terça-feira, 16 de outubro de 2018

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XIX

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 








ILUSÕES MORTAS 
                  A Virgílio Várzea


Os meus amores vão-se mar em fora, 
E vão-se mar em fora os meus amores, 
A murchar, a murchar, como essas flores 
Sem mais orvalho e a doce luz da aurora.

E os meus amores não virão agora, 
Não baterão as asas multicores, 
Como aves mansas – dentre os esplendores 
Do meu prazer, do meu prazer de outrora.

Tudo emigrou, rasgando a esfera branca 
Das ilusões, – tudo em revoada franca 
Partiu – deixando um bem-estar saudoso

No fundo ideal de toda a minha vida, 
Qual numa taça a gota indefinida 
De um bom licor antigo e saboroso.





 O SONHO DO ASTRÓLOGO


As fulgurosas, rútilas estrelas 
Como mundos de mundos seculares, 
Formando uns arquipélagos, uns mares 
De luz – como eu deslumbro o olhar ao vê-las.

Ah! se como eu sei compreendê-las, 
Sentir-lhes os seus filtros salutares, 
Pudesse, da amplidão fria dos ares, 
Arrancá-las, na mão sempre trazê-las;

Que vagalhões de assombros palpitantes 
Não me viriam perpassar, faiscantes, 
Dentro do ser, nuns doutos murmúrios.

Eu saberia muito mais a causa 
Da evolução que nunca teve pausa, 
Que é uma audácia transbordando em rios.





CRISTO


Cristo morreu, ó tristes criaturas, 
Era matéria como vós, morreu; 
E quando à noite sepulcral desceu 
Gelou com ele o oceano das ternuras.

Nunca outro sol de irradiações mais puras 
Subiu tão alto e tanto resplendeu, 
Nunca ninguém tão firme combateu 
Da humanidade todas as torturas.

Morreu, que se ele, o Deus, ressuscitasse, 
Limpa de sangue e lágrimas a face, 
Os seus olhos tranquilos, virginais,

Dons inefáveis corações piedosos, 
Tinham de abrir-se muito dolorosos, 
Também chorando quando vós chorais!




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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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