quinta-feira, 14 de março de 2019

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (07)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



O Baile de Sceaux
A Henri Balzac, [46] seu irmão

Honoré

(Parte 7)


continuando...




Três ou quatro dias depois desse dia memorável, e por uma dessas belas manhãs de novembro que mostram aos parisienses seus bulevares varridos subitamente pelo frio picante de uma primeira geada, a srta. de Fontaine, envolta num casaco de peles, novo, cuja moda ela queria lançar, saíra com as cunhadas, contra as quais atirara, em outros tempos, seus mais ferinos epigramas. Motivava o passeio parisiense das três mulheres não tanto a vontade de estrear uma carruagem muito elegante e vestidos que deviam dar o tom às modas do inverno, como o desejo de ver uma capa que uma de suas amigas notara numa loja situada na esquina da rue de la Paix. Quando as três damas entraram na loja, a baronesa de Fontaine puxou Emília pela manga e mostrou-lhe Maximiliano Longueville sentado à caixa e ocupado, com uma graça mercantil, a dar o troco de uma moeda de ouro à vendedora com quem parecia estar em conferência. O belo desconhecido tinha na mão algumas amostras que não deixavam dúvida alguma sobre a sua honrosa profissão. Sem que ninguém o percebesse, Emília foi invadida por um frêmito gelado. Entretanto, graças à presença de espírito que a boa sociedade dá, dissimulou perfeitamente a raiva que lhe ia por dentro e respondeu à cunhada com um: “Eu já sabia!”, cuja riqueza de entonação e acento inimitável teria causado inveja à mais célebre atriz da época. Dirigiu-se para a caixa. Longueville ergueu a cabeça, pôs as amostras no bolso, graciosamente, e com um sangue-frio desesperado saudou a srta. de Fontaine e aproximou-se dela, fixando-a com um olhar penetrante.

— Senhorita — disse ele à vendedora, que o seguira com ar muito inquieto —, mandarei saldar essa conta, minha casa assim o exige. Mas tome — acrescentou ao ouvido da moça, entregando-lhe uma nota de mil francos —, tome, será um negócio entre nós. — Espero que me perdoe, senhorita — disse ele, voltando-se para Emília. — Terá a bondade de desculpar a tirania que exercem os negócios. 

— Mas creio, senhor, que isso me é absolutamente indiferente — respondeu a srta. de Fontaine, encarando-o com firmeza e com um ar de despreocupação zombeteira como se o visse pela primeira vez. 

— Fala seriamente? — perguntou Maximiliano com voz entrecortada. 

Emília dera-lhe as costas com incrível impertinência. Essas poucas palavras, proferidas em voz baixa, escaparam à curiosidade das duas cunhadas. Quando, depois de terem comprado a capa, as três damas voltaram para o carro, Emília, que estava sentada no banco da frente, não pôde deixar de envolver com um último olhar as profundezas daquela odiosa loja, onde viu Maximiliano de pé, com os braços cruzados, na atitude de um homem superior à desgraça que o atingia tão repentinamente. Os olhos de ambos se encontraram, despedindo olhares implacáveis. Cada um dos dois teve a esperança de ferir cruelmente o coração que amava. Num instante, estavam os dois tão longe um do outro, como se um estivesse na China e o outro na Groenlândia. A vaidade tem um hábito que disseca tudo. Presa do mais rude combate que possa agitar o coração de uma moça, a srta. de Fontaine colheu a mais farta messe de dores que os preconceitos e as pequenezas teriam jamais semeado numa alma humana. Seu rosto, antes viçoso e aveludado, estava sulcado por tons amarelados, manchas vermelhas, e por vezes a alvura de suas faces tornava-se subitamente esverdeada. Na esperança de ocultar sua perturbação às cunhadas, ela lhes mostrava rindo ou um transeunte ou uma toilette ridículos, mas seu riso era convulsivo. Sentia-se mais fundamente ferida pela compaixão silenciosa das cunhadas do que pelos epigramas com que se poderiam ter vingado dela. Empregou todo o seu espírito em arrastá-las a uma conversação na qual tentou exteriorizar sua ira por meio de paradoxos insensatos, despejando sobre os comerciantes as mais ferinas injúrias e epigramas de mau gosto. Ao chegar em casa, assaltou-a uma febre cujo caráter, de começo, ofereceu algum perigo. Ao cabo de um mês, os cuidados dos parentes, os do médico restituíram-na ao carinho da família. Todos acreditaram que aquela lição poderia servir para domar o caráter de Emília, a qual, insensivelmente, retomou seus hábitos e atirou-se novamente às atividades mundanas. Assegurou que não havia motivo para se envergonhar pelo fato de se ter enganado. Se tivesse, como o pai, alguma influência na Câmara, dizia ela, faria votar uma lei pela qual os comerciantes, principalmente os negociantes de fazenda, fossem marcados na testa, como os carneiros de Berry, até a terceira geração. Queria que somente os nobres tivessem o direito de usar esses antigos casacos franceses que tão bem sentavam aos cortesãos de Luís XV. Era, talvez, na sua opinião, uma desgraça para a monarquia que não houvesse nenhuma diferença entre um negociante e um par de França. Outros mil gracejos fáceis de adivinhar sucediam-se rapidamente quando um incidente imprevisto a levava para aquele assunto. Mas os que queriam a Emília notavam, através dos seus motejos, certos laivos de melancolia que lhes fez suspeitar que Maximiliano Longueville continuava a reinar naquele coração inexplicável. Por vezes ela tornava-se meiga como durante o período fugaz que vira nascer seu amor, mas em outras ocasiões mostrava-se mais insuportável que nunca. Todos, em silêncio, desculpavam as desigualdades de um gênio que tinha sua origem numa dor secreta e ao mesmo tempo conhecida. O conde de Kergarouët conseguiu alguma influência sobre ela, graças a um recrudescimento de prodigalidade, gênero de consolo que poucas vezes falha com as jovens parisienses. A primeira vez que a srta. de Fontaine compareceu a um baile foi no palácio do embaixador de Nápoles. No momento em que ela se colocou na mais brilhante quadrilha, viu, a poucos passos, o sr. Longueville, o qual fez um rápido sinal ao par dela. 

— Esse rapaz é seu amigo? — perguntou ela com ar de desdém ao seu par. 

— É apenas meu irmão — respondeu ele. 

Emília estremeceu. 

— Ah! — continuou ele, com entusiasmo — posso assegurar-lhe que é a mais bela alma que há no mundo... 

— Sabe o meu nome? — perguntou Emília, interrompendo-o com vivacidade.

— Não, senhorita. É um crime, confesso, não ter guardado um nome que está em todos os lábios, ou melhor, em todos os corações; mas tenho uma desculpa plausível: acabo de chegar da Alemanha. Meu embaixador, que está em Paris com licença, mandou-me esta noite aqui para servir de cavalheiro à sua amável esposa, que a senhorita pode ver lá, naquele canto. 

— Uma verdadeira máscara trágica — disse Emília depois de ter examinado a embaixatriz. 

— E, entretanto, é esse o seu semblante de baile — replicou o rapaz rindo. — Não tenho alternativa senão fazê-la dançar. Antes disso, porém, quis ter uma compensação. 

A srta. de Fontaine inclinou-se. 

— Muito me surpreendi — continuou o tagarela secretário da embaixada — ao encontrar meu irmão aqui. Ao chegar de Viena, soube que o pobre rapaz estava doente, de cama. Tinha a intenção de vê-lo antes de vir ao baile, mas a política nem sempre nos dá tempo para termos afeições de família. La padrona della casa não me permitiu subir ao apartamento do meu pobre Maximiliano. 

— Seu irmão não está como o senhor na diplomacia? — perguntou Emília. 

— Não — suspirou o secretário —, o pobre rapaz sacrificou-se por mim! Ele e minha irmã Clara desistiram da fortuna de meu pai, a fim de que este pudesse constituir-me um morgadio. Meu pai sonha com um pariato, aliás, como todos os que votam com o ministério. Tem promessa de ser nomeado — acrescentou em voz baixa. — Depois de ter juntado algum dinheiro, meu irmão associou-se a uma casa bancária, e sei que acaba de fazer com o Brasil um negócio que poderá torná-lo milionário. Se estou assim alegre hoje é porque pude contribuir, com minhas relações diplomáticas, para o êxito da especulação. Estou mesmo esperando com impaciência um aviso da legação brasileira, o qual será de molde a desanuviar-lhe a fronte. Como o acha? 

— Mas o semblante de seu irmão não me parece o de um homem preocupado por assunto de dinheiro. O jovem diplomata escrutou com um olhar rápido a fisionomia aparentemente calma de seu par

— Como! — disse ele sorrindo. — As senhoritas também adivinham os pensamentos de amor através das frontes mudas? 

— Seu irmão está apaixonado? — perguntou ela, deixando escapar um gesto de curiosidade. 

— Sim. Minha irmã Clara, com a qual ele tem cuidados maternais, escreveu-me que ele se havia enamorado, durante este verão, de uma lindíssima criatura, mas desde então não tive mais notícias desse amor. Acredita que o pobre rapaz se levantava às cinco horas da manhã para ir despachar seus negócios a fim de estar às quatro horas, no campo, junto à sua bela? Mas também estropiou um belo cavalo de raça que eu lhe tinha mandado. Perdoe a minha tagarelice, senhorita: acabo de chegar da Alemanha, como lhe disse. Faz um ano que não ouço falar corretamente o francês, estou privado de fisionomias francesas e farto de alemães, de tal forma que na minha ânsia patriótica creio que era capaz de falar às figuras de um candelabro parisiense. Ademais, se estou conversando com uma franqueza pouco conveniente para um diplomata, a culpa é sua, senhorita. Pois não foi a senhorita quem me mostrou meu irmão? Quando se trata dele, sou inesgotável. Quisera poder dizer à terra toda quanto ele é bom e generoso. Não se tratava de nada menos do que de cem mil libras de renda que dão as terras de Longueville. 

Se a srta. de Fontaine obteve essas revelações importantes, deveu-as em parte à habilidade com que soube interrogar seu confiante par, desde que soube que ele era irmão do seu amor desdenhado. 

— Pode o senhor ver seu irmão vendendo musselinas e tecidos de algodão sem sentir algum pesar? — perguntou Emília depois de ter feito a terceira figura da contradança. 

— De onde sabe isso? — perguntou o diplomata. — Graças a Deus eu sei, como aprendiz de diplomata, mesmo deixando correr uma torrente de palavras, só dizer o que quero. 

— Foi o senhor quem o disse — assegurou-lhe. 

O sr. de Longueville fitou a srta. de Fontaine com um assombro em que havia perspicácia. Uma suspeita invadiu-lhe o espírito. Interrogou sucessivamente os olhos do irmão e os de seu par, adivinhou tudo, apertou as mãos uma com a outra, ergueu os olhos para o teto, pôs-se a rir e disse: 

— Não passo de um grande tolo! A senhorita é a mais linda moça do baile, meu irmão olha-a disfarçadamente, está dançando apesar da febre, e a senhorita finge não o ver. Faça a felicidade dele — disse ao reconduzi-la para junto do velho tio —, não ficarei enciumado, mas sempre estremecerei um pouco ao chamá-la minha irmã...

Entretanto, os dois namorados deviam ser tão inexoráveis um quanto o outro, para si mesmos. Cerca das duas horas da manhã, serviram uma ceia numa imensa galeria onde, para deixar as pessoas de um mesmo grupo se reunirem à vontade, as mesas tinham sido colocadas como num restaurante. Por um desses acasos que sempre acontecem aos que se amam, a srta. de Fontaine sentou-se a uma mesa vizinha daquela onde se achavam as pessoas mais distintas da festa. Maximiliano fazia parte desse grupo. Emília, que prestou um ouvido atento à conversação de seus vizinhos, pôde ouvir uma dessas palestras que com tanta facilidade se estabelecem entre moças e moços que têm o espírito e o porte de Maximiliano Longueville. A interlocutora do jovem banqueiro era uma duquesa napolitana, cujos olhos despediam clarões e cuja alva pele tinha o brilho do cetim. A intimidade que o jovem Longueville aparentava ter com ela feriu tanto mais a srta. de Fontaine porquanto acabava de restituir ao amado vinte vezes mais ternura do que a que lhe tributava antes. 

— Sim, senhor, na minha terra, o verdadeiro amor sabe fazer toda espécie de sacrifícios — dizia a duquesa requebrando-se. 

— É que lá sois mais sentimentais do que as francesas — disse Maximiliano, cujo olhar incendiado caiu sobre Emília. — Estas são só vaidade. 

— Senhor — replicou a moça com vivacidade —, não é uma ação censurável caluniar a própria pátria? A dedicação existe em todos os países. 

— Acredita, senhorita — perguntou a italiana com um sorriso sardônico —, que uma parisiense seja capaz de acompanhar seu bem-amado por toda parte? 

— Ah! Entendamo-nos, senhora. Vai-se a um deserto viver numa tenda, não se vai sentar numa loja. 

Ela terminou seu pensamento deixando escapar um gesto de desdém. Assim, pois, a influência exercida sobre Emília por sua funesta educação matou pela segunda vez sua felicidade nascente e fez com que falhasse sua vida. A aparente frieza de Maximiliano e o sorriso de uma mulher arrancaram-lhe um daqueles sarcasmos cujo pérfido gozo continuava a seduzi-la. 

— Senhorita — disse-lhe Longueville em voz baixa, aproveitando o rumor que as mulheres fizeram ao se levantar da mesa —, ninguém fará votos mais ardentes por sua felicidade do que eu. Permita-me afirmar-lhe isso ao despedir-me de ti. Partirei dentro de poucos dias para a Itália. 

— Com uma duquesa, sem dúvida?

— Não, senhorita, mas talvez com uma doença mortal. 

— Não é uma quimera? — perguntou Emília, atirando-lhe um olhar inquieto. 

— Não — respondeu ele —, há feridas que não cicatrizam nunca. 

— Não partirá — disse a imperiosa moça. 

— Partirei — afirmou gravemente Maximiliano. 

— Encontrar-me-á casada, na volta, previno-o — disse ela com faceirice. 

— Desejo-o. 

— Que impertinente! — exclamou ela. Como se vinga cruelmente! 

Quinze dias depois, Maximiliano Longueville partiu com sua irmã Clara para as temperadas e poéticas regiões da bela Itália, deixando a srta. de Fontaine presa do mais violento arrependimento. O jovem secretário da embaixada solidarizou-se com a causa do irmão e soube tirar uma vingança ruidosa dos desdéns de Emília, divulgando os motivos da ruptura dos dois namorados. Devolveu com usura ao seu par os sarcasmos outrora por ela atirados contra Maximiliano e fez sorrir mais de uma excelência descrevendo a bela inimiga dos balcões, a amazona que pregava a cruzada contra os banqueiros, a moça cujo amor se havia evaporado diante de um retalho de musselina. O conde de Fontaine teve de empregar seu prestígio a fim de obter para Augusto Longueville uma missão na Rússia, único meio de subtrair a filha ao ridículo que aquele jovem e perigoso inimigo derramava sobre ela a mancheias. Pouco depois, o ministério, vendo-se obrigado a fazer um recrutamento de pares, a fim de sustentar suas opiniões aristocráticas que estavam cambaleando na nobre Câmara, ante a voz de um ilustre escritor [84] nomeou o sr. Guiraudin de Longueville par de França e visconde. O sr. de Fontaine também obteve o pariato, recompensa devida não só à sua fidelidade durante os dias sombrios, como também ao seu nome que estava fazendo falta na Câmara hereditária. 

Por essa época, Emília, que atingira a maioridade, fez, sem dúvida, sérias reflexões sobre a vida, porquanto mudou sensivelmente de tom e de maneiras. Em vez de se exercitar em dizer maldades ao tio, cercou-o dos mais afetuosos cuidados, alcançando-lhe a muleta com uma ternura perseverante, que fazia os transeuntes sorrir; oferecia-lhe o braço, saía com ele de carro e acompanhava-o em todos os seus passeios. Chegou mesmo a convencê-lo que o cheiro do cachimbo não a incomodava e lia-lhe a sua querida Quotidienne em meio a baforadas de fumo que o malicioso marinheiro lhe atirava propositalmente. Aprendeu o jogo do piquet para servir de parceira ao velho conde, e, finalmente, aquela moça tão caprichosa ouvia com atenção as narrativas que o tio repetia periodicamente, do combate da Belle Poule, as manobras da La Ville de Paris, a primeira expedição do sr. de Suffren ou sobre a batalha de Abukir. [85] Conquanto o velho lobo do mar tivesse dito muitas vezes que conhecia suficientemente sua longitude e sua latitude para se deixar capturar por uma jovem corveta, numa bela manhã os salões de Paris receberam a notícia de que a srta. de Fontaine se havia casado com o conde de Kergarouët. A jovem condessa deu brilhantes festas para se aturdir, mas no fundo desse turbilhão somente achou o vácuo. O luxo só imperfeitamente ocultava o vazio e a infelicidade de sua alma amargurada. Quase sempre, não obstante a ostentação ruidosa de uma alegria fingida, seu belo semblante deixava transparecer uma surda melancolia. Emília, aliás, mostrava-se atenciosa e terna para com seu velho marido, o qual, muitas vezes, ao ir para os seus aposentos, à noite, ao som de uma alegre orquestra, dizia não mais reconhecer-se, pois não julgava ter de esperar setenta e dois anos para embarcar como piloto na Belle Émilie, depois de ter servido durante vinte anos numa galera conjugal. 

A conduta da condessa tinha tal caráter de severidade que mesmo a crítica mais perspicaz nada achava para censurar. Os observadores julgavam que o vice-almirante se havia reservado o direito de dispor da própria fortuna como meio de acorrentar mais seguramente a mulher. Essa suposição era uma injúria ao tio e à sobrinha. A atitude dos dois esposos foi, de resto, tão sabiamente calculada que se tornou quase impossível aos moços interessados em adivinhar os segredos daquele casal saber se o velho conde tratava a esposa como marido ou como pai. Ouviram-no dizer muitas vezes que recolhera a sobrinha como uma náufraga e que, em outros tempos, ele nunca abusara da hospitalidade quando lhe acontecia salvar um inimigo do furor das tempestades. Embora a condessa aspirasse reinar sobre Paris e que tentasse ombrear com as senhoras [86] duquesas de Maufrigneuse, de Chaulieu, as marquesas d’Espard e d’Aiglemont, as condessas Féraud, de Montcornet, de Restaud, a sra. de Camps e a srta. des Touches, nem assim cedeu ao amor do jovem visconde de Portenduère, que fez dela seu ídolo. 

Dois anos depois de seu casamento, dos tradicionais salões do Faubourg SaintGermain, onde admiravam seu caráter digno dos tempos antigos, Emília ouviu anunciarem o sr. visconde de Longueville, e, no canto do salão onde ela acompanhava o bispo de Persépolis no seu piquet, sua emoção não pôde ser notada por ninguém. Ao volver a cabeça, vira entrar seu antigo pretendente em todo o viço de sua mocidade. A morte do pai e a do irmão, vítima este último da inclemência do clima de Petersburgo, haviam colocado sobre a cabeça de Maximiliano as plumas hereditárias do chapéu do pariato. Sua fortuna igualava seus conhecimentos e seus méritos. Justamente, na véspera, sua moça e ardorosa eloquência tinha esclarecido a assembleia. Naquele momento ele surgia ante os olhos da triste condessa, livre e aureolado, com todos os dons que ela sonhara para o seu ídolo. Todas as mães que tinham filhas por casar faziam graciosas gentilezas a um rapaz dotado das virtudes que nele supunham ao admirar-lhe a distinção; mas, melhor do que todos, Emília sabia possuir ele essa firmeza de caráter na qual mulheres prudentes veem um penhor de felicidade. Ela lançou um olhar ao almirante, o qual, segundo sua expressão familiar, parecia firme ainda por muito tempo na sua ponte de comando, e maldisse dos erros de sua infância. 

Nesse momento, o sr. de Persépolis disse-lhe com a sua gentileza episcopal: 

— Minha bela senhora, acabais de rejeitar o rei de copas, [87] ganhei. Mas não lamenteis vosso dinheiro, reservo-o para os meus jovens seminaristas.



Paris, dezembro de 1829.



Fim... que não termina aqui



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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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[84] Evidente alusão a Chateaubriand. 
[85] A primeira expedição do sr. Suffren, A batalha de Abukir: o bailio de Suffren venceu a esquadra inglesa nas batalhas do Cabo Verde, de Madras e de Negapatam (1781-83). Em Abukir, pelo contrário, foi Nelson que venceu a esquadra francesa (1798). 
[86] Embora [...] tentasse ombrear com as senhoras: todas as elegantes cujo nome se segue são personagens de A comédia humana; logo encontraremos uma delas, Luísa de Chaulieu, pois é ela uma das protagonistas do romance Memórias de duas jovens esposas, que nesta edição segue-se a O baile de Sceaux. A respeito do visconde de Portenduère, ver a nota 25. 
[87]O rei de copas: em francês, “roi de coeur”, o que dá à frase do bispo de Persépolis o valor de um bonito trocadilho, que ela não tem em português. Notemos que a história da bela e impertinente Emília não acaba aqui. Ela há de casar-se, depois da morte do conde de Kergarouët, com o marquês Carlos de Vandenesse; encontrá-los-emos no romance Uma filha de Eva.  


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Leia também:






Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (fim)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (01)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (02)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (03)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (04)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (05)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (06)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1)



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