terça-feira, 5 de março de 2019

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (4)

O Festival de Besteira

Festival de Besteira que Assola o País





Em Belém do Pará um vereador era o precursor dessa bobagem de proibir mulher em anúncio publicitário. É verdade que o prefeito Faria Lima, de São Paulo, foi mais bacaninha ainda, porque iria — mais tarde — proibir mulher e propor que “figuras da nossa história ilustrem os anúncios”, isto é, Rui Barbosa vendendo sabão em pó, Tiradentes (já definitivamente barbudo) fazendo anúncio de lâmina de barbear etc. No entanto, quando da proposta do precursor, na Câmara de Vereadores de Belém, um outro edil protestou, afirmando: “O mal não reside nas figuras femininas, mas no coração de quem vê nelas o lado imoral. Eu, por exemplo, seria capaz de olhar a foto de minha mãe nua e não sentiria a menor reação”. Nome desse vereador que respeita o chamado amor filial: Álvaro de Freitas, ao qual aproveitamos o ensejo para enviar nossos parabéns. 

Voltando a Minas: o Instituto Estadual de Florestas determinava que só seria concedida licença para caçar àquele que apresentasse seu título de eleitor. E ainda tinha nego derrotista dizendo que o título de eleitor não servia para mais nada. Era mentira. Pelo menos em Minas, o título servia para ir cercar bicho no mato. 

Em Bauru (SP) o delegado de polícia oficiava ao presidente da liga de futebol de lá que não ia enviar mais policiamento para os jogos porque os campos “não oferecem segurança à polícia”. Em Brasília o general Riograndino Kruel declarava-se contrário à passagem do Serviço de Censura para um órgão especializado, a fim “de evitar a propaganda subversiva através das artes”. 

E o mês de junho começava de lascar. No estado do Rio, o governador escalado pela “redentora” distribuía através da Agência Fluminense de Informações uma nota à imprensa muito bacaninha: “O governo do estado prestou homenagem póstuma à antiga mestra do grupo escolar de Itapeba, primeiro distrito de Maricá — professora Cacilda Silva —, dando seu nome ao estabelecimento de ensino. A conhecida educadora dirige ainda o curso noturno anexo ao grupo escolar”. Coitada da conhecida educadora. Deve ter virado fantasma. Só assim se explicava o fato de ter recebido homenagem póstuma e ter passado a lecionar no curso noturno. 

Enquanto isso, o secretário de Saúde de Brasília, dr. Pinheiro Rocha, concedia uma entrevista sobre o hospital da L2 e dizia ao Correio Braziliense: “Logo que seja inaugurado será entregue ao público, recebendo até mesmo doentes que necessitem de cuidados médicos”. Não é formidável? Um hospital que atende a doentes até mesmo necessitando de cuidados médicos. Queremos crer que esta inovação revolucionou a medicina. 

O cidadão Aírton Gomes de Araújo, natural de Brejo Santo, no Ceará, era preso pelo 23o Batalhão de Caçadores, acusado de ter ofendido “um símbolo nacional”, só porque disse que o pescoço do marechal Castello Branco parecia pescoço de tartaruga, e logo depois desagravava o dito símbolo, quando declarava que não era o pescoço de sua excelência que parecia com o da tartaruga: o da tartaruga é que parecia com o de sua excelência. 

O comandante da Base Aérea de Curitiba proibia o padre Euvaldo de Andrade de rezar missa em ritmo de iê-iê-iê. Recorde-se que foi naquela Base que o piedoso sacerdote rezou pela primeira vez uma missa com música dos Beatles no Evangelho, bolero de Wanderley Cardoso na Comunhão, e uma versão de “Quero que tudo mais vá pro inferno” ao final do ato religioso. A falta de respeito era tanta que no fim da missa, quando o padre abriu os braços, os fiéis pensaram que ele ia dar uma de Wanderley Cardoso e berrar: “Abraça-me fo-or-teeee!”. Mas o padre Euvaldo saiu com uma de Roberto Carlos e berrou: “Meu Deus, eu te amo, mora”. O brigadeiro Peralva, comandante da Base, não quis mais saber disso, com medo que aparecessem esses taradinhos de cabelo comprido e começassem a dar festinhas para dançarem ladainha. 

E quem estava de parabéns era o Serviço de Trânsito de São Paulo. Nomearam para diretor um ex-delegado da polícia que, ao tomar posse, foi logo declarando: “Não entendo nada de trânsito”. Enfim, era mais um formado pela Faculdade Ademar de Barros. [10] 

O coronel brigou com o major porque um cachorro, de propriedade do primeiro, conjugava o verbo defecar bem no meio da portaria do edifício de onde o segundo era síndico. Por causa do que o cachorro fez, foi aberto um IPM de cachorro. King — este era o nome do cachorro corrupto — cumpriu todas as exigências de um IPM. Seu depoimento na auditoria foi muito legal. Ele declarou que au-au-au-au. 

Durante umas manobras da Polícia Militar de Belo Horizonte, os guerrilheiros de mentirinha saíam vencedores da guerra simulada, quando duzentos e setenta elementos que fingiam ser combatentes contra a guerrilha sofreram violenta indigestão, do que se aproveitaram os guerrilheiros para ganhar a guerra. Sem dúvida alguma, a Polícia Militar de Minas Gerais descobrira uma arma secreta: o desarranjo intestinal. 

E julho começava com uma declaração muito bacaninha da deputada espiroqueta Conceição da Costa Neves, que afirmava nos bastidores da Assembleia Legislativa de São Paulo: “A Arena, [11] se quiser, pode cassar o meu mandato e fazer dele supositório para quem estiver precisando”. 

E no mês de agosto o general Jaime Graça, então chefe de gabinete da Secretaria de Segurança, mandava prender por trinta dias um soldado da Polícia Militar, que estando de guarda em sua residência, durante a ausência da família, tinha tomado um banho de piscina. O engraçado é que dias antes o general Jaime Graça tinha caído na piscina com roupa e tudo, ao tentar salvar um marimbondo que se afogava. O general ficava muito triste quando caía qualquer coisa em sua piscina, e adorava marimbondos. Pouco tempo antes, era o contrário: quem jogava mendigo dentro d’água era a polícia. (Remember “rio da Guarda”.) [12] Depois a polícia cairia dentro d’água, para salvar marimbondo. 

O ministro da Saúde — dr. Raimundo de Britto — proibia qualquer funcionário de fazer declarações sobre o controle da natalidade naquele ministério. Doravante, afirmava o ministro, ele mesmo iria controlar o controle da natalidade. Como é que ele ia controlar, ninguém sabia. Provavelmente ficaria olhando de binóculo do prédio em frente, escondido atrás do muro, agachadinho na moita de capim, ou talvez mesmo dentro do armário. O dr. Raimundo para administrador era fraquinho, mas para observar era ótimo. Naquela época a Pretapress dava um alerta aos seus leitores: “Aceite nosso conselho. Antes verifique se o dr. Raimundo não está espiando”. 

E em Palmeira dos Índios, um lavrador alagoano de nome José João dava à luz uma robusta menina, e os rapazes do elenco do show Les Girls tomavam pílulas anticoncepcionais. Depois de acurado exame os médicos atestavam que o vaqueiro que virou vaca não era lá tão homem assim. Aliás, o exame não é muito difícil. 

E setembro começava com uma determinação do governador escalado Laudo Natel, criando um novo órgão, que tinha a sigla: SIRCFFSTETT . Ou seja, Setor de Investigações e Repressão ao Crime de Furto de Fios de Serviços de Transmissões Elétricas, Telegráficas ou Telefônicas. Deve ser de lascar o cara trabalhar lá, atender o telefone e ter que dizer: “Aqui é da SIRCFFSTETT”. 

O médico Parga Rodrigues era o primeiro psiquiatra contratado pelo Itamaraty para examinar seu pessoal. E revelava estar recebendo inúmeras consultas de membros do Corpo Diplomático, inclusive dos que estavam fora do país, porque — dizia ele — “Lá fora a estrutura social é diferente e o indivíduo tem mais possibilidade de manifestar o que já possui de anormal”. Eu, hem… 

A peça Liberdade, liberdade estreava em Belo Horizonte e a censura cortava apenas a palavra prostituta, substituindo-a pela expressão: “mulher de vida fácil”, o que, na atual conjuntura, nos parece um tanto difícil. Ninguém mais tá levando vida fácil. Enquanto estudantes faziam manifestações por todo o país, desembarcava no Galeão, vindo de Recife, o general Rafael de Sousa Aguiar, chefe do IV Exército, que explicava aos repórteres: “Em Pernambuco está tudo calmo e a imprensa aqui do Sul é que fica inventando coisas, querendo encontrar chifre em cabeça de burro”. Vinte e quatro horas depois chegava ao Rio a notícia de que cento e cinquenta estudantes tinham sido presos em Recife. Pelo jeito tinham achado o chifre. 

Um grupo de teatro amador da Guanabara ia a Sergipe para encenar Joana em flor, de autoria do coleguinha Reinaldo Jardim, e o general Graciliano não sei das quantas, secretário de Segurança, mandou chamar a rapaziada, mantendo o elenco preso por várias horas, proibindo a peça, emitindo opiniões sobre teatro, citando autores, entre os quais J. G. de Araújo Jorge, não antes de ser soprado pelo ordenança, e disse que todo mundo era subversivo. Depois fez uma declaração digna de um troféu: “Em Sergipe quem entende de teatro é a polícia”. 

Um grupo de senhoras beneméritas de uma agremiação se dirigia à praia do Pinto e no ambulatório local começava a fazer uso dos remédios anticoncepcionais, numa tentativa de limitar os filhos dos favelados. Muitas moradoras do local disseram na ocasião que ali na favela ninguém conhecia os anticoncepcionais, e pelo jeito as senhoras beneméritas estavam querendo acabar com a favela à noite. 

E quando a gente pensava que tinha diminuído o número de deputados cocorocas, aparecia o parlamentar Tufic Nassif com um projeto instituindo a escritura pública para venda de automóveis. Na ocasião enviamos os nossos sinceros parabéns ao esclarecido deputado, com a sugestão de que aproveitasse o embalo e instituísse também um projeto sugerindo a lei do inquilinato para aluguel de táxis. 

O novo chefe do Serviço de Censura, sr. Romero Lago, enviava telegrama a todas as delegacias do Departamento Federal de Segurança Pública ordenando que impedissem cineastas estrangeiros de filmarem no Brasil, “a fim de evitar que distorcessem a realidade nacional”. Que grande pessimista o dr. Lago, capaz de acreditar que exista um cineasta tão maquiavélico a ponto de distorcer a realidade nacional. 

E assim vem correndo o Festival de Besteira que Assola o País, sem solução de continuidade, pelo menos até o momento em que enviávamos este livro à editora. A primeira parte tem pretensões de ser mais uma reportagem do que uma coletânea de crônicas. Ele tem, aliás, duas partes: a primeira, dedicada ao Febeapá, com este prólogo e mais alguns casos dignos dele, mas que foram anotados em forma de crônicas, e a segunda, onde vai uma coleção de crônicas e casos do cotidiano, sem compromissos com a verdade nua e crua. 

O relato é interrompido aqui, mas o Festival persiste. Ainda na semana passada, democratas do governo mandavam a polícia baixar o cacete em quem fizesse passeatas contra a ditadura, e a Pretapress recebia um comunicado do Serviço de Trânsito explicando que os talões de multa para motoristas infratores passariam a ter três vias, para evitar o suborno do guarda. E este é bem um exemplo do que é o Festival: em todo lugar do mundo, quando o guarda é subornável, muda-se o guarda. Aqui muda-se o talão. É a subversão a serviço da corrupção. Entenderam?





Continua... o festival de besteiras




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Leia também:

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (1)

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (2)

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (3)

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10 Gozação com Ademar Pereira de Barros (1901-69), que foi prefeito da cidade de São Paulo entre 1957 e 1961 e duas vezes governador pelo mesmo estado, nos períodos de 1947 a 1951 e de 1963 a 1966. 
11 Aliança Renovadora Nacional. 
12 Afluente do rio Guandu, onde, segundo jornais de oposição ao governador Carlos Lacerda, policiais do estado da Guanabara desovavam os corpos de mendigos por eles assassinados — acusação jamais comprovada.

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SÉRGIO PORTO nasceu no Rio de Janeiro em 1923 e morreu na mesma cidade em 1968. Foi cronista, radialista, homem de teatro e TV, compositor. Conhecido nacionalmente por meio do pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, publicou, além de Febeapá, coletâneas de crônicas, textos sobre futebol, entre outros.


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