sexta-feira, 19 de abril de 2019

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXV - Visão Medieva

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 







VISÃO MEDIEVA


Quando em outras remotas primaveras, 
Na idade-média, sob fuscos tetos, 
Dois amantes passavam, mil aspectos 
Tinham aquelas medievais quimeras.

Nas armaduras rígidas e austeras, 
Na aérea perspectiva dos objetos 
Andavam sonhos e visões, diletos 
Segredos mortos nas extintas eras.

O fantasma do amor pelos castelos 
Mudo vagava entre os luares belos, 
Dos corredores nas paredes frias.

Não raro se escutava um som de passos, 
Rumor de beijos, frêmito de abraços 
Pelas caladas, fundas galerias.





ROMA PAGÃ


Na antiga Roma, quando a saturnal fremente 
Exerceu sobre tudo o báquico domínio, 
Não era raro ver nos gozos do triclínio 
A nudez feminina imperiosa e quente.

O corpo de alabastro, olímpico e fulgente, 
Lascivamente nu, correto e retilíneo, 
Num doce tom de cor, esplêndido e sanguíneo, 
Tinha o assombro da carne e a forma da serpente.

A luz atravessava em frocos d’oiro e rosa 
Pela fresca epiderme, ebúrnea e cetinosa, 
Macia, da maciez dulcíssima de arminhos.

Menos raro, porém, do que a nudez romana 
Era ver borbulhar, em férvida espadana 
A púrpura do sangue e a púrpura dos vinhos.





ESPIRITUALISMO


Ontem, à tarde, alguns trabalhadores, 
Habitantes de além, de sobre a serra, 
Cavavam, revolviam toda a terra, 
Do sol entre os metálicos fulgores.

Cada um deles ali tinha os ardores 
De febre de lutar, a luz que encerra 
Toda a nobreza do trabalho e – que erra 
Só na cabeça dos conspiradores,

Desses obscuros revolucionários 
Do bem fecundo e cultural das leivas 
Que são da Vida os maternais sacrários.

E pareceu-me que do chão estuante 
Vi porejar um bálsamo de seivas 
Geradoras de um mundo mais pensante.




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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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