sexta-feira, 1 de março de 2019

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XIII — Quais eram as crenças do bispo

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo



XIII — 
Quais eram as crenças do bispo



Debaixo do ponto de vista da ortodoxia, é inútil sondar o bispo de Digne Almas como a dele inspiram-nos todo o respeito. Deve acreditar-se na consciência do justo pelo que ela própria afirma. Ainda quando não fora senão porque nós, a respeito de certas naturezas, admitimos o desenvolvimento possível de todas as belezas da virtude humana numa crença diferente da nossa.

Quais eram os seus sentimentos a respeito de tal ou tal dogma, a respeito de tal ou tal mistério? Esses segredos do foro íntimo apenas o túmulo os conhece. Do que estamos certos é de que nunca as dificuldades da fé foram para ele transformadas em hipocrisia. Não há coisa alguma que faça apodrecer o diamante. «Credo in Patrem», costumava ele repetir. Afora isto, as suas boas obras davam-lhe a satisfação que basta à consciência e que nos segreda: «Deus é contigo». 

O que julgamos dever notar é que afora e, por assim dizer, acima da sua fé, o bispo possuía um excesso de amor. Era por isso, quia multum amavit, que o julgavam vulnerável os «homens sérios», as «pessoas sisudas», a «gente sensata», locuções prediletas do nosso mesquinho mundo em que o egoísmo recebe o santo e a senha do pedantismo. Que excesso de amor era esse? 

Era uma benevolência serena, que abarcava todos os homens e às vezes chegava a estender-se até às coisas. Era afável para com todos e indulgente com as criaturas de Deus. Todo o homem, mesmo o mais bondoso, é dotado de uma dureza irrefletida, que se expande contra os animais. O bispo de Digne não era dotado dessa dureza, aliás, peculiar a muitos sacerdotes. Não atingia o exagero do brâmane, mas parecia ter meditado naquelas palavras do Eclesiastes: «Quem sabe para onde vão as almas dos animais?». 

As fealdades do aspecto, as disformidades do instinto, não o perturbavam nem indigitavam; pelo contrário, comoviam-no e quase o enterneciam. Parecia que, pensativo, procurava nelas, além da vida aparente, a causa, a explicação ou a desculpa; havia momentos em que parecia pedir a Deus comutações. Examinava sem cólera e com a atenção do linguista que decifra um palimpsesto, o caos que ainda existe na natureza. Este profundo meditar dava lugar a que ele às vezes proferisse ditos singulares. Uma manhã, andando a passear no jardim e supondo-se a sós, por isso que não via a irmã, que caminhava atrás dele, parou de súbito e, fitando um objecto que jazia no chão, o qual era nada menos que uma enorme aranha, negra, peluda, horrenda, murmurou, de modo que a irmã ouviu: 

— Pobre animal! Que culpa tem ele de ser assim? 

Porque razão havíamos de ocultar estas quase divinais criancices da bondade? São talvez puerilidades, mas puerilidades sublimes como as de S. Francisco de Assis e Marco Aurélio. Uma ocasião, torceu um pé só para não pisar uma formiga. 

Assim vivia aquele homem justo. As vezes adormecia no jardim, e então nada mais venerando do que a figura do bom bispo. 

Se dermos crédito às notícias que temos dos precedentes da sua vida, Monsenhor Bemvindo, na sua juventude e ainda mesmo no tempo da sua virilidade, foi homem de gênio áspero e até violento. 

A sua mansidão universal era mais resultado de uma grande convicção, que por entre os sucessos da vida se lhe fora lentamente infiltrando no coração e caindo na alma pensamento por pensamento, do que instinto da natureza A índole do homem pode como o rochedo, ser cavada por gotas de água, e essas concavidades nunca mais se desfazem, nunca mais se destroem. Em 1815, como nos parece já ter dito, contava ele setenta e cinco anos, mas parecia não ter mais de sessenta. Era baixo e um tanto gordo, gordura que combatia dando longos passeios a pé: tinha o andar firme e pouco se curvava, pormenor do qual nada pretendemos inferir; Gregório XVI, era desempenado e risonho aos oitenta anos, o que não obstava que fosse um mau bispo Monsenhor Bemvindo possuía o que o povo chama «um bonito rosto», porém, tão amável que fazia esquecer a beleza. 

Quando conversava com aquela infantil alegria que constituía uma das suas graças, parecia que a sua jovialidade se comunicava a quem se encontrava com ele e que todo ele respirava alegria. A frescura e rosado da tez, a alvura dos dentes, que ainda conservava todos e que mostrava quando ria, davam-lhe esse aspecto de franqueza e afabilidade, que faz com que se diga de um homem: «É um bom rapaz», e de um velho: «É um bom homem». 

Foi essa a impressão que ele produziu em Napoleão. No primeiro momento e para quem o via pela primeira vez, não passava, efetivamente, de um bom homem, porém, decorridas algumas horas de permanência junto dele, por pouco expansivo que estivesse, via-o transfigurar-se lentamente, assumindo uma expressão veneranda; a sua fronte elevada e séria, que as cãs tornavam augusta, era também augusta pela meditação; a majestade sobressaía-lhe da bondade sem que a bondade cessasse de resplandecer: a sua vista produzia a impressão que se sentiria ao ver um anjo, sorrindo, abrir lentamente as asas, sem deixar de sorrir. Um inexplicável respeito se apossava gradualmente do coração de quem o contemplava. Parecia a quem o via que tinha diante dos olhos uma dessas almas fortes, indulgentes e ricas de provações em que o pensamento é tão sublime, que não pode deixar de ser suave. 

A oração, a celebração dos ofícios religiosos, a esmola, a consolação dos aflitos, a cultura de um canteiro, a fraternidade, a frugalidade, a hospitalidade, o desapego, a confiança, o estudo, o trabalho, ocupavam-lhe todos os momentos da existência «Ocupavam» é o termo próprio, porque, efetivamente, cada dia de existência do bispo não tinha um momento vago de bons pensamentos, de boas palavras e de boas obras. 

Deixava, porém, de ser completo, se a chuva ou o frio o impedia de ir passear ao jardim uma ou duas horas antes de se deitar, depois de as duas mulheres se terem acomodado. Parecia ser para ele uma espécie de rito o preparar-se para o sono da meditação, na presença do grandioso espetáculo da noite. Às vezes, a hora bastante adiantada da noite, as duas mulheres, se acaso estavam acordadas, ouviam ainda o ruído dos seus vagarosos passos no jardim. Ali permanecia a sós consigo, em plácido recolhimento e adoração, comparando a serenidade do seu coração com a do éter, impressionado no meio das trevas pelos esplendores visíveis das constelações e pelos invisíveis esplendores de Deus, abrindo a alma aos pensamentos que descem do infinito. 

Em tais momentos, oferecendo o coração à hora em que as flores noturnas oferecem o seu perfume, aceso como uma lâmpada no meio da noite estrelada, enlevado no meio do cintilar universal da criação, nem ele mesmo saberia dizer o que se passava no seu espírito; sena evaporar-se dele e descer sobre ele o que quer que fosse. Misteriosas permutações entre os abismos da alma e os abismos do universo!

Meditava sobre a grandeza e presença de Deus; sobre a eternidade futura: mistério extraordinário; sobre a eternidade passada: mistério mais extraordinário ainda; em todos os infinitos que se lhe apresentavam ao espírito e que ele contemplava, sem pretender compreender o incompreensível. Não estudava Deus, admirava-o. Refletia sobre esses magníficos encontros de átomos que produzem o aspecto da matéria, revelam as forças provando-as, criam as individualidades na unidade, as proporções na extensão, o inumerável no infinito; que, por meio da luz, produzem a beleza, e de cujo acabamento e constante renovação resulta a vida e a morte. 

Sentava-se num banco de madeira, encostado a uma latada decrépita, e daí contemplava os outros através das sombras acanhadas e raquíticas das suas árvores de fruto. Aquele palmo de terra tão pobremente plantado, era-lhe caro e suficiente. Que mais necessitava o pobre velho, que dividia os ócios da sua existência, que tão curtos eram, entre a jardinagem de dia e a contemplação de noite? Aquele estreito recinto, com o céu por tecto, não lhe era bastante para poder adorar a Deus simultaneamente nas suas obras mais amenas e nas suas obras mais sublimes? Não era isto mais que suficiente? Um pequeno jardim para passear e a imensidade para meditar. 

Que mais podia ele querer? A seus pés, o que podia ser cultivado e dar fruto; por cima da cabeça, o que se podia estudar, o que era assunto de profunda meditação; algumas flores na terra e todas as estrelas do céu.




_____________________




Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862



________________________


Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


_________________________

Leia também:






Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 1

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 2

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XI — Restrição

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XII — Solidão de Monsenhor Bemvindo

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XIV — O modo de pensar de Monsenhor Bemvindo


Nenhum comentário:

Postar um comentário