domingo, 28 de abril de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XIX

PENSAR FAZ SOFRER


O grotesco dos acontecimentos de cada dia nos oculta a verdadeira infelicidade das paixões.

 BARNAVE







AO RECOLOCAR OS móveis ordinários no quarto que o sr. de La Mole havia ocupado, Julien encontrou uma folha de papel muito espesso, dobrada em quatro. Leu, ao final da primeira página:

Para S. E. o marquês de La Mole, par de França, cavaleiro das ordens do rei etc. etc.

Era uma petição, numa letra grossa de cozinheira.

“SENHOR MARQUÊS, 
“Em toda a minha vida tive princípios religiosos. Em Lyon, expus-me às bombas, por ocasião do cerco de 93, de execrável memória. Comungo, vou todo domingo à missa na igreja paroquial. Nunca faltei ao dever pascal, mesmo em 93, de execrável memória. Minha cozinheira – antes da Revolução eu tinha criadagem – faz abstinência às sextas-feiras. Gozo em Verrières de uma consideração geral e, ouso dizer, merecida. Marcho sob o pálio nas procissões, ao lado do sr. cura e do sr. prefeito. Nessas grandes ocasiões, carrego um grande círio por mim adquirido. Em Paris, no ministério das Finanças, estão os certificados do que digo. Peço ao sr. marquês a agência de loteria de Verrières, que em breve estará vaga de uma maneira ou de outra, estando o titular muito doente, e tendo aliás votado mal nas eleições etc. 
DE CHOLIN.” 

À margem dessa petição havia uma anotação assinada De Moirod, e que começava por esta frase:

“Tive a honra de falar ontem da boa pessoa que faz esse pedido” etc. 

Assim, mesmo esse imbecil do Cholin mostra-me o caminho que devo seguir, pensou Julien. 

Oito dias depois da passagem do rei de *** por Verrières, de todas as inumeráveis mentiras, tolas interpretações, discussões ridículas etc. etc., tendo por objeto, sucessivamente, o rei, o bispo de Agde, o marquês de La Mole, as 10 mil garrafas de vinho, o pobre acidentado Moirod que, na esperança de uma condecoração, só saiu de casa um mês depois de sua queda, o que subsistia era a indecência extrema de terem nomeado para a guarda de honra Julien Sorel, filho de um carpinteiro. É o que diziam, sobre esse ponto, os ricos fabricantes de tecidos pintados que, noite e dia, pregavam a igualdade no café, até ficarem roucos. Aquela mulher arrogante, a sra. de Rênal, fora a autora dessa abominação. O motivo? Os belos olhos e o rosto jovem do padrezinho Sorel explicavam tudo.

Pouco depois do retorno a Vergy, Stanislas-Xavier, o caçula dos meninos, adoeceu com febre, o que ocasionou imediatamente remorsos terríveis na sra. de Rênal. Pela primeira vez ela censurou-se por seu amor de uma forma constante; pareceu compreender, como por milagre, o erro enorme em que se deixara arrastar. Embora de um caráter profundamente religioso, até então não havia pensado na extensão de seu crime aos olhos de Deus. 

Outrora, no convento do Sagrado Coração, amara a Deus com paixão; assim, ela o temia na atual circunstância. Os combates que dilaceravam sua alma eram tanto mais terríveis quanto não havia nenhuma razão para seus temores. Julien percebeu que o menor argumento a irritava, em vez de acalmá-la; ela via nisso a linguagem do inferno. Entretanto, como o próprio Julien gostava muito do pequeno Stanislas, ele achou melhor falar da doença dele, que logo se agravou. Com isso, o remorso contínuo tirou da sra. de Rênal até a faculdade de dormir; ela não saía de um silêncio feroz: se tivesse aberto a boca, teria sido para confessar seu crime a Deus e aos homens. 

– Suplico-lhe, dizia-lhe Julien assim que se viam a sós, não fale a ninguém; que eu seja o único confidente de seus sofrimentos. Se ainda me ama, não fale: suas palavras não podem tirar a febre ao nosso Stanislas. 

Mas essas consolações não produziam nenhum efeito; ele não sabia que a sra. de Rênal pusera na cabeça a ideia de que, para apaziguar a cólera do Deus zeloso, teria que odiar Julien ou ver seu filho morrer. Era por sentir que não podia odiar seu amante que ela estava tão infeliz. 

– Afaste-se de mim, disse ela um dia a Julien; em nome de Deus, abandone esta casa: é sua presença que está matando meu filho. 

Deus castiga-me, acrescentou em voz baixa, ele é justo; adoro sua equidade; meu crime é terrível, e eu vivia sem remorsos! Foi o primeiro sinal do abandono de Deus: devo ser punida duplamente. 

Julien ficou profundamente tocado. Não podia ver nisso nem hipocrisia, nem exagero. Ela acredita matar seu filho ao me amar, e no entanto a infeliz me ama mais que seu filho. É o remorso que a está matando, não há dúvida; eis o que é grandeza nos sentimentos. Mas como pude inspirar tal amor, eu, tão pobre, tão mal-educado, tão ignorante, às vezes tão grosseiro em minhas maneiras? 

Uma noite, o estado do menino agravou-se. Por volta das duas da madrugada, o sr. de Rênal veio vê-lo. O menino, consumido pela febre, estava muito vermelho e não pôde reconhecer o pai. De repente, a sra. de Rênal lançou-se aos pés do marido; Julien viu que ela ia contar tudo e condenar-se para sempre. 

Por sorte, esse movimento singular incomodou o sr. de Rênal. 

– Adeus! Adeus!, disse ele, afastando-se. 

– Não, escuta-me, gritou a mulher, de joelhos diante dele. Fica sabendo toda a verdade. Sou eu que estou matando meu filho. Estou tirando a vida que lhe dei. O céu me castiga, aos olhos de Deus sou culpada de assassinato. É preciso que eu me perca e me humilhe a mim mes​ma; talvez esse sacrifício apazigue o Senhor. 

Se o sr. de Rênal fosse um homem de imaginação, teria compreendido tudo. 

– Ideias romanescas, exclamou, desvencilhando-se da mulher que procurava abraçar seus joelhos. Isso não passa de ideias romanescas! Julien, mande chamar o médico quando amanhecer. 

E retirou-se para deitar-se. A sra. de Rênal ficou de joelhos, meio desfalecida, repelindo com um movimento convulsivo Julien, que queria socorrê-la. 

Julien ficou atônito. Então é isso o adultério!, pensou... Seria possível que aqueles padres tão velhacos... tivessem razão? Eles que cometem tantos pecados teriam o privilégio de conhecer a verdadeira teoria do pecado? Que coisa mais estranha! 

Vinte minutos depois de o sr. de Rênal ter-se retirado, Julien ainda via a mulher que ele amava com a cabeça apoiada à pequena cama do filho, imóvel e quase sem sentidos. Eis aí uma mulher de gênio superior, reduzida ao máximo de infelicidade porque me conheceu, ele pensou. 

As horas avançam rapidamente. Que posso fazer por ela? É preciso decidir. Não se trata mais de mim agora. Que me importam os homens e seus pobres disfarces? Que posso fazer por ela?... abandoná-la? Mas seria deixá-la exposta à dor mais terrível. O autômato do marido mais a prejudica do que a serve. Ele dirá uma palavra dura, por ser grosseiro; ela é capaz de enlouquecer, de jogar-se pela janela. 

Se a abandono, cesso de vigiá-la, ela confessará tudo. E sabe lá se ele não fará um escândalo, apesar da herança que ela deve receber. Ela poderá dizer tudo, ó meu Deus! Àquele filho da... do padre Maslon, que, a pretexto da doença de uma criança de seis anos, não sai mais desta casa, e não sem propósito. Em sua dor e em seu temor a Deus, ela esquecerá tudo o que sabe do homem, vendo nele apenas o padre. 

– Vai embora!, disse-lhe repentinamente a sra. de Rênal, abrindo os olhos. – Eu daria mil vezes minha vida para saber o que te pode ser mais útil, respondeu Julien: nunca te amei tanto, meu anjo; ou melhor, somente a partir deste instante, começo a te adorar como mereces sê-lo. Que seria de mim longe de ti, e com a consciência de que és infeliz por minha causa? Mas meus sofrimentos não importam. Partirei, sim, meu amor. Mas, se te abandono, se deixo de velar por ti, de estar constantemente entre ti e teu marido, dirás tudo a ele, te condenarás. Pensa que é com ignomínia que ele te expulsará de casa; Verrières inteira, Besan​çon inteira falarão desse escândalo. Todas as culpas cairão sobre ti; jamais te reabilitarás dessa vergonha... 

– É o que peço, ela exclamou, pondo-se de pé. Sofrerei, tanto melhor. 

– Mas com esse escândalo abominável farás também a infelicidade dele! 

– Estarei me humilhando, lançando-me na lama; e assim talvez possa salvar meu filho. Essa humilhação, aos olhos de todos, não seria uma penitência pública? Tanto quanto minha fraqueza é capaz de julgar, não é esse o maior sacrifício que posso fazer a Deus?... Desse modo, talvez ele queira aceitar minha humilhação e deixar-me meu filho! Mostra-me um outro sacrifício mais penoso e o farei. 

– Deixa que eu me castigue. Também sou culpado. Queres que me retire para a Trapa? A austeridade dessa vida pode apaziguar teu Deus... Ah, céus! Pudera tomar para mim a doença de Stanislas!... 

– Oh! Tu o amas, tu, disse a sra. de Rênal, levantando-se e lançando-se nos braços dele.

Mas no mesmo instante o repeliu com horror. 

– Acredito em ti! Acredito em ti! Ela continuou, depois de ajoelhar-se de novo; ó meu único amigo! Por que não és o pai de Stanislas? Então não seria um pecado horrível amar-te mais que a teu filho. 

– Aceitas que eu permaneça e que daqui por diante te ame apenas como a um irmão? É a única expiação razoável, ela pode apaziguar a cólera do Altíssimo. 

– E eu, ela exclamou, levantando-se e segurando a cabeça de Julien entre as duas mãos e mantendo-a diante dos olhos à distância, e eu, te amarei como a um irmão? Está em meu poder amar-te como a um irmão? 

Julien desfazia-se em lágrimas. 

– Eu te obedecerei, disse ele caindo a seus pés, te obedecerei, não importa o que me ordenes; é tudo o que me resta a fazer. A cegueira tomou conta de meu espírito, não vejo que partido tomar. Se te abandono, dizes tudo a teu marido, te condenas e a ele também. Depois desse ri​dí​culo, jamais ele será nomeado deputado. Se permaneço, julgas-me a causa da morte de teu filho e morrerás de dor. Queres experimentar o efeito de minha partida? Se quiseres, aceito punir-me por nosso erro deixando-te por oito dias. Irei passá-los no retiro que indicares. Na abadia de Bray-le-Haut, por exemplo: mas jura-me, durante minha ausência, nada confessar a teu marido. Considera que não poderei mais voltar, se falares. 

Ela prometeu, ele partiu, mas foi chamado de volta ao cabo de dois dias. 

– Sem ti é impossível cumprir meu juramento. Falarei a meu marido, se não estiveres aqui constantemente para me ordenares com teus olhos a calar-me. Cada hora desta vida abominável parece-me durar um dia. 

Por fim, o céu apiedou-se dessa mãe infeliz. Aos poucos Stanislas deixou de correr perigo. Mas o espelho partira-se, sua razão havia conhecido a extensão do pecado; ela não pôde mais retomar o equilíbrio. Os remorsos permaneceram e foram o que deviam ser num coração tão sincero. Sua vida foi o céu e o inferno: o inferno, quando não via Julien, o céu, quando estava a seus pés. Não tenho mais nenhuma ilusão, ela dizia a ele, mesmo nos momentos em que ousava entregar-se a todo o seu amor: estou condenada, irremediavelmente condenada. És jovem, cedeste às minhas seduções, o céu pode te perdoar; mas, quanto a mim, estou condenada. Sei disso por um sinal certo. Tenho medo: quem não teria medo diante da visão do inferno? Mas, no fundo, não me arrependo. Cometeria de novo meu pecado se ele precisasse ser cometido. Que apenas o céu não me puna já neste mundo e em meus filhos, e terei mais do que não mereço. Mas tu, pelo menos, meu Julien, ela exclamava noutros momentos, és feliz? Achas que te amo o bastante? 

A desconfiança e o orgulho sofredor de Julien, que carecia sobretudo de um amor de sacrifício, não resistiram diante de um sacrifício tão grande, tão indubitável e feito a todo instante. Ele adorava a sra. de Rênal. Por mais que ela seja nobre, e eu o filho de um operário, ela me ama... Não sou junto dela um camareiro encarregado das funções de amante. Afastado esse temor, Julien cedeu a todas as loucuras do amor, a suas incertezas mortais. 

– Pelo menos, dizia ela ao vê-lo duvidar sobre seu amor, que eu te faça muito feliz durante os poucos dias que vamos passar juntos! Apressemo-nos; talvez amanhã não esteja mais contigo. Se o céu me punir em meus filhos, em vão buscarei viver apenas para amar-te, não vendo que é meu crime que os mata. Não poderei sobreviver a esse golpe. Mesmo que o quisesse, não poderia; eu enlouqueceria. Ah! Se eu pudesse tomar para mim teu pecado, assim como me ofereceste tão generosamente tomar a febre ardente de Stanislas! 

Essa grande crise moral mudou a natureza do sentimento que unia Julien à sua amante. Seu amor não foi mais apenas admiração pela beleza, orgulho de possuí-la. 

Desde então, a felicidade deles era de uma natureza superior, a chama que os devorava foi mais intensa. Tinham transportes cheios de loucura. Essa felicidade teria parecido maior aos olhos do mundo. Mas não reencontraram mais a serenidade deliciosa, a ventura sem nuvens, a felicidade fácil dos primeiros momentos de amor, quando o único receio da sra. de Rênal era não ser amada o bastante por Julien. A felicidade deles tinha às vezes a fisionomia do crime. 

Nos momentos mais felizes e aparentemente mais tranquilos, a sra. de Rênal exclamava de repente, apertando a mão de Julien num movimento convulsivo: 

– Ah! Meu Deus! Vejo o inferno. Que suplícios horríveis! Bem que os mereci!, e abraçava-o, colando-se a ele como a hera ao muro. 

Julien tentava em vão acalmar essa alma agitada. Ela tomava-lhe a mão, cobrindo-a de beijos. Depois, recaía num devaneio sombrio: O inferno, dizia, seria um favor para mim; teria ainda alguns dias na terra a passar com ele, mas o inferno já neste mundo, a morte de meus filhos... Contudo, talvez a esse preço meu crime fosse perdoado... Ah! Meu Deus, não me concedei o perdão a esse preço! Essas pobres crianças não vos ofenderam; eu, só eu sou culpada: amo um homem que não é meu marido. 

Julien via em seguida a sra. de Rênal alcançar momentos aparentemente tranquilos. Procurava conter-se, não queria envenenar a vida de quem ela amava. 

Em meio a essas alternâncias de amor, de remorsos e de prazer, os dias passavam para eles com a rapidez de um raio. Julien perdeu o hábito de refletir. 

A srta. Elisa tinha um pequeno processo em Verrières e foi até lá acompanhá-lo. Encontrou o sr. Valenod muito irritado com Julien. Ela odiava o preceptor e falava-lhe dele com frequência. 

– O senhor não me perdoaria se eu dissesse a verdade!... disse ela ao sr. Valenod. Os patrões estão todos de acordo entre si quanto às coisas importantes... Nunca perdoam certas confissões aos pobres criados... 

Com essas frases de costume, que a impaciente curiosidade do sr. Valenod descobriu um meio de abreviar, ele ficou sabendo das coisas mais mortificantes para seu amor-próprio. 

Aquela mulher, a mais distinta da região, que durante seis anos ele cercara de tantas atenções, e infelizmente com o conhecimento de todos, aquela mulher tão orgulhosa, cujos desdéns tantas vezes haviam-no feito corar, acabava de fazer-se amante de um operariozinho disfarçado de preceptor. E, a fim de que nada faltasse ao despeito do sr. diretor do asilo, a sra. de Rênal adorava esse amante. 

– E o sr. Julien, acrescentava a camareira com um suspiro, nem precisou de esforço para fazer essa conquista, não saiu de sua frieza de costume em relação à sra. de Rênal. 

Elisa só tivera certeza desse namoro no campo, mas acreditava que ele datava de muito antes. 

– É certamente por isso, acrescentou com despeito, que a um tempo atrás ele recusou desposar-me. E eu, imbecil, que ia consultar a sra. de Rênal, que lhe pedia para falar com o preceptor. 

Nessa mesma noite, o sr. de Rênal recebeu da cidade, junto com seu jornal, uma longa carta anônima que lhe informava em detalhes o que se passava em sua casa. Julien viu-o empalidecer ao ler essa carta escrita em papel azulado e lançar para ele olhares carregados. Durante toda a noite o prefeito permaneceu carrancudo, e em vão Julien buscou ser agradável pedindo-lhe explicações sobre a genealogia das melhores famílias da Borgonha.




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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)


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