domingo, 28 de abril de 2019

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1a)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




I – LUÍSA DE CHAULIEU A RENATA DE MAUCOMBE



continuando...




10 de outubro


Eu tinha chegado às três horas da tarde. Cerca das cinco e meia, Rosa veio dizer-me que minha mãe já voltara e eu desci, para apresentar-lhe meus respeitos. Minha mãe ocupa no andar térreo um apartamento cuja disposição é igual ao meu, no mesmo pavilhão. Eu estou no andar acima do dela, e temos a mesma escada dissimulada. Meu pai reside no pavilhão oposto; mas como do lado do pátio há mais o espaço ocupado, no nosso lado, pela grande escadaria, seu apartamento é muito mais vasto do que os nossos. Não obstante os deveres da posição que a volta dos Bourbon lhes restituiu, meu pai e minha mãe continuam a habitar o andar térreo, podendo nele receber, tão grandes são as casas de nossos maiores. Encontrei minha mãe no seu salão, onde nada foi mudado. Ela estava em grande toilette. De degrau em degrau eu a mim mesma perguntava como seria para mim essa mulher, que foi tão pouco mãe que, em oito anos, dela não recebi mais do que as duas cartas que conheces. Achando que era indigno de mim mesma fingir uma ternura impossível, compus-me um aspecto de religiosa idiota e entrei bastante embaraçada intimamente. Esse embaraço logo se dissipou. Minha mãe foi de uma graça perfeita; não me manifestou falsas ternuras, não foi fria, não me tratou como estranha, não me abrigou em seu seio como uma filha amada; recebeu-me como se tivesse estado comigo na véspera e foi a mais meiga e mais sincera amiga; falou-me como a uma mulher-feita e logo me beijou na testa. 

— Minha querida filha — disse ela —, se devia morrer no convento é melhor que viva conosco. Você frustrou os projetos de seu pai e os meus, mas não estamos mais no tempo em que os pais eram cegamente obedecidos. A intenção do sr. de Chaulieu, que coincide com a minha, é de não pouparmos coisa alguma para tornar-lhe a vida agradável e deixar-lhe ver o mundo. Na sua idade eu teria pensado como você; por isso não lhe quero mal; você não pode compreender o que nós lhe pedíamos. Não me vai achar de uma severidade ridícula. Se suspeitou de meu coração, breve terá de reconhecer que se enganou. Embora eu queira deixá-la completamente livre, creio que nos primeiros tempos andará acertada se ouvir os conselhos de uma mãe que procederá consigo como uma irmã. 

A duquesa falava com voz suave e endireitando minha capa de colegial. Seduziu-me. Aos trinta e oito anos é bela como um anjo; seus olhos são de um negro azulado, os cílios são como fios de seda, a testa é sem rugas, a tez tão alva e rósea que até parece que se pinta, os ombros e o colo admiráveis, um busto arqueado e fino como o teu, as mãos de rara beleza e uma alvura de leite; unhas onde mora a luz de tão polidas, o dedo mínimo levemente afastado, e o polegar de uma perfeição de marfim. Tem finalmente o pé correspondente à mão, o pé espanhol da srta. de Vandenesse. Se aos quarenta ela é tão bela, será bela ainda aos sessenta. 

Respondi, minha corça, como filha obediente. Fui para ela o que ela foi para mim, melhor ainda; sua beleza venceu-me, perdoei-lhe o abandono em que me deixara, compreendi que uma mulher como ela fora arrastada pelo seu papel de rainha. Disse-lhe ingenuamente como se estivesse falando contigo. É possível que ela não esperasse ouvir uma linguagem de amor na boca da filha. As sinceras homenagens de minha admiração sensibilizaram-na profundamente: suas maneiras se modificaram, tornando-se ainda mais amáveis; ela tratou-me por tu: 

— És uma boa filha e espero que nos tornemos amigas. 

Essa expressão pareceu-me de uma adorável ingenuidade. Não lhe quis deixar ver o sentido em que a interpretava, pois logo compreendi que a devo deixar crer que ela é muito mais fina e espirituosa do que sua filha. Fiz-me portanto de boba, e ela ficou encantada comigo. Por várias vezes beijei-lhe as mãos, dizendo-lhe que me sentia feliz ao vê-la tratar-me assim, que dessa forma ela me punha à vontade, e cheguei até a confessar-lhe o meu terror. Ela sorriu, enlaçou-me pelo pescoço para atrair-me e beijar-me na fronte, com um gesto cheio de ternura. 

— Querida filha — disse —, temos hoje convidados para jantar, e há de achar, como eu, preferível esperar que a costureira lhe tenha preparado suas toilettes para fazer sua entrada na sociedade; assim, pois, quando tiver visto seu pai e seu irmão, subirá para os seus aposentos. 

Aquiesci de muito bom grado. A encantadora toilette de minha mãe era a primeira revelação daquele mundo entrevisto em nossos sonhos, mas não senti o menor impulso de ciúme. Meu pai chegou. 

— Senhor, eis a sua filha — disse a duquesa. 

Meu pai assumiu, subitamente, para mim, as mais ternas maneiras; representou tão bem seu papel que acreditei que também tivesse o coração correspondente. 

— Ei-la então aqui, a filha rebelde — disse-me, tomando-me as duas mãos nas suas e beijando-as com mais galantaria do que paternidade. E atraiu-me a seus braços, enlaçando-me a cintura e apertando-me para beijar-me nas faces e na fronte. — Compensará o pesar que nos causa a sua mudança de vocação pelos prazeres que nos darão seus triunfos na sociedade. Não acha, senhora, que ela será muito bonita e que um dia poderá ter orgulho dela? 

— Aqui está seu irmão, Rhétoré. 

— Afonso — disse ele a um belo rapaz que acabara de entrar —, aqui está sua irmã religiosa que quer atirar as vestes talares às urtigas. 

Meu irmão, sem grande pressa, tomou-me a mão e apertou-a. 

— Beije-a — disse-lhe o duque. E ele beijou-me nas duas faces. 

— Encantado por vê-la, minha irmã — disse ele —, e ponho-me do seu lado, contra meu pai. 

Agradeci-lhe, mas parece-me que ele bem poderia ter ido a Blois, quando ia a Orléans ver nosso irmão, o marquês, em sua guarnição. Retirei-me com receio de que chegasse algum estranho. Fiz algumas arrumações no meu aposento, coloquei em cima do veludo escarlate da bela mesa tudo o que precisava para escrever-te, refletindo na minha nova situação. Eis aí, minha bela corça branca, sem faltar uma vírgula, como se passaram as coisas, por ocasião da volta de uma rapariga de dezoito primaveras, após uma ausência de nove anos, a uma das mais ilustres famílias do reino. A viagem cansara-me, e também as emoções desse regresso ao seio da família: deitei-me, pois, como no convento, às oito horas, depois de ter ceado. Haviam conservado até um pequeno serviço de porcelana de Saxe que aquela querida princesa guardava para comer sozinha, nos seus aposentos, quando isso lhe vinha à fantasia.





_____________________



Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


_____________________

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

____________________



Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (2)



Nenhum comentário:

Postar um comentário