permanece tutor da esposa. Quando a burguesia se constitui, ela observa as mesmas leis. No direito consuetudinário, como no direito feudal, só há emancipação fora do casamento; a filha e a viúva têm as mesmas capacidades que o homem, mas, em se casando, a mulher cai sob a tutela e a main-bournie (1) do marido; ele pode bater-lhe, fiscalizar-lhe a conduta, as relações, a correspondência; dispõe de sua fortuna, não em virtude de um contrato mas pelo próprio fato do casamento. "Logo que se realiza o casamento, diz Beaumanoir, os bens de um e de outro são comuns em virtude do casamento e desde então ela está sob tutela." É que o interesse do patrimônio exige tanto dos nobres como dos burgueses que um senhor o administre. Não é porque a julguem fundamentalmente incapaz que subordinam a esposa ao esposo; quando nada se opõe, reconhecem à mulher a plenitude de suas capacidades. Desde o feudalismo até os nossos dias, a mulher casada é deliberadamente sacrificada à propriedade privada. É importante observar que essa servidão é tanto mais rigorosa quanto mais consideráveis são os bens detidos pelo marido, finas classes dos possuidores da riqueza que a dependência da mulher é sempre mais concreta. Ainda hoje é entre os ricos proprietários fundiários que subsiste a família patriarcal; quanto mais poderoso se sente o homem, social e economicamente, mais se vale da autoridade do pater famílias. Ao contrário, uma miséria comum faz do laço conjugai um laço recíproco. Não foram nem o feudalismo nem a Igreja que emanciparam a mulher. É antes a partir da condição de servo que se processa a passagem da família patriarcal à família autenticamente conjugai. O servo e sua esposa não possuíam nada, tinham somente o gozo comum da casa, dos móveis, dos utensílios: o homem não tinha nenhuma razão para procurar tornar-se senhor da mulher que nada possuía; pelo contrário, os laços de trabalho e de interesses que os uniam elevavam a esposa ao nível de companheira. A pobreza continua quando a servidão é abolida; é nas pequenas comunidades rurais e entre os artífices que se veem os esposos viver em pé de igualdade. A mulher não é nem uma coisa nem uma serva: isso são luxos de ricos; o pobre sente a reciprocidade de um laço que o amarra à sua metade; no trabalho livre, a mulher conquista uma autonomia concreta porque encontra seu papel econômico e social. As farsas e os fabulários da Idade Média espelham uma sociedade de artífices, de pequenos comerciantes, de camponeses, em que o marido só tem, sobre a mulher, o privilégio de espancá-la; mas ela opõe a esperteza à força e os esposos defrontam-se em pé de igualdade. Ao passo que a mulher rica paga sua ociosidade com a submissão.


(1) Tipo de tutela (N. do T.).

Na Idade Média a mulher conservava ainda alguns privilégios: nas aldeias ela tomava parte nas assembleias dos habitantes, participava das reuniões primárias para a eleição dos deputados aos Estados Gerais e o marido só podia dispor a seu bel-prazer dos móveis: para alienar os bens imóveis, era necessário o consentimento da mulher. É no século XVI que se codificam as leis que se perpetuam durante todo o Antigo Regime; nessa época os costumes feudais já desapareceram totalmente e nada protege a mulher contra as pretensões dos homens que a querem prender ao lar doméstico. A influência do direito romano, tão desprezível para a mulher, faz-se sentir então. Como no tempo dos romanos, as violentas diatribes contra a estupidez e a fragilidade do sexo não se encontram na origem do código mas surgem como justificações; só muito depois é que os homens descobrem razões para agir como se lhes afigura cômodo fazê-lo. "Entre as más condições que têm as mulheres, lê-se no Songe du Verger, acho, em direito, que elas têm nove más condições. Primeiramente, uma mulher por sua própria natureza busca seu prejuízo. . . Segundamente, as mulheres são por natureza avarentas. .. Terceiramente, suas vontades são caprichosas. . . Quartamente, elas são naturalmente más. . . Quintamente, são hipócritas. . . Em consequência, as mulheres são reputadas falsas e portanto, segundo o direito civil, uma mulher não pode ser aceita como testemunha em testamento. . . Em consequência, uma mulher faz sempre o contrário do que lhe mandam fazer... Consequentemente, são matreiras e maliciosas. Monsenhor Santo Agostinho dizia que "a mulher é um animal que não é seguro nem estável"; é odienta para tormento do marido, é cheia de maldade e é o princípio de todas as demandas e disputas, via e caminho de todas as iniquidades." Textos análogos multiplicam-se nessa época. O interesse deste consiste em que cada acusação destina-se a justificar uma das disposições que o código estabelece contra as mulheres e a situação inferior em que são mantidas. Naturalmente todo "ofício viril" lhes é proibido; restabelece-se o senatus- consulto veleiano que as priva de toda capacidade civil; o direito de primogenitura e o privilégio de masculinidade colocam-na em segundo lugar para receber a herança paterna. Celibatária, ela permanece sob a tutela do pai; se não se casa, ele encerra-a, em geral, num convento. Se tem filho sem ser casada, autoriza-se a investigação da paternidade mas esta não dá direito senão às despesas do parto e alimentos para a criança; casada, submete-se à autoridade do marido: ele fixa o domicílio, dirige a vida do casal, repudia a mulher em caso de adultério, encerra-a em um convento ou posteriormente obtém uma ordem de prisão para enviá-la à Bastilha; nenhum ato é válido sem sua habilitação; todas as contribuições da mulher à comunidade são assimiladas a um dote no sentido romano da palavra; mas, sendo o casamento indissolúvel, é necessária a morte do marido para que a disposição dos bens caiba à esposa. Daí o ditado: Uxor non est proprie socia sed speratur fore. Pelo fato de não administrar seu capital, ainda que conserve direitos sobre o mesmo, não tem a responsabilidade dele; esse capital não oferece nenhum conteúdo à sua ação: ela não tem nenhuma influência concreta sobre o mundo. Até seus filhos são considerados, como no tempo das Eumênides, como pertencentes ao pai mais do que a ela; ela os "dá" ao esposo cuja autoridade é muito superior à dela e que é o verdadeiro senhor da posteridade. É mesmo um argumento de que se utilizará Napoleão, declarando que assim como uma pereira pertence ao proprietário das peras, a mulher é propriedade do homem a quem fornece os filhos. Esse é o estatuto da mulher francesa durante todo o Antigo Regime. Pouco a pouco, o veleiano será abolido pela jurisprudência mas é preciso esperar o Código Napoleão para que desapareça definitivamente. "É o marido que é responsável pelas dívidas da esposa e por sua conduta e ela só a ele tem de prestar contas. Ela não tem quase nenhuma relação direta com os poderes públicos, nem relações autônomas com indivíduos estranhos à família. Muito mais do que associada, ela se apresenta como serva no trabalho e na maternidade: os objetos, os valores, os seres que cria não lhe pertencem e sim à família, logo ao homem que é o chefe. Nos outros países, a situação não é muito mais liberal, ao contrário; alguns conservam a tutela; em todos, as capacidades da mulher casada são nulas e os costumes severos. Todos os códigos europeus foram redigidos de acordo com o direito canônico, o direito romano e o direito germânico, todos desfavoráveis à mulher; todos os países conhecem a propriedade privada e a família e submetem-se às exigências dessas instituições. 

Em todos esses países, uma das consequências da escravização da "mulher honesta" à família é a existência da prostituição. Relegadas hipocritamente à margem da sociedade, as prostitutas desempenham papel dos mais importantes. O cristianismo despreza-as mas as aceita como um mal necessário. "Suprimi as prostitutas, diz Santo Agostinho, e perturbareis a sociedade com a libertinagem." E posteriormente Santo Tomás — ou o teólogo que assinou com esse nome o livro IV do De regimine principium — declara: "Eliminai as mulheres públicas do seio da sociedade, e a devassidão a perturbará com desordens de toda espécie. São as prostitutas, numa cidade, a mesma coisa que uma cloaca num palácio; suprimi a cloaca e o palácio tornar-se-á um lugar sujo e infecto." Na alta Idade Média reinava tão grande licença nos costumes que quase não havia necessidade de mulheres da vida; mas quando a família burguesa se organizou e a monogamia tornou-se rigorosa, teve o homem de ir buscar seu prazer fora do lar. 

Em vão, uma capitular de Carlos Magno o proíbe com absoluto rigor; é em vão que S. Luís ordena em 1254 a expulsão das prostitutas e em 1269 a destruição dos locais de prostituição: em Damiette, diz-nos Joinville, as tendas das prostitutas eram contíguas à tenda do rei. Mais tarde, os esforços de Carlos IX na França, e de Maria Teresa na Áustria no século XVII, malograram igualmente. A organização da sociedade tornava a prostituição necessária. "As prostitutas, dirá pomposamente Schopenhauer, são os sacrifícios humanos no altar da monogamia." E um historiador da moral europeia, Lecky, formula a mesma ideia: "Tipo supremo do vício, são a guarda mais ativa da virtude". Comparam-lhe justamente a situação com a dos judeus a que foram muitas vezes assimiladas (2): a usura, o tráfico de dinheiro são proibidos pela Igreja exatamente como o ato sexual extraconjugal; mas a sociedade não pode prescindir dos especuladores financeiros, nem do amor livre; tais funções são pois atribuídas a castas malditas: juntam-nas em guetos ou em bairros fechados. Em Paris, as mulheres de petit gouvernement trabalhavam em lupanares a que chegavam pela manhã e deixavam à noite após o toque de recolher; residiam em certas ruas de que não tinham o direito de se afastar. Na maioria das outras cidades, as casas de tolerância situavam-se fora dos muros. Como aos judeus, obrigavam-nas a usar vestimentas e insígnias distintivas. Na França, a mais geralmente empregada era uma agulheta de determinada cor suspensa a um dos ombros; comumente a seda, as peles, os adornos das mulheres honestas eram-lhes vedados. Elas eram legalmente tachadas de infames, não tinham nenhum recurso contra a polícia e a magistratura, bastava uma reclamação de algum vizinho para que as expulsassem de suas casas. Para a maioria delas, a vida era difícil e miserável. Algumas viviam encerradas em casas públicas. Um viajante francês, Antoine de Lalaing, deu-nos um quadro de uma dessas casas na Espanha, em Valência, no fim do século XV. O local, diz ele, "é grande como uma pequena cidade e cercado de muros, com uma só porta. E diante da porta ergue-se uma forca para os malfeitores que poderiam encontrar-se dentro; à porta, um homem, para isso ordenado, retém os bastões dos que querem entrar e diz-lhes que, se quiserem entregar-lhe o dinheiro que tiverem ele o devolverá à saída honestamente sem perigo; e se porventura o têm e não o dão, sendo roubados à noite, não é o porteiro responsável. Nesse lugar há três ou quatro ruas cheias de casinhas, cada qual com mulheres bem alegres e vestidas de veludos e cetins. E há de duzentas a trezentas mulheres; têm suas casas mantidas e decoradas com bons panos. A tarifa oficial é de quatro dinheiros da moeda delas que valem um dos nossos gros. . . Há ali tavernas e cabarés. Por causa do calor, melhor se pode vê-las à noite ou a tarde, porque se acham então sentadas às suas janelas, uma bela lâmpada suspensa ao lado para que bem as vejam e à vontade. Dois médicos contratados pela cidade- cada semana as visitam a fim de verificar se têm alguma doença, decente ou secreta, e retirá-las do local. Se alguma das doentes é da cidade, determinam os senhores desta que à sua custa sejam amparadas e às estrangeiras que se expulsem para onde quiserem (3)". O autor espanta-se, de resto, com um policiamento tão perfeito. Muitas prostitutas eram livres. Algumas ganhavam muito bem a vida. Como no tempo das hetairas, a alta galanteria oferecia maiores possibilidades ao individualismo feminino do que a vida da "mulher honesta".


(2) "As que vinham a Sisteron pela passagem de Peipin deviam, como os judeus, pagar um direito de pedágio de cinco soldos em benefícios das damas de Sainte-Claire" (Bahutaud).
(3) Dict. de la conversation, Riffenberg, V.º Femmes et filies de folie vie


Condição singular é na França a da celibatária; a independência legal de que goza opõe-se de maneira chocante à servidão da esposa; é ela um personagem insólito; por isso mesmo, os costumes se apressam em retirar-lhe tudo o que lhe concedem as leis. Ela tem todas as capacidades civis, mas trata-se de direitos abstratos e vazios; ela não possui nem autonomia econômica, nem dignidade social. Geralmente, a solteirona permanece à sombra da família paterna ou vai encontrar-se com suas semelhantes no fundo dos conventos; aí quase não conhece outra forma de liberdade que não sejam a desobediência e o pecado. Da mesma forma, as romanas da decadência só se libertavam pelo vício. A negatividade continua sendo o destino das mulheres enquanto sua libertação permanece negativa.





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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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