sexta-feira, 5 de março de 2021

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (c) ... O som das trombetas diminuiu

Capítulo 3



continuando...


O som das trombetas diminuiu e Orlando continuou despido. Nenhum ser humano, desde que o mundo começou, parecia mais encantador. Sua forma combinava ao mesmo tempo a força de um homem e a graça de uma mulher. Enquanto permanecia de pé, as trombetas de prata prolongavam seus sons, como se relutantes em abandonar a deliciosa visão que seu toque provocara; e a Castidade, a Pureza e a Modéstia, inspiradas sem dúvida pela Curiosidade, espiaram pela porta e jogaram um pano como uma toalha à figura despida, que, infelizmente, caiu a algumas polegadas de distância. Orlando olhou-se de alto a baixo num grande espelho sem mostrar nenhum sinal de perturbação e dirigiu-se, provavelmente, para o banho.

Podemos aproveitar esta pausa na narrativa para fazer certas declarações. Orlando tinha se transformado numa mulher — não há como negar. Mas, em todos os outros aspectos, Orlando permanecia exatamente como era antes. A mudança de sexo, embora alterando seu futuro, nada fizera para alterar sua identidade. Seu rosto permanecia, como provam os retratos, praticamente o mesmo. Sua memória — no futuro devemos, por convenção, dizer “dela” em vez de “dele”, e “ela” em vez de “ele” —, sua memória, então, retornava a todos os acontecimentos de sua vida passada, sem encontrar qualquer obstáculo. Uma ligeira nebulosidade pode ter ocorrido, como se algumas gotas escuras tivessem caído no claro poço da memória; certas coisas tinham ficado um pouco apagadas; mas isso era tudo. A mudança parecia ter sido produzida completamente e sem sofrimentos, e de tal maneira que o próprio Orlando não demonstrava surpresa com ela. Muita gente, considerando isso, e sustentando que uma mudança de sexo é contra a natureza, esforçou-se para provar que Orlando sempre tinha sido mulher, Orlando é, neste momento, homem. Deixemos biólogos e psicólogos decidirem. Para nós é suficiente constatar o simples fato: Orlando foi homem até os trinta anos; nessa ocasião tornou-se mulher e assim permaneceu daí por diante.

Mas deixemos que outras penas tratem de sexo e sexualidade; abandonemos tão odiosos assuntos o mais depressa possível. Orlando tinha agora tomado banho e se vestido com aqueles casacos e calças turcos que podem ser usados indiferentemente por ambos os sexos e era forçada a considerar sua posição. O primeiro pensamento do leitor que tem acompanhado sua história com simpatia é de que a situação era precária e embaraçosa ao extremo. Jovem, nobre e bela, ela tinha acordado e se encontrara numa posição bastante delicada para uma jovem dama da nobreza. Não a censuraríamos se tivesse tocado a sineta, gritado ou desmaiado. Mas Orlando não deu mostras de perturbação. Todos os seus atos foram extremamente ponderados, e poderiam fazer pensar em premeditação. Primeiro examinou cuidadosamente os papéis que estavam sobre a mesa; tomou aqueles que pareciam ser escritos em verso e escondeu-os no seio; depois chamou o galgo Seleuchi, que embora faminto não tinha arredado de sua cama todos esses dias, alimentou-o e penteou-o; então pôs um par de pistolas no cinto; finalmente, envolveu-se com vários cordões de esmeraldas e pérolas do mais fino Oriente, que faziam parte do seu guarda-roupa de embaixador. Feito isso, debruçou-se à janela, assobiou baixinho e desceu a escada quebrada e manchada de sangue, agora cheia de lixo das cestas de papel — tratados, despachos, selos, lacre etc. — e então entrou no pátio. Lá, à sombra de uma gigantesca figueira, esperava-a um velho cigano montado num burro. Ele segurava um outro pela rédea. Orlando montou e assim, escoltada por um cachorro magro, montada num burro, em companhia de um cigano, o embaixador da Grã-Bretanha junto à corte do sultão deixou Constantinopla.

Cavalgaram por vários dias e noites, encontraram inúmeras aventuras, umas vindas dos homens, outras da natureza, e em todas Orlando portou-se corajosamente. Em uma semana alcançaram as terras altas fora de Broussa, que eram então o principal acampamento da tribo cigana à qual Orlando se aliara. Muitas vezes ela olhara essas montanhas de sua janela na embaixada; muitas vezes desejara estar lá; e, para uma pessoa reflexiva, encontrar-se onde sempre tinha desejado estar é uma oportunidade para reflexão. Por algum tempo, contudo, ela estava tão alegre com a mudança que não queria estragá-la com pensamentos. O prazer de não ter papéis para selar ou assinar, de não ter floreios para fazer, visitas para retribuir, lhe era suficiente.

Os ciganos guiavam-se pela grama; quando ela acabava, eles se mudavam. Ela se banhava nos riachos, se é que se banhava; nenhuma caixa vermelha, azul ou verde lhe era apresentada; não havia uma só chave, e muito menos uma chave de ouro, em todo o acampamento; quanto a “visitas”, a palavra era desconhecida. Ela ordenhava as cabras; apanhava lenha; de vez em quando roubava um ovo de galinha, mas sempre deixava uma moeda ou uma pérola em seu lugar; pastoreava o gado; podava as videiras; pisava a uva; enchia o cantil de pele de cabra e nele bebia; e quando relembrava como, àquela hora do dia, estaria fingindo beber e fumar com uma xícara de café vazia e um cachimbo sem tabaco, ria alto, cortava uma outra fatia de pão e pedia uma tragada do velho cachimbo de Rustum, embora estivesse cheio de esterco de vaca.

Os ciganos, com quem é óbvio que ela estivera em comunicação secreta antes da revolução, pareciam considerá-la uma deles (o que é sempre a mais alta homenagem que um povo pode prestar), e seu cabelo escuro e compleição morena deram origem à crença de que ela era uma deles, de nascimento, e que tinha sido arrebatada de uma nogueira por um duque inglês, quando ainda criança, e levada para aquela terra bárbara onde as pessoas vivem em casas porque são muito fracas e doentes para ficarem ao ar livre. Assim, embora fosse de muitas maneiras inferior a eles, queriam ajudá-la a tornar-se mais parecida com eles; ensinavam-lhe suas artes de fazer queijos e tecer cestos, sua ciência de roubar e caçar pássaros, e estavam mesmo preparados para consentir que casasse entre eles.

Mas Orlando contraíra na Inglaterra alguns hábitos ou doenças (como se queira considerar) que, segundo parece, não podem ser eliminados. Uma tarde, quando estavam todos sentados ao redor do fogo no acampamento, e o pôr do sol ardia sobre os montes da Tessália, Orlando exclamou:

“Que bom para comer!”

(Os ciganos não têm a palavra “bonito”. Esta é a mais aproximada.)

Todos os jovens explodiram em estrondosas gargalhadas. O céu bom para comer, realmente! Os velhos, contudo, que já tinham visto mais estrangeiros de que eles, ficaram desconfiados. Eles observavam que Orlando frequentemente sentava por horas a fio sem fazer nada exceto olhar para cá e para lá; encontraram-na no topo de uma colina com os olhos fixos à frente, sem se importar que as cabras estivessem pastando ou se dispersando. Começaram a suspeitar que ela tinha outras crenças diferentes das deles, os velhos e as velhas imaginavam que ela tivesse caído nas garras do mais vil e mais cruel de todos os Deuses, que é a Natureza. Não estavam muito enganados. A doença inglesa, o amor à Natureza, era-lhe inato, e aqui, onde a Natureza era muito mais vasta e poderosa do que na Inglaterra, ela caiu em suas mãos como nunca antes. A moléstia é bastante conhecida e tem sido frequentemente descrita para necessitar de nova descrição, a não ser de forma muito breve. Havia montanhas, havia vales, havia rios. Ela galgava as montanhas; perambulava pelos vales; sentava-se às margens dos rios. Comparava as colinas a trincheiras, a peitos de pombas e a flancos de vitela. Comparava as flores a esmalte e o gramado a tapetes turcos gastos. As árvores eram bruxas esmirradas, e os carneiros eram seixos cinzentos. Tudo, na verdade, era outra coisa. Encontrou uma lagoa no cume da montanha e quase se jogou nela para procurar a sabedoria que pensou estar escondida ali; e quando, do alto da montanha, avistou ao longe, através do mar de Mármara, as planícies da Grécia, e distinguiu (seus olhos eram admiráveis) a Acrópole com uma ou duas manchas brancas que devia ser, pensou, o Partenon, sua alma expandiu-se com os seus olhos, e ela rezou para que pudesse partilhar a majestade das montanhas, conhecer a serenidade das planícies etc. etc. como fazem todos os que creem. Então, avistando o jacinto vermelho, a íris púrpura, explodiu em êxtase pela bondade e beleza da natureza; erguendo novamente os olhos, viu uma águia voando, e imaginou-lhe os arrebatamentos e identificou-os com os seus próprios. Retornando à casa, saudava cada estrela, cada pico e cada fogueira como se acenassem apenas para ela; e finalmente, quando se jogava sobre a esteira na tenda dos ciganos, não podia se conter e repetia “Que bom para comer!”, “Que bom para comer!” (pois é fato curioso que, embora os seres humanos tenham meios imperfeitos de comunicação, que digam apenas “bom para comer” quando querem dizer “bonito”, ou vice-versa, prefiram suportar o ridículo e a incompreensão do que guardar para si qualquer experiência). Todos os jovens ciganos riram. Mas Rustum el Sadi, o velho que trouxera Orlando de Constantinopla no seu burro, sentava-se em silêncio. Tinha o nariz como uma cimitarra, as faces sulcadas como se pelo perpétuo escorrer de granizo de ferro; era moreno, olhos espertos e, enquanto sentava pitando o seu narguilé, observava Orlando minuciosamente. Tinha profunda suspeita de que o Deus dela era a Natureza. Um dia, encontrou-a em lágrimas. Interpretando que isto significava que o seu Deus a punira, disse-lhe que não estava surpreso. Mostrou-lhe os dedos da mão esquerda, ressequidos pela geada; mostrou-lhe o pé direito, esmagado pela queda de uma rocha. Isto, disse ele, era o que o Deus dela fazia com os homens. Quando ela disse: “Mas é tão belo”, usando a palavra inglesa, ele sacudiu a cabeça; e quando ela repetiu, ficou zangado. Viu que ela não acreditava no que ele acreditava, o que era suficiente para enfurecê-lo, embora fosse sábio e velho.

Esta diferença de opinião perturbou Orlando, que tinha sido perfeitamente feliz até aquele momento. Ela começou a pensar se a natureza era bela ou cruel; e então se perguntou que beleza era aquela; se estava nas próprias coisas ou apenas nela; e assim passou para a natureza da realidade, que a conduziu à verdade, que por sua vez a levou ao Amor, à Amizade, à Poesia (como antigamente, na colina natal); meditações que, como não podia divulgar uma palavra, lhe fizeram sentir falta de pena e tinta, como nunca sentira antes.

“Oh, se ao menos eu pudesse escrever!”, gritava (pois tinha a estranha presunção daqueles que escrevem de que as palavras escritas são compartilhadas). Ela não tinha tinta; e pouco papel. Mas fez tinta com frutas silvestres e vinho; e, encontrando algumas margens e espaços em branco no manuscrito de “O Carvalho”, conseguiu um tipo de taquigrafia para descrever o cenário, num longo poema em versos brancos, e para continuar, de forma bastante concisa, o diálogo consigo mesma sobre a Beleza e a Verdade. Isto a manteve extremamente feliz por horas e horas. Mas os ciganos ficaram desconfiados. Primeiro, notaram que ela estava menos disposta do que antes para a ordenha e para a preparação de queijos; depois, que frequentemente hesitava antes de responder; e uma vez um menino cigano que dormia acordou assustado sentindo seu olhar sobre ele. Às vezes esse constrangimento era experimentado por toda a tribo, composta de dúzias de adultos, homens e mulheres. Era proveniente do sentido que tinham (e seus sentidos são muito agudos e mais desenvolvidos que o vocabulário) de que aquilo que estavam fazendo desintegrava-se como cinzas em suas mãos. Uma velha fazendo um cesto, um menino tosando um carneiro estavam cantando ou sussurrando, contentes no seu trabalho, quando Orlando chegava ao acampamento e se estendia ao pé do fogo olhando as chamas. Não precisava olhá-los para que logo sentissem: aqui está alguém que duvida (fizemos uma tradução livre da língua cigana); aqui está alguém que não faz por fazer; não olha por olhar; aqui está alguém que não acredita nem em peles de carneiro nem em cestos; mas vê (então olhavam apreensivamente em torno da tenda) alguma outra coisa. Então uma sensação vaga mas bastante desagradável começava a atingir o menino e a velha. Eles quebravam suas varas de vime; feriam os dedos. Enchiam-se de uma grande raiva. Desejavam que Orlando deixasse a tenda e nunca mais voltasse. No entanto, reconheciam que ela era agradável e tinha boa vontade; e que uma de suas pérolas era suficiente para comprar o melhor rebanho de cabras em Broussa.

Lentamente, ela começou a sentir que havia algumas diferenças entre ela e os ciganos que a faziam hesitar às vezes em se casar e se fixar entre eles para sempre. A princípio tentou explicar isso dizendo que provinha de uma raça antiga e civilizada, enquanto os ciganos eram um povo ignorante, não muito melhor do que os selvagens. Uma noite, quando a interrogavam sobre a Inglaterra, não pôde deixar de mostrar orgulho em descrever a casa onde nascera, que tinha 365 quartos, e que pertencia à sua família há quatrocentos ou quinhentos anos. Seus ancestrais eram condes, ou mesmo duques, acrescentou. Nisso, observou que os ciganos novamente estavam incomodados, mas não zangados como quando ela elogiara a beleza da natureza. Agora estavam corteses porém embaraçados, como as pessoas de fina educação, quando um estrangeiro vem a revelar seu nascimento humilde ou sua pobreza. Rustum seguiu-a para fora da tenda sozinho e disse-lhe que ela não precisava se preocupar que seu pai fosse um duque e que possuísse todos os quartos e móveis que havia descrito. Nenhum deles pensaria mal dela por isso. Então, foi tomada por uma vergonha nunca antes sentida. É claro que Rustum e os outros ciganos pensavam que uma ascendência de quatrocentos ou quinhentos anos era a mais pobre possível. Suas próprias famílias remontavam a pelo menos dois ou três mil anos. Para os ciganos, cujos ancestrais tinham construído as Pirâmides séculos antes do nascimento de Cristo, a genealogia dos Howards e dos Plantagenetas não era nem melhor nem pior do que a dos Smiths ou dos Jones: todos eram insignificantes. Além do mais, quando um pastor tinha uma linhagem de tamanha antiguidade, nada havia de especialmente memorável ou desejável num berço antigo; os vagabundos e os mendigos também a possuem. E então, embora fosse extremamente cortês para falar abertamente, era claro que o cigano pensava que não há ambição mais vulgar do que possuir quartos às centenas (eles estavam no topo da colina quando conversavam; era noite; e as montanhas erguiam-se ao redor) quando a terra inteira é nossa. Do ponto de vista de um cigano, um duque, Orlando entendeu, não era mais do que um aproveitador ou ladrão que arrebatara terra e dinheiro do povo, que considerava essas coisas de pouco valor, e não podia pensar em coisa melhor do que construir 365 quartos, quando um era suficiente e nenhum ainda melhor. Ela não podia negar que seus antepassados tinham acumulado campo após campo; casa após casa; honraria após honraria; contudo, nenhum deles tinha sido santo ou herói ou grande benfeitor da humanidade. Nem podia deixar de reconhecer (Rustum era muito cavalheiro para insistir, mas ela compreendeu) que qualquer homem que fizesse agora o que seus antepassados haviam feito trezentos ou quatrocentos anos antes seria denunciado — ruidosamente, por sua própria família — como um vulgar arrivista, um aventureiro, um nouveau riche. [1]

[1] Em francês no original: novo-rico. (N.E.)

Ela procurava responder a esses argumentos pelo método familiar, embora oblíquo, de considerar a vida dos ciganos rude e bárbara; e assim em pouco tempo muita animosidade crescera entre eles. De fato, tais diferenças de opinião são suficientes para causar derramamento de sangue e revolução. Cidades têm sido saqueadas por menos do que isso, e um milhão de mártires têm preferido o suplício a ceder uma polegada a respeito de qualquer dos pontos aqui debatidos. Nenhuma paixão é mais forte no peito do homem do que fazer os outros acreditarem naquilo em que ele acredita. Nada corta tanto a raiz de sua felicidade e o enche de cólera como perceber que outro menospreza aquilo que ele valoriza ao máximo. Whigs e Tories, [2] Liberais e Trabalhistas — por que batalham, senão pelo seu próprio prestígio? Não é o amor à verdade, mas o desejo de dominar que coloca bairro contra bairro e faz uma paróquia desejar a decadência de outra paróquia. Cada um procura paz de espírito e subserviência mais do que o triunfo da verdade e a exaltação da virtude — mas essas moralidades pertencem, e devem ser deixadas para o historiador, já que são muito enfadonhas.

[2] Whigs: membros de um partido político da história inglesa favorável às reformas e ao progresso. Tories: membros do Partido Conservador inglês. (N.E.)

“Quatrocentos e setenta e seis quartos nada significam para eles”, suspirou Orlando.

“Ela prefere um pôr do sol a um rebanho de cabras”, diziam os ciganos.

Orlando não sabia o que fazer. Deixar os ciganos e tornar-se mais uma vez embaixador parecia-lhe intolerável. Mas era igualmente impossível permanecer ali para sempre, onde não havia nem tinta nem papel, nem reverência pelos Talbots, nem respeito por uma multiplicidade de quartos. Assim pensava uma bela manhã, nas encostas do monte Athos, enquanto vigiava as cabras. E então a Natureza, em quem confiava, ou pregou-lhe uma peça ou operou um milagre — novamente as opiniões diferem tanto que se torna impossível decidir. Orlando olhava bastante desconsolada para o declive da colina à sua frente. Era meados do verão, e, se pudéssemos comparar a paisagem a qualquer coisa, seria a um osso seco; a um esqueleto de carneiro; a um crânio gigantesco, escarnado por mil abutres. O calor era intenso, e a pequena figueira sob a qual Orlando repousava só servia para imprimir desenhos de folhas em seu albornoz claro.

De repente uma sombra — embora não houvesse nada para projetar uma sombra — apareceu do lado oposto da montanha escalvada. Escureceu rapidamente, e logo uma caverna verde surgiu onde havia antes uma rocha árida. Quando ela olhou, a caverna aprofundou-se e alargou-se, e um espaço como um parque abriu-se no flanco da montanha. Dentro, ela podia ver uma ondulante clareira coberta de relva; podia ver carvalhos salpicados aqui e ali; podia ver tordos pulando por entre os galhos. Podia ver veados andando delicadamente de uma sombra para outra e podia mesmo ouvir o zumbido dos insetos e os suaves suspiros e calafrios de um dia de verão na Inglaterra. Depois de contemplar em êxtase durante algum tempo, a neve começou a cair; logo toda a paisagem estava coberta e marcada com tons violeta, em vez da luz amarela do sol. Agora ela via pesadas carroças pelas estradas, carregadas com troncos de árvores que estavam levando, ela sabia, para serem serrados como lenha; e então apareciam os telhados, as cúpulas, as torres e os pátios de sua própria casa. A neve caía pesadamente, e ela podia ouvir-lhe o ruído escorregando e deslizando pelo telhado até cair no chão. A fumaça subia de mil chaminés. Tudo era tão claro e nítido que ela podia ver uma gralha catando minhocas na neve. Então, gradualmente, as sombras violeta se aprofundaram e cerraram-se sobre as carroças, os gramados e a própria casa. Tudo foi tragado. Nada restava, agora, da caverna coberta de relva, e em vez das clareiras verdes apenas a encosta ardente, que parecia pelada por mil abutres. Com isso ela explodiu em lágrimas, e retornando ao acampamento dos ciganos disse-lhes que precisava partir para a Inglaterra no dia seguinte.

Foi bom para ela ter feito isso. Os rapazes já tinham tramado sua morte. A honra, diziam, exigia isso, pois ela não pensava como eles. No entanto, tinham pena de cortar-lhe o pescoço; e a notícia de sua partida foi bem-recebida. Um navio mercante inglês, por sorte, estava já no porto pronto para retornar à Inglaterra; e Orlando, arrancando outra pérola de seu colar, não apenas pagou a passagem, mas ficou com algum dinheiro na carteira. Este ela gostaria de dar de presente aos ciganos. Mas sabia que eles desprezavam dinheiro; e teve que contentar-se com abraços que, de sua parte, eram sinceros.


continua pag 64...


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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.


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