O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
8a.
Consistia de seis ou sete peças, umas grandes, outras pequenas. Embora fosse um apartamento comum, parecia estar um pouco além das posses de um escriturário com família, mesmo com um ordenado de dois mil rublos por ano. Gánia e a sua família o tinham tomado dois meses antes, com a intenção de admitir pensionistas, para satisfazer, malgrado o enorme aborrecimento que isso causava a Gánia, os urgentes desejos de sua mãe e de sua irmã que ansiavam por um meio idôneo que aumentasse um pouco a renda doméstica. Gánia fizera carranca, qualificando isso de tomar hóspedes como coisa degradante, achando que tal fato o humilhava perante a sociedade que costumava frequentar, apresentando-se como um moço com um brilhante futuro diante de si.
Todas essas concessões ao inevitável, bem como as apertadas condições da sua vida, lhe eram uma profunda ferida interior. Durante certo tempo, no começo, isso o irritara extremamente, tais bagatelas o exasperando de maneira desproporcionadamente e agora, se se submetia a elas, por enquanto, era porque contava modificar tudo isso em um futuro que cuidava mais do que próximo.
Acontecia, porém, que mesmo o processo dessa alteração, através do qual se evadiria dessa rotina, trazia em seu bojo uma formidável dificuldade. Uma dificuldade cujo aplainamento ameaçava tornar-se mais perturbador e vexatório do que tudo isso por que estava passando. O apartamento era dividido por um corredor onde logo deram. mal acabaram de subir e entrar. Em um dos lados da passagem estavam os três melhores quartos que se destinavam aos pensionistas “especialmente recomendados”. Na extremidade, lá perto da cozinha, havia um outro cômodo, menor do que os outros três, que era ocupado pelo chefe da família, o general reformado Ivolguin, que dormia sobre um largo sofá e tinha de passar, ao entrar ou ao sair, pela cozinha, servindo-se da escada dos fundos. Kólia, o caçula, um colegial de treze anos, compartilhava desse quarto. Tivera de ser socado lá; e aí preparava as suas lições, dormindo, sobre lençóis furados, em um segundo sofá curto e estreito, sendo obrigado, além do mais, a esperar pelo pai e a andar de olho nele. coisa que estava cada vez ficando mais imprescindível. Ao príncipe seria dado o quarto do meio. O primeiro, à direita, era ocupado por Ferdichtchénko e o outro, à esquerda, estava vazio. Mas Gánia conduziu o príncipe até à outra metade do apartamento, do lado oposto à passagem e onde estavam a sala de jantar, a sala de visitas, que só era sala de visitas, ou de estar, de manhã, sendo depois transformada em escritório e quarto de dormir de Gánia, e uma outra terceira peça, muito pequena, sempre fechada, onde dormiam a mãe e a irmã. Emuma palavra, estavam todos apertadíssimos nesse apartamento. A impressão não era lá grande coisa. Gánia apenas cerrou os dentes e não disse nada para se desculpar. Conquanto fosse ou aparentasse ser respeitador da família, desde o primeiro minuto se percebia que era um grande déspota perante os seus.
Nina Aleksándrovna não se achava sozinha na sala de estar. Sua filha estava com ela e ambas estavam ocupadas, costurando, enquanto falavam com uma visita, iván Petróvitch Ptítsin. Nina Aleksándrovna aparentava ter cerca de cinquenta anos, com faces murchas e encovadas e olheiras negras sob as órbitas. Tinha um ar de pouca saúde e certa melancolia; mas o rosto e a expressão dele eram agradáveis. Logo à primeira palavra se poderia ver que possuía muita dignidade e firmeza. A despeito do abatimento que a melancolia lhe dava, sentia-se que tinha vontade própria e ânimo resoluto. Estava modestamente vestida de preto e a maneira antiga. mas os seus modos, a sua conversa e todo o seu feitio evidenciavam plenamente que era mulher que já conhecera melhores dias. Varvára ArdaLiónovna era uma moça de uns vinte e três anos, de altura média e quase magra. O seu rosto, apesar de não ser muito bonito, possuía o segredo do encanto sem beleza e era extraordinariamente atraente. Parecia-se muito com a mãe e estava vestida quase que do mesmo modo, não demonstrando nenhuma preocupação de ser elegante. Os seus olhos castanhos deviam ter sido, alguma vez. alegres e cariciosos, mas sabiam como regra ser sérios e pensativos. principalmente nesta época. O seu rosto também mostrava decisão e até teimosia; de fato sugeria mais vontade e determinação do que o materno. Varvára Ardaliónovna era de temperamento brusco e seu irmão muitas vezes temia esse temperamento. E a própria visita que estava com elas, no momento, também tinha por que recear isso. Iván Petróvitch Ptítsin era um moço que ia fazer ainda trinta anos, vestia-se com elegância, mas modestamente, e tinha maneiras agradáveis, embora algo estudadas. A sua barbicha castanho-clara indicava logo que não era funcionário público. Sabia falar bem e expeditamente, mas era de seu natural calado. Dava uma impressão boa, em conjunto. Estava, via-se logo, atraído por Varvára Ardaliónovna, não sabendo esconder esse sentimento. Ela tratava-o de modo amistoso, mas parecia querer mistificar umas respostas que não lhe agradavam. Mas Ptítsin estava longe de perder a coragem. Nina Aleksándrovna tratava-o com cordialidade e ultimamente já confiava um pouco mais nele. Era notório que estava em vias de fazer fortuna, dedicando-se a empréstimos, a juros altos, com garantias mais ou menos certas.
Era grande amigo de Gánia.
- Gánia saudou a mãe, friamente, não cumprimentou a irmã e, depois de apresentar o príncipe secamente, não levando mais do que um minuto a explicar de quem se tratava, logo arrastou Ptítsin para fora da sala. Nina Aleksándrovna trocou algumas palavras corteses com o príncipe e disse a Kólia, que apareceu espiando pela porta, que o conduzisse ao quarto do meio. Kólia tinha uma cara de garoto prazenteiro e agradável, e todo o seu modo era simples e confiado.
- Onde está a sua bagagem? - perguntou Kólia. - Trouxe só um embrulho que deixei na ante-sala. - Vou buscá-lo já. Como só temos o cozinheiro e a Matrióna eu também ajudo. Vária é quem olha por tudo eanda de lá para cá. Gánia disse que o senhor chegou da Suíça.
- Cheguei, sim.
- E sentiu-se bem na Suíça?
- Muito.
- Há montanhas por lá?
- Sim.
- Vou apanhar o seu embrulho.
Varvára Ardaliónovna entrou.
- Matrióna vai fazer a sua cama. Trouxe mala?
- Não, apenas um embrulho. O seu irmão já foi apanhá-lo. Deixei-o na ante- sala.
Voltando ao quarto, Kólia perguntou:
- Onde foi que o senhor o deixou? Não achei lá nenhum pacote, exceto este embrulhozinho.
- Só tenho esse - respondeu o príncipe, pegando-o. - Há! Levei um susto! Cuidei que Ferdichtchénko o tivesse carregado.
- Não digas asneiras, corrigiu Vária, veementemente. E mesmo com o príncipe falou de modo curto e com estrita civilidade. - Chère Babette, por que não me tratas mais ternamente? Olha que eu não sou Ptítsin!
- Ainda queres mais é levar umas lambadas! Kólia, não sejas engraçadinho! O senhor sempre que quiser alguma coisa pode chamar Matrióna. O jantar é às quatro e meia. Tanto pode jantar conosco, à mesa, como no seu quarto, se preferir. Kólia, vem, não fiques no caminho. - Vamo-nos, cabeçuda!
Quando saíam deram com Gánia, que perguntou ao irmão: - Papai está em casa? - Depois da resposta, ciciou-lhe qualquer coisa ao ouvido, tendo Kólia seguido a irmã, após acenar com a cabeça. - Uma palavra, príncipe. Com tanta coisa, ia até me esquecendo. Tenho um pedido a lhe fazer. Tenha a bondade, e não se moleste com o meu pedido, de não dizer uma palavra que seja do que se passou entre mim e Agláia; e muito menos de, do que ouvir aqui, contar lá, pois há degradação bastante aqui, também. Aliás, já me resignei a isto. Em todo o caso, contenha-se hoje. Evidenciando certa irritação à advertência de Gánia, Míchkin respondeu, deixando transparecer que as suas relações estavam cada vez ficando mais prejudicadas:
- Posso garantir-lhe que falei muito menos do que o senhor supôs.
- Arre! Que quarto infame - observou Gánia, olhando em redor, com desprezo. - Escuro e dando para a área. O senhor veio para a nossa casa em uma época péssima, sob todos os pontos de vista. Mas estou entrando em assunto que não me concerne. Não sou eu quem aluga os quartos.
A princípio entreabriu a porta o suficiente para insinuar a cabeça. Essa cabeça, rolando, olhou todo o quarto, por uns cinco segundos; depois a porta começou a se abrir vagarosamente, rangendo, e toda a sua pessoa se patenteou no umbral. Não entrou logo, o estranho visitante; mas, mesmo sem entrar, aqueles olhinhos já examinavam o príncipe, da entrada. Por fim o homem fechou a porta atrás de si, aproximou-se bem, sentou-se em uma cadeira, tomou a mão do príncipe, obrigando-o a sentar-se no sofá, perto.
- Isso! - disse o visitante, suspirando e encaracolando o cabelo. Desviou o olhar para o lado oposto, para poder fazer a seguinte pergunta: Tem dinheiro? - E logo se voltou para o príncipe.
- Um pouco.
- Quanto?
- Vinte e cinco rublos.
- Mostre.
O príncipe tirou do bolso interno do colete a nota de vinte cinco rublos e a estendeu a Ferdichtchénko que a esticou bem, examinou e a olhou por transparência na claridade.
- É estranho como, pouco a pouco, elas vão tomando uma cor de barro! Estas notas de vinte e cinco rublos geralmente acabam tomando uma horrorosa cor escura, ao passo que as outras, essas então desbotam. Ei-la. Guarde-a. Míchkin pegou-a de novo e Ferdichtchénko se levantou. - A razão desta minha primeira visita foi preveni-lo de que não me empreste dinheiro, pois pode estar certo de que lhe pedirei. - Perfeitamente.
- Tenciona pagar isto aqui?
- Decerto.
- Bem, mas eu, jamais! Nunca. Obrigado. Estou aqui ao lado. A próxima porta, à direita. Percebe? Não precisa vir ver-me muito amiúde. Deixe, que eu virei. Outra coisa, já viu o general?
- Não.
- Nem o ouviu, pelo menos?
- Naturalmente que não.
- Bem. Vê-lo-á e ouvi-lo-á. Outra coisa. Imagine que até a mim ele ensaia pedir dinheiro emprestado. Avis au lecteur. Até logo. Pode existir alguém com este nome Ferdichtchénko? Hein?
- Por que não?
- Até logo.
Dirigiu-se para a porta. Mais tarde veio o príncipe a saber que esse indivíduo se incumbira por conta própria de assombrar todo o mundo, fingindo-se de original e fora do comum, apesar de mesmo nisso malograr sempre.
Às vezes se saía tão mal nesse propósito que disso resultava mortificação e apuros para ele próprio. Ainda assim não desistia nem se emendava. A porta empertigou-se, esbarrando em um cavalheiro que ia entrando. Mostrando caminho, por assim dizer, a essa nova visita que o príncipe não conhecia. pestanejou diversas vezes, por detrás dela, à guisa de advertência, obtendo assim uma saída razoavelmente eficiente. Este outro cavalheiro era um homem de uns cinquenta e cinco anos, agigantado e espadaúdo, com uma cara imensa, bochechuda. vermelha que nem púrpura, servida lateralmente por suíças grisalhas. e marcada por uns bigodões espessos. Os olhos enormes eram quase saltados. A sua aparência seria até impressionante se não fosse o modo geral desmazelado, imundo e horripilante. Vestia. como roupa de estar em casa à vontade, uma usada sobrecasaca que além de mostrar o forro puído tinha os cotovelos esburacados. Nos recintos fechados ele fedia um pouco a vodca, mas os seus modos eram teatrais e solenes. Traía um cioso desejo de ostentar dignidade. Aproximou-se do príncipe, resolutamente, com um sorriso afável. Tomou- lhe a mão, calado, e a mantendo algum tempo na sua, olhou para o rosto do príncipe com aquele feitio com que uma pessoa se alvoroça quando descobre em um suposto desconhecido traços de há muito familiares. - Ah! Mas é ele! - solenemente, vagarosamente pronunciou isso. - É a sua figura viva! Ouvi-os, em minha própria casa, pronunciarem um nome que me é querido e familiar e que me levou, de súbito, a um passado que já se foi para sempre!... O Príncipe Míchkin?
- Sim.
- O General Ívolguin, reformado e desafortunado. Qual o seu nome e o de seu pai? Posso aventurar esta pergunta? - Liév Nikoláievitch.
- Sim, sim! O filho do meu amigo, do meu companheiro de infância, devo dizer, Nikolái Petróvitch?
- O nome de meu pai era Níkolái Lvóvitch. - Lvóvitch - corrigiu logo o general, mas sem pressa e com absoluta calma, como se absolutamente não se tivesse esquecido e apenas tivesse pronunciado errado por acidente. Sentou-se e tomando de novo a mão do príncipe também o fez sentar-se, mais ao seu lado. - Dizer-se que eu já o carreguei nos meus braços! - Será possível? Meu pai morreu há Vinte anos. - Sim. Vinte anos. Vinte anos e três meses. Estivemos juntos na escola. Eu entrei diretamente para o exército.
- Meu pai também esteve no exército. Chegou a alferes no regimento de Vassflievski.
- No de Bielomírskii. Foi transferido para o de Bielomírskii um pouco antes da sua morte. Estive no seu leito de morte e o abençoei para a eternidade. Sua mãe...
E como que interrompido pelo efeito de dolorosas recordações o general fez uma pausa.
- Sim, ela morreu seis meses mais tarde devido a um resfriado - explicou o príncipe.
- Não foi resfriado. Absolutamente. Deve confiar nas palavras e na memória de um velho. Eu estava lá. Fui dos que a sepultaram. Foi desgosto, pela morte do esposo. Absolutamente não foi resfriado. Sim, recordo-me também da princesa. Ah! A mocidade! Foi por causa dela que o príncipe e eu, amigos desde a infância, estivemos a ponto de nos tornarmos assassinos um do outro.
O príncipe começou a escutar com uma certa desconfiança. - Eu estava apaixonado por sua mãe, quando ela ficou noiva de seu pai. Noiva de um amigo. O príncipe descobriu isso e foi um golpe para ele. Veio ver-me muito cedo, certa manhã, antes das sete horas, e me acordou. Ergui-me ao mesmo tempo estremunhado e cheio de assombro. Houve silêncio de ambos os lados.
continua página 086...
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