quinta-feira, 11 de abril de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XVIII

UM REI EM VERRIÈRES


Servis apenas para serdes jogados aí como um cadáver do povo, sem alma, e em cujas veias não corre mais sangue?

DISCURSO DO BISPO, 
na capela de São Clemente




NO DIA 3 DE SETEMBRO, às dez da noite, um gendarme despertou Verrières inteira ao subir a rua principal a galope; trazia a notícia de que Sua Majestade, o rei de *** , chegava no domingo seguinte, e já era terça-feira. O governador autorizava, isto é, exigia a formação de uma guarda de honra; era preciso demonstrar toda a pompa possível. Um estafeta foi enviado a Vergy. O sr. de Rênal chegou de noite e encontrou a cidade agitada. Cada um tinha suas pretensões; os menos ocupados alugavam sacadas para ver a entrada do rei. 

Quem comandaria a guarda de honra? O sr. de Rênal percebeu de imediato o quanto era importante, no interesse das casas ameaçadas de recuo, que o sr. de Moirod tivesse esse comando, o que podia contar pontos para o cargo de primeiro adjunto. Nada se podia dizer quanto à devoção do sr. de Moirod, ela estava acima de qualquer comparação, mas ele jamais montara a cavalo. Era um homem de trinta e seis anos, tímido sob todos os pontos de vista, e que temia igualmente as quedas e o ridículo. 

O prefeito mandou chamá-lo às cinco horas da manhã. 

– O senhor está vendo que peço sua colaboração como se já ocupasse o cargo ao qual todos os homens de bem o indicam. Nesta desafortunada cidade, as manufaturas prosperam, o partido liberal torna-se milionário, aspira ao poder e saberá utilizar tudo como arma. Consultemos o interesse do rei, da monarquia e, antes de tudo, o interesse de nossa santa religião. A quem acha que podemos confiar, senhor, o comando da guarda de honra? 

Apesar do medo horrível que tinha de cavalo, o sr. de Moirod acabou por aceitar essa honra como um martírio. “Saberei adotar uma postura adequada”, ele disse ao prefeito. Mas restava-lhe pouco tempo para mandar arrumar os uniformes utilizados sete anos antes, por ocasião da passagem de um príncipe da família real.

Às sete horas, a sra. de Rênal chegou de Vergy com Julien e as crianças. Encontrou sua sala repleta de damas liberais que pregavam a união dos partidos e vinham pedir-lhe que exortasse o marido a conceder aos delas um lugar na guarda de honra. Uma dizia que, se seu marido não fosse escolhido, iria à bancarrota, de desgosto. A sra. de Rênal logo despachou toda aquela gente. Ela parecia muito ocupada. 

Julien ficou surpreso e sobretudo aborrecido por ela não lhe revelar o que a agitava. Eu tinha previsto, ele pensou com amargura, seu amor se eclipsa diante da felicidade de receber um rei em sua casa. Todo esse alvoroço a deslumbra. Só me amará de novo quando as ideias de sua casta não lhe perturbarem mais a cabeça.

E, o que é mais surpreendente, amou-a ainda mais por isso. 

Os tapeceiros começavam a encher a casa, longa​mente ele esperou em vão o momento de dizer-lhe uma palavra. Encontrou-a por fim saindo do quarto dele, levando uma de suas roupas. Estavam a sós, ele quis falar-lhe. Mas ela retirou-se, recusando a escutá-lo. – Sou muito tolo em amar essa mulher, a ambição a enlouquece tanto quanto ao marido. 

De fato, uma ambição a possuía: um de seus grandes desejos, que ela jamais confessara a Julien por receio de chocá-lo, era vê-lo deixar, nem que fosse por um dia, seu triste traje preto. Com uma habilidade realmente admirável numa mulher tão natural, ela obteve primeiro do sr. de Moirod, e a seguir do sr. subprefeito de Maugiron, que Julien fosse nomeado guarda de honra, de preferência a cinco ou seis moços, filhos de fabricantes muito ricos, dois dos quais, pelo menos, eram de uma piedade exemplar. O sr. Valenod, que tencionava emprestar sua caleche às mulheres mais bonitas da cidade e fazer que admirassem seus belos normandos, consentiu em ceder um dos cavalos a Julien, a pessoa que ele mais odiava. Mas todos os guardas de honra possuíam, ou obtinham de empréstimo, um daqueles belos trajes azul-celeste com dragonas de coronel, prateadas, que haviam brilhado sete anos antes. A sra. de Rênal queria um traje novo, e restavam-lhe somente quatro dias para encomendar e fazer vir de Besançon o uniforme, as armas, o chapéu etc., tudo o que compõe um guarda de honra. O mais curioso é que ela achava imprudente mandar fazer o traje de Julien em Verrières. Queria surpreendê-lo, a ele e à cidade. 

Terminado o trabalho com os guardas de honra e com o espírito público, o prefeito teve de ocupar-se com uma grande cerimônia religiosa; o rei de *** não queria passar por Verrières sem visitar a famosa relíquia de são Clemente conservada em Bray-le-Haut, a uma légua da cidade. Desejava-se um clero numeroso, era a questão mais difícil de resolver; o sr. Maslon, o novo pároco, queria a todo custo evitar a presença do sr. Chélan. Em vão o sr. de Rênal lhe explicava que isso seria imprudente. O marquês de La Mole, cujos antepassados foram por muito tempo governadores da província, fora designado para acompanhar o rei de ***. Ele conhecia há trinta anos o abade Chélan. Certamente pediria notícias dele ao chegar a Verrières, e, se soubesse que caíra em desgraça, era capaz de ir buscá-lo na pequena casa onde se retirara, acompanhado de todo o cortejo de que pudesse dispor. Seria uma afronta! 

– Estarei desonrado aqui e em Besançon, respondia o abade Maslon, se ele aparecer em minha paróquia. Um jansenista, meu Deus! 

– Não importa o que pense, meu caro abade, replicava o sr. de Rênal, não exporei a administração de Verrières a receber uma afronta do sr. de La Mole. O senhor não o conhece; comporta-se bem na corte; mas aqui, na província, é um gracejador satírico, debochado, que busca apenas embaraçar as pessoas. Unicamente para divertir-se, é capaz de nos cobrir de ridículo aos olhos dos liberais. 

Foi apenas na noite de sábado para domingo, após três dias de negociações, que o orgulho do abade Maslon curvou-se diante do medo do prefeito, que se transformava em coragem. Foi preciso escrever uma carta melosa ao abade Chélan, rogando-lhe comparecer à cerimônia da relíquia de Bray-le-Haut, se sua idade avançada e suas enfermidades o permitissem. O sr. Chélan pediu e obteve um convite para Julien, que devia acompanhá-lo na qualidade de subdiácono.

Desde o amanhecer de domingo, milhares de camponeses que chegavam das montanhas vizinhas inundaram as ruas de Verrières. Fazia um belo dia de sol. Enfim, por volta das três da tarde, toda essa multidão agitou-se: avistava-se um grande fogo sobre um rochedo a duas léguas de Verrières. Esse sinal anunciava que o rei acabava de entrar no território do departamento. Imediatamente, o som de todos os sinos e as descargas repetidas de um velho canhão espanhol pertencente à cidade indicaram sua alegria por aquele grande acontecimento. Metade da população subiu aos telhados. Todas as mulheres estavam nas sacadas. A guarda de honra pôs-se em movimento. As pessoas admiravam os brilhantes uniformes, reconhecendo um parente, um amigo. Zombavam do medo do sr. de Moirod, cuja mão prudente a todo instante estendia-se para agarrar o arção da sela. Mas uma observação fez esquecer todas as outras: o primeiro cavaleiro da nona fila era um rapaz muito bonito, de aspecto frágil, que a princípio não foi reconhecido. Logo, um grito de indignação, de alguns, e o silêncio de espanto, de outros, anunciaram uma sensação geral. Reconheciam nesse jovem, montado num dos cavalos normandos do sr. Valenod, o pequeno Sorel, filho do carpinteiro. Elevou-se um brado contra o prefeito, sobretudo entre os liberais. Quê! Só porque esse operariozinho disfarçado de padre era o preceptor de seus filhos, ele tinha a audácia de nomeá-lo guarda de honra, em detrimento dos srs. tais e tais, ricos fabricantes! – Esses senhores, dizia uma banqueira, deveriam insultar esse moço insolente, nascido na lama. – Ele é esperto e carrega um sabre, respondia o vizinho; é bastante desleal para cortar-lhes a cara. 

Os comentários da sociedade nobre eram mais perigosos. As damas perguntavam-se se era do prefeito apenas que provinha essa grande inconveniência. Em geral, sabiam de seu desprezo pela origem plebeia. 

Enquanto era o alvo de tantos comentários, Julien sentia-se o mais feliz dos homens. Ousado por natureza, conduzia-se a cavalo melhor que a maioria dos jovens dessa cidade das montanhas. Via, nos olhos das mulheres, que falavam dele.

Suas dragonas eram as mais brilhantes, porque novas. Seu cavalo empinava-se a todo momento; ele estava no auge da alegria. 

Sua felicidade não teve mais limites quando, ao passar junto à velha fortaleza, o disparo do pequeno canhão fez seu cavalo sair da fila. Por sorte não caiu; a partir desse momento, sentiu-se um herói. Era ajudante de ordens de Napoleão e comandava a artilharia.

Havia uma pessoa mais feliz que ele. Primeiro ela o vira passar por uma das janelas do palácio municipal; embarcando a seguir numa caleche, e dando rapidamente uma grande volta, chegou em tempo para estremecer quando seu cavalo o tirou fora da fila. Por fim, sua caleche saindo a todo galope por uma outra entrada da cidade, ela conseguiu chegar à estrada por onde o rei devia passar, e pôde seguir a guarda de honra a vinte passos de distância, em meio a uma nobre poeira. Dez mil camponeses gritaram: Viva o rei!, quando o prefeito teve a honra de discursar para Sua Majestade. Uma hora depois, quando o rei, tendo escutado todos os discursos, ia entrar na cidade, o pequeno canhão voltou a dar tiros precipitados. Mas então ocorreu um acidente, não para os artilheiros que ha​viam feito suas provas em Leipzig e em Montmirail, mas para o futuro primeiro adjunto, sr. de Moirod. Seu cavalo o depositou maciamente no único lodaçal que havia na estrada, o que causou um rebuliço, pois era preciso tirá-lo dali para que a carruagem do rei pudesse passar.

Sua Majestade desceu na bela igreja nova, que naquele dia estava ornada de todas as suas cortinas carmesins. O rei devia jantar e em seguida tornar a subir na carruagem para ir visitar a célebre relíquia de são Clemente. Assim que o rei chegou à igreja, Julien partiu a galope para a casa do sr. de Rênal. Lá, suspirando, tirou seu belo uniforme azul-celeste, seu sabre, suas dragonas, para vestir novamente o traje preto puído. Tornou a montar a cavalo e em poucos instantes estava em Bray-le-Haut, situada no alto de uma bela colina. O entusiasmo multiplica esses camponeses, pensou Julien. Em Verrières ninguém consegue mexer-se, e eis aqui mais de 10 mil em torno dessa antiga abadia. Em parte arruinada pelo vandalismo revolucionário, ela fora magnificamente reconstruída depois da Restauração, e começavam a falar de milagres. Julien alcançou o abade Chélan, que o repreendeu severamente e lhe entregou uma batina e uma sobrepeliz. Ele vestiu-se rapidamente e seguiu o sr. Chélan, que ia reunir-se com o jovem bispo de Agde. Este era um sobrinho do sr. de La Mole, recentemente nomeado, e que fora encarregado de mostrar a relíquia ao rei. Mas não puderam encontrar esse bispo. 

O clero impacientava-se, aguardando seu chefe no claustro sombrio e gótico da antiga abadia. Haviam sido reunidos vinte e quatro párocos para representar o antigo cabido de Bray-le-Haut, composto, antes de 1789, de vinte e quatro cônegos. Depois de terem deplorado durante três quartos de hora a juventude do bispo, os párocos julgaram que era conveniente que o decano deles fosse até o Monsenhor para avisá-lo que o rei ia chegar, e que era o momento de dirigir-se ao coro. A idade avançada do sr. Chélan fizera-o decano; apesar da irritação que demonstrara a Julien, ele fez-lhe um sinal para que o acompanhasse. Julien vestia muito bem sua sobrepeliz. Por meio de não se sabe qual procedimento de toalete eclesiástica, conseguira alisar seus belos cabelos encaracolados; mas, por um esquecimento que redobrou a cólera do sr. Chélan, sob as longas dobras da batina ainda se viam as esporas da guarda de honra. 

Chegando aos aposentos do bispo, lacaios cobertos de galões mal dignaram-se responder ao velho cura que o Monsenhor não podia ser visto. Zombaram dele quando quis explicar que, na qualidade de decano do cabido de Bray-le-Haut, tinha o privilégio de ser admitido junto ao bispo oficiante. 

O caráter altaneiro de Julien ficou chocado com a insolência dos lacaios. Pôs-se a percorrer os dormitórios da antiga abadia, forçando todas as portas que encontrava. Uma muito pequena cedeu a seus esforços e ele viu-se numa peça em meio aos camareiros do Monsenhor, vestidos de preto e com uma tira ao pescoço. Ante seu ar apressado, esses senhores julgaram-no enviado pelo bispo e deixaram-no passar. Ele deu alguns passos e achou-se numa imensa sala gótica extremamente sombria, toda guarnecida de carvalho escuro; com exceção de uma só, as janelas em ogiva haviam sido muradas com tijolos. Nada disfarçava a grosseria desse remendo de pedreiro, que formava um triste contraste com a antiga magnifi​cência da guarnição de madeira. Nos dois lados dessa sala famosa entre os antiquários borgonheses, e que o duque Carlos, o Temerário, fizera construir, por volta de 1470, em expiação de algum pecado, havia assentos de madeira ricamente esculpidos. Neles viam-se, representados em madeiras de diferentes cores, todos os mistérios do Apo​calipse. 

Essa magnificência melancólica, degradada pela visão dos tijolos nus e do estuque ainda branco, tocou Julien. Ele deteve-se, em silêncio. Na outra extremidade da sala, perto da única janela pela qual a luz penetrava, viu um espelho móvel em mogno. Um jovem, com uma túnica violeta e uma sobrepeliz rendada, mas com a cabeça descoberta, estava parado a três passos do espelho. Esse móvel parecia estranho em tal lugar, e sem dúvida fora trazido até ali da cidade. A Julien pareceu que o jovem estava irritado; com a mão direita dava gravemente bênçãos, voltado para o espelho. 

Que pode significar isso?, pensou Julien. Será uma cerimônia preparatória que esse jovem padre cumpre? Talvez seja o secretário do bispo... ele será insolente como os lacaios... Paciência! vamos ver. 

Avançou e percorreu lentamente a sala ao comprido, sempre com os olhos fixos na única janela e observando aquele jovem que continuava a dar bênçãos executadas lentamente, mas interminavelmente, sem repousar um instante. 

À medida que se aproximava, distinguiu melhor seu ar aborrecido. A riqueza da sobrepeliz rendada fez Julien involuntariamente estacar a alguns passos do magnífico espelho. 

É meu dever falar, disse enfim a si mesmo; mas a beleza da sala o emocionara, e ele sentia-se antecipadamente ferido com as palavras duras que ouviria. 

O jovem o viu pelo espelho, virou-se e, abandonando subitamente seu ar irritado, disse-lhe num tom mais suave: 

– Então, senhor, arranjaram-na finalmente? 

Julien ficou estupefato. Quando esse jovem virou-se em sua direção, ele viu a cruz em seu peito: era o bispo de Agde. Tão jovem, pensou Julien; no máximo seis ou oito anos mais velho que eu. 

E envergonhou-se de suas esporas. 

– Monsenhor, ele respondeu timidamente, fui mandado aqui pelo decano do cabido, sr. Chélan. 

– Ah! falaram-me muito bem dele, disse o bispo, num tom polido que aumentou ainda mais o encantamento de Julien. Mas peço-lhe perdão, senhor, tomei-o pela pessoa que deve trazer-me a mitra. Acondicionaram-na muito mal em Paris, o tecido de prata foi horrivelmente danificado em cima. Isso causará uma péssima impressão, acrescentou o bispo com uma voz triste, e ainda por cima fazem-me esperar! 

– Monsenhor, vou buscar a mitra, se Vossa Eminência o permite. 

Os belos olhos de Julien produziram seu efeito. 

– Vá, senhor, respondeu o bispo com uma polidez encantadora; preciso dela sem demora. Estou desolado por fazer esperar os senhores do cabido. 

Quando Julien chegou ao meio da sala, voltou-se em direção ao bispo e viu que ele recomeçara a dar bênçãos. O que isso pode ser?, perguntou-se Julien. Certamente uma preparação eclesiástica necessária para a cerimônia que acontecerá. Quando chegou à peça onde permaneciam os camareiros, viu a mitra nas mãos de um deles. Cedendo contra a vontade ao olhar imperioso de Julien, eles entregaram-lhe a mitra do Monsenhor. 

Sentiu-se orgulhoso de levá-la: ao atravessar a sala, caminhava lentamente; segurava-a com respeito. Encontrou o bispo sentado diante do espelho; mas, de tempo em tempo, sua mão direita, embora fatigada, dava ainda a bênção. Julien ajudou-o a pôr a mitra. O bispo sacudiu a cabeça. 

– Ah! Ela se sustentará, disse a Julien com um ar contente. Pode afastar-se um pouco? 

Então o bispo andou depressa até o meio da sala; depois, aproximando-se do espelho a passos lentos, retomou o ar aborrecido e passou a dar bênçãos com gravidade. 

Julien estava imóvel de espanto; era tentado a compreender, mas não ousava. O bispo deteve-se e, olhando-o como quem perde rapidamente a gravidade, perguntou. 

– Que diz da minha mitra, senhor, está bem? 

– Muito bem, Monsenhor. 

– Não está muito para trás? Isso teria um aspecto um pouco tolo; mas não convém tampouco usá-la em cima dos olhos, como um barrete militar. 

– Ela parece-me estar muito bem. 

– O rei de *** está acostumado a um clero venerável e certamente muito grave. Não gostaria, sobretudo por causa de minha idade, de parecer muito leviano. 

E o bispo pôs-se de novo a andar dando bênçãos.

É claro, pensou Julien, ousando enfim compreender, ele exercita-se em dar a bênção. 

Depois de alguns instantes, o bispo disse: 

– Estou pronto. Vá, senhor, avisar o decano e os membros do cabido. 

Em breve, o sr. Chélan, acompanhado dos dois párocos mais idosos, entrou por uma grande porta magni​ficamente esculpida, e que Julien não havia notado. Mas desta vez ficou em seu lugar, o último de todos, e só pôde ver o bispo por cima dos ombros dos eclesiásticos que se comprimiam em multidão a essa porta. 

O bispo atravessava lentamente a sala; quando chegou ao umbral da porta, os padres formaram uma procissão. Após um pequeno momento de desordem, a procissão começou a andar entoando um salmo. O bispo avançava por último, entre o sr. Chélan e um outro padre muito velho. Julien logo esgueirou-se para junto do Mon​senhor, como auxiliar do abade Chélan. Seguiram pelos longos corredores da abadia de Bray-le-Haut: apesar do sol forte, eles eram escuros e úmidos. Finalmente chegaram ao pórtico do claustro. Julien estava estupefato de admiração por uma cerimônia tão bela. A ambição despertada pela jovem idade do bispo, a sensibilidade e a requintada polidez desse prelado disputavam seu coração. Essa polidez era muito diferente da do sr. de Rênal, mesmo nos seus dias bons. Quanto mais nos elevamos nos escalões da sociedade, pensou Julien, mais encontramos essas maneiras encantadoras. 

Entraram na igreja por uma porta lateral; de repente, um barulho assustador fez ressoar as antigas abóbadas. Julien acreditou que elas desabavam. Era ainda o pequeno canhão; arrastado por oito cavalos a galope, acabava de chegar; e, acionado imediatamente pelos artilheiros de Leipzig, disparava cinco tiros por minutos, como se os prussianos estivessem diante dele.

Mas esse ruído admirável não produziu mais efeito sobre Julien, ele não pensava mais em Napoleão e na glória militar. Tão jovem, pensava, e ser bispo de Agde! Mas onde fica Agde? E quanto isso rende? 200, 300 mil francos, talvez? 

Os lacaios do Monsenhor apareceram com um pálio magnífico, o sr. Chélan segurou uma das hastes, mas na verdade foi Julien que a carregou. O bispo postou-se embaixo. Realmente, ele conseguira dar a impressão de uma idade avançada; a admiração de nosso herói não teve mais limites. O que não se faz com habilidade!, pensou.

O rei entrou. Julien teve a felicidade de vê-lo de muito perto. O bispo saudou-o com unção, e sem esquecer um traço de polida comoção diante de Sua Majestade. 

Não repetiremos aqui a descrição das cerimônias de Bray-le-Haut; durante quinze dias, elas encheram as colunas de todos os jornais do departamento. Julien ficou sabendo, pelo discurso do bispo, que o rei descendia de Carlos, o Temerário. 

Mais tarde, coube às funções de Julien verificar as contas do que havia custado essa cerimônia. O sr. de La Mole, que obtivera um bispado para o seu sobrinho, quis fazer-lhe a cortesia de encarregar-se de todas as despesas. Somente a cerimônia de Bray-le-Haut custou 3.800 francos. 

Depois do discurso do bispo e da resposta do rei, Sua Majestade colocou-se sob o pálio, a seguir ajoelhou-se muito devotamente sobre uma almofada perto do altar. O coro estava cercado de cadeiras, elevadas dois degraus acima do chão. Era no degrau inferior que Julien estava sentado aos pés do sr. Chélan, mais ou menos como um caudatário junto a seu cardeal, na capela Sistina, em Roma. Houve um Te Deum, aspersão de incenso, infinitas descargas de fuzilaria e artilharia; os aldeões estavam inebriados de felicidade e devoção. Uma jornada como essa desfaz a obra de cem edições dos jornais jacobinos. 

Julien estava a seis passos do rei, que rezava realmente com fervor. Ele observou, pela primeira vez, um homem de olhar espirituoso e que vestia uma roupa quase sem enfeites, mas trazia uma fita azul-celeste por cima dessa roupa muito simples. Estava mais perto do rei que muitos outros senhores, cujas vestes tinham tantos bordados de ouro que, segundo a expressão de Julien, não se via o tecido. Soube, alguns momentos depois, que era o sr. de La Mole. Julgou seu aspecto altaneiro e mesmo insolente. 

Esse marquês não deve ser polido como meu querido bispo, pensou. Ah! O estado eclesiástico torna as pessoas doces e modestas. Mas o rei veio venerar a relíquia e não estou vendo nenhuma. Onde estará São Clemente? 

Um pequeno clérigo, seu vizinho, disse-lhe que a venerável relíquia estava no alto do prédio numa capela-ardente. 

O que é uma capela-ardente?, pensou Julien. 

Mas não quis pedir a explicação dessa palavra. Sua atenção redobrou. 

Em caso de visita de um príncipe soberano, a etiqueta manda que os cônegos não acompanhem o bispo. Mas, ao pôr-se em marcha para a capela-ardente, o Mon​se​nhor de Agde chamou o abade Chélan; Julien ousou segui-lo. 

Depois de subirem uma longa escada, chegaram a uma porta extremamente pequena, mas cujos batentes góticos eram dourados com magnificência. Esse trabalho parecia ter sido feito na véspera. 

Diante da porta estavam reunidas, de joelhos, vinte e quatro moças, pertencentes às famílias mais distintas de Verrières. Antes de abrir a porta, o bispo ajoelhou-se no meio dessas moças muito bonitas. Enquanto ele rezava em voz alta, elas pareciam não poder deixar de admirar suas belas rendas, seu aspecto gracioso, tão jovem e tão doce. Tal espetáculo fez nosso herói perder o que lhe restava de razão. Naquele instante, ele teria combatido pela Inquisição, e de boa-fé. A porta abriu-se de repente. A capelinha pareceu como que inflamada de luz. Viam-se, no altar, mais de mil círios dispostos em oito fileiras separadas entre si por buquês de flores. O perfume suave do incenso mais puro saía em turbilhão pela porta do santuário. A capela, recentemente dourada, era bastante pequena, porém muito elevada. Julien observou que havia no altar círios com mais de quatro metros de altura. As moças não puderam reter um grito de admiração. Só haviam entrado no pequeno vestíbulo da capela as vinte e quatro moças, os dois padres e Julien. 

Logo chegou o rei, seguido apenas pelo sr. de La Mole e por seu camareiro-mor. Os próprios guardas permaneceram do lado de fora, ajoelhados e apresentando armas. 

Sua Majestade precipitou-se, mais do que se pôs, sobre o genuflexório. Foi só então que Julien, colado contra a porta dourada, avistou, por baixo do braço descoberto de uma moça, a encantadora estátua de São Clemente. Estava oculto sob o altar, em trajes de jovem soldado romano. Tinha no pescoço um largo ferimento de onde o sangue parecia correr. O artista superara a si mesmo; seus olhos moribundos, mas cheios de graça, estavam semicerrados. Um bigode incipiente ornava essa boca encantadora, que, mesmo fechando-se, parecia ainda rezar. A essa visão, a moça ao lado de Julien desfez-se em lágrimas, uma das quais caiu sobre a mão de Julien. 

Após um instante de preces no mais profundo silêncio, perturbado apenas pelo som distante dos sinos de todas as aldeias num raio de dez léguas, o bispo de Agde pediu ao rei permissão para falar. Concluiu um pequeno discurso muito tocante com palavras simples, mas cujo efeito só podia assim ser mais seguro.

– Não esqueçais nunca, jovens cristãs, que vistes um dos maiores reis da terra ajoelhado diante dos servidores do Deus todo-poderoso e terrível. Esses servidores frágeis, perseguidos, assassinados na terra, como vedes pela ferida ainda sangrenta de São Clemente, triunfam no céu. Não é verdade, jovens cristãs, que sempre vos lembrareis desse dia? Detestai o ímpio, sede sempre fiéis a esse Deus tão grande, tão terrível, mas tão bom. 

A essas palavras, o bispo levantou-se com autoridade. 

– Vós o prometeis?, disse ele, estendendo os braços com um ar inspirado. 

– Prometemos, disseram as moças, em lágrimas. 

– Recebo vossa promessa em nome do Deus terrível!, acrescentou o bispo com voz trovejante. E a cerimônia foi encerrada.

O próprio rei chorava. Foi só muito tempo depois que Julien teve tranquilidade suficiente para perguntar onde estavam os ossos do santo enviados de Roma para Felipe, o Bom, duque de Borgonha. Disseram-lhe que estavam ocultos na encantadora figura de cera. 

Sua Majestade dignou-se permitir às senhoritas que o haviam acompanhado à capela usarem uma fita vermelha na qual estavam bordadas estas palavras: ÓDIO AO ÍMPIO, ADORAÇÃO PERPÉTUA. 

O sr. de La Mole mandou distribuir aos aldeões 10 mil garrafas de vinho. À noite, em Verrières, os liberais encontraram uma razão para iluminar suas casas cem vezes melhor que os realistas. Antes de partir, o rei fez uma visita ao sr. de Moirod.






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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)


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