terça-feira, 23 de abril de 2019

Gente Pobre - 38. Como pode deixar-me aqui sozinho? - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


38.




23 de setembro




Minha querida Bárbara Alexeievna:



Apresso-me a responder-lhe. Sim, meu amor, apresso-me a exprimir-lhe o meu espanto. De passagem, comunico-lhe que ontem foi enterrado o pobre Gorchkov... Sim; Buikov portou-se honradamente, isso é verdade, querida Bárbara; mas diga-me: já lhe deu a sua palavra? Claro que Deus é quem tudo dispõe. É assim, e assim tem de ser, quer dizer, também nisto se tem de cumprir a vontade do Criador. A Providência Divina, embora imperscrutável, nunca tem outro fim senão a felicidade dos mortais, e a sorte e a vontade de Deus são uma e a mesma coisa. 

A Fédora, claro, comunga nos mesmos sentimentos. Estou certo de que será feliz, minha querida; vai viver na riqueza e na abundância, meu amor, meu anjo; não me canso de lhe chamar assim... Mas diga-me uma coisa, apenas uma, querida Bárbara: porque tem tanta pressa? Ah, pois é, os negócios!... O senhor Buikov tem negócios... Naturalmente... E quem há que os não tenha? Por isso, também ele os pode ter. Vi-o quando ele saía de sua casa. É um homem imponente, mesmo demasiado imponente, quer dizer, a sua presença impõe respeito. Mas não é deste pormenor que eu pretendo agora falar; trata-se de outra coisa. Já não sou o mesmo, devo dizer-lhe. De futuro, como nos poderemos escrever? E eu... sim, eu... como poderei continuar aqui sozinho? O meu coração, meu anjo, avalia e pesa tudo o que me dizia na sua carta, as razões que a levaram a decidir-se, etc. 

Já tinha vinte folhas copiadas quando, de súbito, recebi a notícia. Meu amor, meu amor! Antes de sair daqui, precisa de comprar um sem-número de coisas; vários pares de sapatos e diversos vestidos, não é verdade? Pois bem: lembra-se daquele armazém da Gorcohovaya de que uma vez lhe falei? Ainda se recorda, decerto, da descrição que lhe fiz daquela rua. Mas não. Que estou eu para aqui a dizer? Que ideia fará de mim? Que pensará, minha querida? Não; não deve, é-lhe completamente impossível sair assim sem mais nem quê. Precisa de fazer muitas compras, mas para isso tem de alugar um carro. Demais, com um tempo destes! Como vê, chove a bom chover, ininterruptamente e, além disso, está muito frio. 

Era capaz de lhe arrefecer, de lhe gelar esse coraçãozinho da minha alma. 

Diz a minha boa amiga que receia os estranhos, e agora está resolvida a viajar com esse desconhecido! Como pode deixar-me aqui sozinho? Sim. A Fédora garante que uma feliz sorte lhe está reservada a si... Mas essa Fédora é uma velha cruel e quer arrebatar-me o único bem que me resta. Vai hoje à igreja, à oração da tarde? Eu também vou, minha querida, só para a ver lá! Buikov tem razão em afirmar que a Bárbara é uma boa moça, sensível e culta. Contudo, acho que ele faria melhor se casasse com a filha do tal comerciante. Que lhe parece, meu amor? Que se case com essa menina de Moscovo!... 

Irei visitá-la, minha querida, depois de escurecer; daqui a uma hora ter-me-ão aí. Agora já anoitece muito cedo, de modo que não demorarei. Dentro de uma hora, sem falta! Agora está aí Buikov, bem sei; mas logo que ele se vá embora... Espere, pois, por mim, querida, que vou sem falta...



Makar Dievuchkin




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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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