sábado, 23 de março de 2019

Gente Pobre - 37. O que me espera... não sei - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


37.




19 de setembro




Minha querida Bárbara Alexeievna:



Apresso-me a comunicar-lhe, minha boa amiga, que Ratazaiev me arranjou trabalho... Um escritor trouxe-lhe hoje um enorme manuscrito para eu copiar... Graças a Deus, agora não me falta serviço. A única dificuldade é o original ser tão ilegível, que não sei como o hei de decifrar; e, além disso, o autor querer o trabalho feito com urgência. Para mais, o assunto é tão transcendente que pouco compreendo. Já ficou estabelecido o preço de quarenta kopeks por folha. Escrevi-lhe para sem demora lhe dizer, minha querida, que agora já conto com um ganho suplementar. 

Com isto adeus, meu anjo. Vou-me agarrar ao trabalho. 

Seu fiel



Makar Dievuchkin











23 de setembro




Meu bom amigo Makar Alexeievitch:



Há já três dias que lhe não escrevo, meu amigo; contudo não me têm faltado preocupações e receios durante este tempo. 

Anteontem veio cá Buikov . Encontrava-me sozinha, pois a Fédora tinha saído. 

Abri-lhe a porta, e fiquei tão assustada quando o vi que nem me podia mexer do sítio. Senti que empalidecia. Ele entrou, a rir, como é seu costume, puxou de uma cadeira e sentou-se sem mais cerimônias. Custou-me a recuperar a serenidade. Por fim, fui outra vez sentar-me a trabalhar, junto da janela. Ao reparar em mim, decerto ficou surpreendido com o meu aspeto, pois, de súbito, deixou de rir. Ultimamente, piorei muito: tenho os olhos fundos e as faces mirradas. Além disso, estava coberta de uma palidez mortal... Sim; devo despertar compaixão em quem me conheceu há uns anos para trás... 

Observou-me atentamente durante largo tempo e, por fim, o seu semblante alegrou-se outra vez. Disse não sei quê, ao que nem sequer me lembro o que respondi. E retomou o aspeto risonho. Conservou-se uma hora sentado ao pé de mim, torturando-me com perguntas e conversando animadamente. Antes de se ir embora, pegou-me na mão e disse-me exatamente isto: 

— Bárbara Alexeievna, vou-lhe dizer uma coisa, muito em segredo. Ana Fedorovna, sua prima e minha antiga amiga, é uma mulher muito ordinária. — Qualificou-a mesmo com uma palavra indecentíssima. — Primeiro, preparou a desgraça da prima, e depois arruinou-se a si própria. Sim; o meu procedimento então também foi ignóbil; mas, enfim, não percamos o tempo com palavras inúteis, que isso é o pão-nosso de cada dia, coisas da vida. 

E desatou outra vez a rir alto. Em seguida, depois de fazer notar que não possuía o dom da palavra, disse que a única coisa que tinha a dizer era simplesmente aquilo que um homem de bem não podia calar, como já declarara; por isso, limitar-se-ia a explicar o resto em duas palavras. E assim fez. Declarou-me que pedia a minha mão, que achava ser seu dever devolver-me a honra, que é rico, e que, após o casamento, me levaria com ele para a sua terra, na região das estepes. Tencionava passar ali o tempo na caça à lebre, não fazendo conta de voltar a S. Petersburgo, pois aborrecia a vida nas grandes capitais. Acrescentou ainda que teve aqui um sobrinho, estroina e pouco prometedor, a quem se propôs fazer perder as esperanças de ser seu herdeiro. Resolvera, por isso, casar-se, isto é, deseja herdeiros diretos. Depois, deteve-se em considerações acerca do nosso quarto; disse que não era nada para admirar encontrar-me doente vivendo num tugúrio destes, e augurou-me a morte para breve, no caso de continuar aqui. «Em S. Petersburgo, todas as residências são más», disse; e depois perguntou-me se não tinha desejo de alguma coisa. 

A sua proposta impressionou-me tanto que, de súbito, sem eu mesma saber o motivo, desatei a chorar. Atribuiu as lágrimas à gratidão e disse-me que estivera sempre convencido de que eu era uma boa moça, sensível e culta: mas que não se decidira há mais tempo a fazer-me aquela proposta, porque quisera antes informar-se pormenorizadamente da minha conduta. Falou-me então de si, contando-me que ouvira dizer que o senhor era um homem de bem, e declarou que não queria ficar a dever-lhe nada... Perguntou-me se quinhentos rublos seriam bastante para pagar os seus favores, e eu respondi-lhe, que o que o senhor tem feito por mim não há dinheiro que o pague. Ao ouvir isto, disse que tal ideia era um absurdo e que essas coisas estão bem mas é nos romances; que eu sou ainda muito nova e que vejo a vida através dos livros; mas que os romances só servem para sugerir ideias extravagantes às moças. Segundo ele, em geral os livros apenas concorrem para a corrupção dos costumes, e por isso detesta-os. Aconselhou-me a esperar pela sua idade para poder julgar os homens. «Só então — disse — poderá dizer que os conhece.» 

Depois convidou-me a refletir sobre a sua proposta e pesar maduramente os prós e os contras, pois não achava bem que eu, sem profunda meditação, desse passo tão importante. Acrescentou ainda que a falta de ponderação e as resoluções precipitadas são quase sempre a origem da desgraça das jovens sem experiência da vida; mas que, apesar de tudo, o seu maior desejo era obter de mim uma resposta afirmativa. Caso contrário, ver-se-ia forçado a desposar a filha de um comerciante de Moscovo, pois, como já dissera, tinha feito solene juramento de não deixar os seus bens ao estroina do sobrinho. Finalmente, levantou-se e colocou quinhentos rublos sobre o bastidor com que trabalhava, para alfinetes, segundo disse; eu quis levantar-me, mas ele não me deixou, quase à força. Para terminar, disse-me que lá na sua terra havia de engordar muito e ganhar cores de saúde, e que poderia dormir quanto quisesse. Segundo parece tem muito que fazer; disse que os negócios lhe ocupam quase todo o dia, e por essa razão só se demorara na minha companhia breves minutos. E dizendo isto, saiu. 

Já refleti muito sobre o assunto, e examinei-o de todos os lados. Por fim, meu bom amigo, tomei uma resolução: casar-me-ei com ele; devo aceitar a sua proposta. Só ele me pode livrar da vergonha, devolver-me a minha honra e preservar-me da pobreza e das dificuldades no futuro. Que outra coisa posso esperar do futuro ou pedir ao destino? Diz Fédora que não devemos brincar com a sorte; mas pergunta a si própria, entre soluços, se a isto se pode chamar sorte. Por mim, também não descubro outra solução para a minha vida, meu bom amigo. Que hei de fazer? Na luta pela existência já perdi a saúde. O trabalho ininterrupto... é superior às minhas forças. Servir a estranhos? Claro que a carreira que vou encetar também não será nenhum paraíso. Mas que devo fazer, meu amigo, que devo fazer? Que resolução tomar? 

Não pedi o seu conselho, porque queria meditar bem tudo, sozinha. A resolução que tomei e que já lhe dei a conhecer, mantém-se firme, e vou sem demora escrever a Buikov, que já deve estar impaciente pela minha resposta, participando-lhe que aceito. Disse-me que os negócios lhe tomavam quase todo o tempo, que não se podia demorar, e não podia, por causa destas bagatelas, alterar a sua vida. 

Só Deus, nos seus sagrados e impenetráveis desígnios sobre o meu futuro, sabe se vou ser feliz; mas a minha resolução está tomada. Dizem que Buikov é boa pessoa; se assim for, espero que venha a sentir por mim afeto, e que talvez eu também lhe ganhe algum. E que mais se pode esperar do nosso casamento? 

Ponho-o ao corrente de tudo, Makar Alexeievitch, porque sei que compreenderá a minha angústia. Não tente dissuadir-me do meu propósito, pois nada conseguiria. Se analisar bem todas as razões que me levaram a dar este passo, estou certa de que o seu coração aprovará o meu procedimento. A princípio, senti-me extremamente angustiada, mas agora já estou mais tranquila, O que me espera... não sei. Há de ser o que Deus quiser... 

Acaba de chegar Buikov e não posso terminar a carta. Ainda tinha muitas coisas para lhe dizer, mas Buikov já está à porta.



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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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