terça-feira, 27 de outubro de 2020

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (a) ... É realmente uma grande infelicidade

Capítulo 3





É realmente uma grande infelicidade, e deve ser lamentado, o fato de termos pouca informação sobre este estágio da carreira de Orlando, quando desempenhou um papel importante na vida pública de seu país. Sabemos que cumpriu seus deveres com zelo — conforme testemunha o fato de ter recebido a Ordem de Bath e o título de duque. Sabemos que participou das mais delicadas negociações entre o rei Carlos e os turcos — como atestam os tratados nos subterrâneos do Arquivo Público. Mas a revolução que eclodiu durante o período de sua missão e o incêndio que a seguiu danificaram e destruíram todos os documentos de onde se poderia extrair alguma informação, e tudo o que podemos oferecer é lamentavelmente incompleto. Frequentemente o papel estava chamuscado de marrom no meio da frase mais importante. Justo quando pensávamos elucidar um segredo que confundira os historiadores durante cem anos, havia um buraco tão grande no manuscrito que por ele podia passar um dedo. Fizemos o possível para compor um reduzido sumário dos fragmentos queimados que restam; mas muitas vezes foi necessário especular, supor e mesmo usar a imaginação.

O dia de Orlando parecia passar mais ou menos desta maneira: às sete horas ele se levantava, envolvia-se num longo casaco turco, acendia um charuto e punha os cotovelos no parapeito. Aí ficava parado, olhando a cidade a seus pés, num aparente êxtase. Nessa hora, o nevoeiro era tão denso que os domos de Santa Sofia e todo o resto pareciam flutuar; gradualmente, o nevoeiro os descobria; via-se que as bolhas estavam firmemente fixadas; ali seria o rio; lá, a ponte de Gálata; adiante, os peregrinos, de turbante verde, sem olhos e sem narizes pedindo esmolas; além, os cães sem dono apanhavam restos; acolá, mulheres com véus; lá, inúmeros burros; ali, homens a cavalo carregando longas varas. Logo toda a cidade despertava com o bater dos chicotes, com o soar dos gongos, com chamados para a oração, com o açoitar das mulas, o ranger das rodas chapeadas de bronze, enquanto odores acres provenientes do fermento do pão e incenso, e especiarias, se elevavam até as alturas de Pera e pareciam o próprio hálito da população estridente, multicolorida e bárbara.

Nada, pensava ele, contemplando a paisagem que agora brilhava ao sol, podia ser menos semelhante aos condados de Surrey e Kent ou às cidades de Londres e Tunbridge Wells. À direita e à esquerda erguiam-se, numa proeminência estéril e pedregosa, as montanhas inóspitas da Ásia, tendo ao alto um castelo árido, de um ou dois chefes de salteadores; mas não havia presbitério, nem mansões senhoriais, nem chalés, nem carvalhos, nem olmos, nem violetas, nem hera, nem madressilvas. Não havia sebes onde crescessem as samambaias, nem campos para as ovelhas pastarem. As casas eram tão brancas e nuas como cascas de ovos. Surpreendia-o que, sendo inglês de raiz e de fibra, pudesse exultar até o fundo do coração com aquele panorama selvagem e olhar aqueles desfiladeiros e aquelas alturas planejando jornadas para lá sozinho, a pé, onde somente uma cabra ou um pastor tivessem estado antes; pudesse sentir apaixonada ternura pelas flores brilhantes e extemporâneas, mais amor pelos cães rudes e sem dono do que pelos cães de raça de sua casa, e aspirasse avidamente o cheiro ácido e penetrante das ruas. Ele se perguntava se no tempo das Cruzadas um de seus antepassados não teria se unido a uma camponesa circassiana; pensou que seria possível; imaginou um certo tom moreno em sua tez; e, entrando novamente, recolhia-se para o banho.

Uma hora depois, devidamente perfumado, ungido e de cabelos ondulados, recebia a visita dos secretários e de outros altos funcionários, carregando, um após o outro, caixas vermelhas que somente eram abertas com a sua chave de ouro. Dentro havia documentos da maior importância, dos quais restam apenas fragmentos — aqui um rabisco, ali um selo firmemente preso a um pedaço de seda queimada. De seu conteúdo não podemos falar, só afirmamos que Orlando se mantinha ocupado com lacres, selos, fitas de diversas cores que tinham de ser amarradas de várias maneiras, cópias manuscritas e desenhos floreados das letras maiúsculas, até a hora do almoço — uma esplêndida refeição, de uns trinta pratos talvez.

Depois do almoço, os criados anunciavam que a sua carruagem de seis cavalos estava à porta e ele partia, precedido de janízaros de vermelho, que corriam a pé agitando grandes abanos de penas de avestruz por cima de suas cabeças, para visitar outros embaixadores e dignitários. A cerimônia era sempre a mesma. Chegando ao pátio, os janízaros batiam com seus abanos no portão principal, que imediatamente era aberto, revelando uma grande sala esplendidamente mobiliada. Aí estavam sentadas duas figuras, geralmente de sexos opostos. Eram trocadas profundas reverências e cortesias. Na primeira sala só era permitido mencionar o tempo. Tendo dito que estava bom ou úmido ou quente ou frio, o embaixador então passava para outra sala, onde novamente duas pessoas se levantavam para saudá-lo. Aqui só era permitido comparar Constantinopla a Londres, como um lugar para residir; e o embaixador, naturalmente, dizia que preferia Constantinopla, e os anfitriões, naturalmente, diziam que, embora não conhecessem, preferiam Londres. Na sala seguinte, a saúde do rei Carlos e do sultão era discutida demoradamente. Na próxima, eram discutidas a saúde do embaixador e a da esposa do anfitrião, porém mais sumariamente. Na outra, o embaixador cumprimentava o anfitrião pela mobília, e o anfitrião cumprimentava o embaixador pelo seu traje. Na seguinte eram oferecidas guloseimas, o anfitrião lamentando lhes a insipidez, e o embaixador exaltando lhes a excelência. A cerimônia afinal terminava, com um cachimbo oriental e uma xícara de café; mas, embora os movimentos de fumar e beber ocorressem meticulosamente, não havia nem tabaco no cachimbo nem café na xícara, pois se o fumar e o beber fossem reais a resistência humana teria sucumbido com os excessos. Pois logo que o embaixador terminasse esta visita já devia realizar outra. As mesmas cerimônias aconteciam precisamente na mesma ordem, quase sempre seis ou sete vezes, nas casas de outros altos dignitários, de modo que muitas vezes era tarde da noite quando o embaixador retornava a casa. Embora Orlando desempenhasse essas tarefas admiravelmente e nunca negasse que eram talvez a parte mais importante dos seus deveres diplomáticos, estava sem dúvida cansado delas e frequentemente deprimido, a tal ponto que preferia jantar sozinho com seus cães. Com eles podia falar em sua própria língua. E às vezes, dizia-se, atravessava os portões tarde da noite tão disfarçado que os sentinelas não o reconheciam. Então se misturava com a multidão na ponte de Gálata; ou percorria os bazares; ou tirava os sapatos e se juntava aos fiéis nas mesquitas. Certa vez, quando foi anunciado que ele estava com febre, pastores que traziam suas cabras para o mercado contaram ter encontrado um Lorde inglês no topo de uma montanha, rezando para o seu Deus. Acreditava-se que era o próprio Orlando, e sua prece era sem dúvida um poema dito em voz alta, pois sabia-se que ele ainda carregava consigo escondido na capa um manuscrito muito rabiscado; e os criados, escutando à porta, ouviam o embaixador cantando algo com uma voz esquisita, quando estava sozinho.

É com fragmentos como este que devemos fazer o possível para elaborar um retrato da vida de Orlando e de seu caráter nessa época. Existem até hoje rumores, lendas, anedotas vagas e inautênticas sobre a vida de Orlando em Constantinopla (citamos apenas algumas) que servem para provar que ele possuía, agora que estava na flor da idade, o poder de despertar a fantasia e de prender o olhar, capaz de manter viva uma lembrança, quando tudo aquilo que as qualidades mais duráveis fazem para preservá-la é esquecido. O poder é misterioso e composto de beleza, berço e um certo dom raro a que podemos chamar fascínio. “Um milhão de velas”, como dissera Sasha, ardiam nele sem que tivesse trabalho de acender uma única. Movia-se como um cervo, sem necessidade de pensar nas pernas. Falava com voz natural, e o eco soava como um gongo de prata. Por isso vivia cercado de rumores. Tornou-se adorado por muitas mulheres e alguns homens. Não era preciso que falassem com ele ou que o tivessem visto; imaginavam diante deles, especialmente quando o cenário era romântico ou quando o sol estava se pondo, a figura de um nobre cavalheiro de meias de seda. Sobre os pobres e ignorantes rinha o mesmo poder que sobre os ricos. Pastores, ciganos, condutores de burros ainda cantam canções a respeito do Lorde inglês “que atirou esmeraldas num poço”, que sem dúvida se referem a Orlando, que certa vez, ao que consta, jogou suas joias numa fonte num momento de raiva ou embriaguez; de onde foram pescadas por um pajem. Mas este poder romântico, é bem sabido, está quase sempre associado a uma natureza de extrema reserva. Orlando parece não ter tido amigos. Tanto quanto se sabe, não teve nenhuma ligação. Uma certa grande dama veio da Inglaterra para ficar perto dele e atormentou-o com suas atenções, mas ele continuou a cumprir com seus deveres tão incansavelmente que ainda não era embaixador na corte havia dois anos e meio quando o rei Carlos manifestou a intenção de promovê-lo ao mais alto posto da nobreza. Os invejosos disseram que isso era um tributo de Nell Gwyn à lembrança de uma perna. Mas, como ela o tinha visto apenas uma vez e estava ocupada em atirar avelãs no seu senhor real, é provável que tenham sido os seus méritos, e não as panturrilhas, que lhe conquistaram o Ducado.

Aqui devemos fazer uma pausa, porque atingimos um momento de grande significado em sua carreira. Pois a concessão do Ducado deu motivo a um incidente muito famoso e muito discutido que agora vamos descrever, da melhor forma possível, buscando o caminho entre papéis queimados e pequenos pedaços de fita. Foi ao final do grande jejum do Ramadã que a Ordem de Bath e a patente da nobreza chegaram em uma fragata comandada por Sir Adrian Scrope; e Orlando aproveitou a ocasião para a festa mais esplêndida do que qualquer outra jamais vista em Constantinopla. A noite estava bela; a multidão imensa e as janelas da embaixada brilhantemente iluminadas. Novamente faltam detalhes porque o fogo destruiu tais registros e deixou apenas fragmentos esparsos que deixam obscuros muitos pontos importantes. No entanto, pelo diário de John Fenner Brigge, um oficial naval inglês que se encontrava entre os convidados, soube-se que gente de todas as nacionalidades “estava comprimida como arenques num barril”, no pátio. A multidão estava tão desconfortavelmente apertada que Brigge logo subiu numa árvore para melhor observar os acontecimentos. Circulava um rumor entre os nativos (e aqui é uma prova adicional do misterioso poder de Orlando sobre a imaginação) de que algum tipo de milagre iria acontecer. “Assim”, escreve Brigge (mas seu manuscrito está cheio de queimados e de buracos, com algumas frases quase ilegíveis), “quando os foguetes começaram a subir, havia um considerável desconforto, entre nós, de que a população nativa se deixasse arrebatar... carregada de consequências desagradáveis para todos... na companhia de damas inglesas, eu mesmo levei minha mão ao sabre. Felizmente”, ele continua em seu estilo enfadonho, “estes temores, no momento, pareciam infundados, e, observando a conduta dos nativos... cheguei à conclusão de que esta demonstração de nossa habilidade na arte da pirotecnia tinha valor, pelo menos porque imprimiu neles... a superioridade dos britânicos... na verdade a visão era de uma magnificência indescritível. Eu me vi alternadamente louvando o Senhor, que permitira... e desejando que minha pobre e querida mãe... por ordem do embaixador as grandes janelas, que eram um traço imponente da arquitetura oriental, embora ignorante em muitos sentidos... estavam totalmente abertas; e dentro podíamos ver um quadro vivo, ou uma representação teatral, na qual damas e cavalheiros ingleses... apresentavam uma mascarada, obra de um... As palavras eram inaudíveis, mas a visão de tantos dos nossos compatriotas, homens e mulheres, vestidos com a maior elegância e distinção... despertou-me emoções das quais certamente não me envergonho, embora seja incapaz... estava concentrado observando a surpreendente conduta de Lady — que era de uma natureza capaz de prender os olhares sobre si e trazer o descrédito para o seu sexo e seu país, quando” — infelizmente um galho da árvore quebrou e o tenente Brigge caiu ao chão, e o resto do relato apenas registra sua gratidão à Providência (que desempenha um grande papel no diário) e a natureza exata de seus ferimentos.





continua pag 55...

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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.


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