Fiódor Dostoiévski
36.
18 de setembro
Deu-se hoje em nossa casa um acontecimento deveras triste, inexplicável e absolutamente inesperado. Mas eu vou contar-lhe as coisas pela respetiva ordem.
Antes de mais nada, comunico-lhe que o nosso pobre Gorchkov foi absolvido no processo. O caso já há muito que estava julgado, mas só hoje de manhã foi lida a sentença, que o ilibava de toda a culpa. Não conseguiram qualquer prova da matéria da acusação — descuido, negligência, etc. O Tribunal reconheceu a sua absoluta honorabilidade e condenou o negociante a pagar a Gorchkov aquela avultada quantia de que lhe falei. Assim, de súbito, a sua miserável situação melhorou, pois o dinheiro será, sem dúvida, arrancado ao negociante por via judicial. Mas o mais importante, naturalmente, era o pobre ver-se limpo daquela mancha que a denúncia pusera na sua honra. Numa palavra: conseguira ver realizados todos os seus desejos.
Chegou a casa pelas três horas da tarde, mas com tal aspeto que dificilmente se reconhecia. Trazia a cara branca como a cal, os lábios tremiam-lhe e ao mesmo tempo sorria. Correu para a mulher e os filhos e abraçou-os. Nós todos, num magote, dirigimo-nos para ele, a fim de o felicitarmos. A nossa atitude, creio, comoveu-o muito, pois desfazia-se em agradecimentos e apertou a mão de cada um de nós repetidas vezes. É verdade; até parecia que crescera; pelo menos, conservava-se mais direito do que de costume. Nos olhos já não se lhe viam lágrimas, antes ostentava neles um brilho extraordinário. Como o pobre estava emocionado! Não parava quieto no sítio, por dois minutos que fosse; pegava numa coisa para logo a largar, e tão depressa se apoiava nas costas de uma cadeira, sorria e pronunciava palavras de agradecimento, como se sentava e voltava a levantar-se para se sentar outra vez, e murmurava frases ininteligíveis. Uma vez disse: «Já posso deixar aos meus filhos a minha honra, sim, a minha honra, uma boa reputação...» E como ele dizia aquilo! Tinha os olhos inundados de lágrimas, e a nós pouco faltava também para chorar. Ratazaiev, decerto para lhe insuflar coragem, disse-lhe:
— Ora! A honra! De que serve a honra, meu amigo, quando não há que comer? Dinheiro, meu velho, dinheiro, isso é o principal! O dinheiro, esse sim, deve agradecê-lo a Deus!
— Ora! A honra! De que serve a honra, meu amigo, quando não há que comer? Dinheiro, meu velho, dinheiro, isso é o principal! O dinheiro, esse sim, deve agradecê-lo a Deus!
E deu-lhe uma amigável palmada no ombro.
Tive a impressão de que as palavras de Ratazaiev ofenderam um pouco Gorchkov. Não é que ele tivesse mostrado cara de ressentido; mas olhou para ele de um modo um tanto estranho e não fez qualquer comentário, limitando-se apenas a afastar do seu ombro a mão do literato. Melhor fora não o ter feito, minha querida. De resto, não temos todos o mesmo feitio. Eu, por exemplo, se me visse em idênticas circunstâncias, não levaria a mal um gesto assim. Às vezes, meu amor, dizem-se coisas absolutamente descabidas mesmo sem qualquer motivo, apenas por excesso de ternura ou numa efusão de cordialidade... Contudo, isto não é da minha conta...
— Sim — prosseguiu Gorchkov , após uma pausa —; o dinheiro também é uma boa coisa, graças a Deus. Graças a Deus!
E repetia várias vezes em voz baixa: «Graças a Deus! Graças a Deus!»
A mulher arranjou-lhe uma refeição mais abundante e melhor do que o habitual, e foi mesmo a nossa patroa que a cozinhou, pois, reconheço, no fundo, ela não é má pessoa. Mas até à hora de comer Gorchkov não teve um momento de descanso. Ia e vinha de um lado para o outro da casa, aproximando-se de cada um de nós, como se o tivéssemos chamado. Vinha direito à gente, nem mais nem menos, sorrindo a seu modo; sentava-se numa cadeira, dizia qualquer coisa, ou deixava-se estar calado... e depois lá ia outra vez. No quarto do marinheiro, onde naquela altura se encontravam a jogar, pegou nas cartas na mão e os outros convidaram-no para o jogo. E para ali esteve joga que joga, mas de tal modo que desnorteava os companheiros. O que valeu foi ele largar as cartas depois de ter perdido três ou quatro partidas.
— Não, só tenho isto — disse —; só tenho isto.
E saiu do quarto.
Encontrei-me com ele no corredor. Pegou-me nas mãos e fitou-me detidamente, mas de modo estranho. Depois estreitou-mas e afastou-se, sempre a sorrir, com aquele sorriso singular, impassível como o sorriso de um louco. A mulher chorava de alegria e nos seus aposentos tudo tinha o ar de festa. A refeição não durou muito e, depois de comer, Gorchkov disse então à mulher:
— Agora queria descansar um bocadinho.
E deitou-se na cama.
Daí a instantes chamou a filhinha, pôs-lhe as mãos na testa e começou a acariciá-la, Em seguida dirigiu-se outra vez à mulher:
— Onde está Petinka? O nosso Petinka? — perguntou. — O nosso Petinka...
A mulher benzeu-se e respondeu-lhe que a criança tinha morrido.
— Sim, é verdade; bem sei. Petinka está no céu!
A mulher notava que o marido não era o mesmo de antes; verificou que os acontecimentos daquele dia lhe haviam transtornado as ideias e tinham causado nele profunda impressão. Por isso, aconselhou-o a fazer por dormir e descansar, enquanto ela faria o mesmo.
— Sim... Vou ver se durmo... um bocadinho apenas...
Ao dizer isto, deitou-se de costas. Conservou-se assim uns momentos e, por fim, deu uma volta, fez menção de querer dizer alguma coisa. A mulher perguntou-lhe:
— Que dizes, homem?
Mas não teve resposta. «Deve ter adormecido», pensou a mulher, e saiu do quarto para conversar um pouco com a patroa. Voltou ao cabo de uma hora. O marido ainda não acordara, dormia a sono solto, sem se mexer. «Está a dormir sossegado — disse, sentando-se e começando a trabalhar em qualquer coisa. — Com o sono, ganhará vontade para o trabalho.»
Contou que estivera sentada à cabeceira mais de meia hora, mas não pôde dizer ao certo em que pensava, por mais que puxasse pela ideia; apenas sabe que se esquecera por completo do marido. De súbito, porém, voltou à realidade, despertada por uma estranha agitação que sentiu dentro de si. Foi então que deu conta do silêncio sepulcral em que se encontrava mergulhado o aposento.
Olhou, para a cama e verificou que o marido se achava deitado como hora e meia antes. Aproximou-se dele e tocou-lhe... Mas sentiu-o frio, porque estava morto, minha querida; Gorchkov morrera repentinamente, como que fulminado por um raio. Só Deus sabe a causa da sua morte!
Este acontecimento causou-me tal impressão que ainda agora não consigo associar bem as ideias. Não compreendo como um homem pode morrer assim, sem mais nem menos. Coitado do pobre Gorchkov! E logo morrer hoje, precisamente num dia para ele de tanta alegria! Porquê? Sim, é o destino, o destino! A mulher está debulhada em lágrimas, ainda transtornada por tão horrível e imprevisto choque. A filhinha, essa acocorou-se num canto, assustada. Entretanto, no seu quarto, entram e saem constantemente. Tem de ser feito ao cadáver um exame médico... ou lá o que é; não sei como isso se chama. Que desgraça, querida, que desgraça! É muito triste pensar que de um momento para outro se morre, sem mais nem menos, e lá se vai!...
Seu
Makar Dievuchkin
Makar Dievuchkin
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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