O triste fim de Policarpo Quaresma
Lima Barreto
A João Luiz Ferreira
Engenheiro Civil
Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire.
Renan, Marc-Auréle
SEGUNDA PARTE
IV - "Peço Energia, Sigo Já"
Dona Adelaide, a irmã de Quaresma, tinha uns quatro anos mais que ele. Era uma bela velha, com um corpo médio, uma tez que começava a adquirir aquela pátina da grande velhice, uma espessa cabeleira já inteiramente amarelada e um olhar tranquilo, calmo e doce. Fria, sem imaginação, de inteligência lúcida e positiva, em tudo formava um grande contraste com o irmão; contudo, nunca houve entre eles uma separação profunda nem tampouco uma penetração perfeita. Ela não entendia nem procurava entender a substância do irmão, e sobre ele em nada reagia aquele ser metódico, ordenado e organizado, de ideias simples, médias e claras.
Ela já atingira aos cinquenta e ele para lá marchava; mas ambos tinham ar saudável, poucos achaques, e prometiam ainda muita vida. A existência calma, doce e regrada que tinham levado até ali concorrera muito para a boa saúde de ambos. Quaresma incubou as suas manias até depois dos quarenta e ela nunca tivera qualquer.
Para Dona Adelaide, a vida era cousa simples, era viver, isto é, ter uma casa, jantar e almoço, vestuário, tudo modesto, médio. Não tinha ambições, paixões, desejos. Moça, não sonhara príncipes, belezas, triunfos, nem mesmo um marido. Se não casou foi porque não sentiu necessidade disso; o sexo não lhe pesava e de alma e corpo ela sempre se sentiu completa.
O seu aspecto tranquilo e o sossego dos seus olhos verdes, de um brilho lunar de esmeralda, emolduravam e realçavam naquele interior familiar a agitação e a inquietude, o alanceado do irmão. Não se vá supor que Quaresma andasse transtornado como um doido. Felizmente não. Na aparência até poder-se-ia imaginar que nada conturbava sua alma; porém, se mais vagarosamente se examinassem os seus hábitos, gestos e atitudes logo se havia de ver que o sossego e a placidez não moravam no seu pensamento.
Ocasiões havia em que ficava a olhar, durante minutos seguidos, ao longe o horizonte, perdido em cisma; outras, isso quando no trabalho da roça, em que suspendia todos os movimentos, fincava o olhar no chão, demorava-se assim um instante, coçando uma mão com a outra, dava depois um muxoxo, continuava o trabalho; e mesmo momentos surgiam em que não reprimia uma exclamação ou uma frase.
Anastácio, em tais instantes, olhava por baixo dos olhos o patrão. O antigo escravo não os sabia mais fixar, e nada dizia; Felizardo continuava a contar a fuga da filha do Custódio com o Manduca da venda; e o trabalho marchava.
Inútil é dizer que a irmã não fazia reparo nisso, mesmo porque, a não ser no jantar e nas primeiras horas do dia, eles viviam separados. Quaresma na roça, nas plantações, e ela superintendendo o serviço doméstico.
As outras pessoas de suas relações não podiam também notar as preocupações absorventes do major, pelo simples motivo de que estavam longe.
Ricardo havia seis meses que não lhe visitara e da afilhada e do compadre as últimas cartas que recebera datavam de uma semana, não vendo aquela há tanto tempo, quanto ao trovador, e aquele desde quase um ano, isto é, o tempo em que estava no “Sossego”.
Durante esse tempo, Quaresma não cessou de se interessar pelo aproveitamento de suas terras. Os seus hábitos não foram mudados e a sua atividade continuava sempre a mesma. É verdade que deixara de parte os instrumentos de meteorologia.
O higrômetro, o barômetro e os outros companheiros não eram mais consultados e as observações registradas num caderno. Dera-se mal com eles. Fosse inexperiência e ignorância das bases teóricas deles, fosse porque fosse, o certo é que toda a previsão que Quaresma fazia, baseada em combinações dos seus dados, saía errada. Se esperava tempo seguro, lá vinha chuva; se esperava chuva, lá vinha seca.
Assim perdeu muita semente e Felizardo mesmo sorria dos seus aparelhos, com aquele grosso e cavernoso sorriso de troglodita:
- “Quá” patrão! Isso de chuva vem quando Deus “qué”.
O barômetro aneroide continuava a um canto a dançar o seu ponteiro sem ser percebido; o termômetro de máxima e mínima, legítimo Casella, jazia pendurado na varanda sem receber um olhar amigo; a caçamba do pluviômetro estava no galinheiro e servia de bebedouro às aves; só o anemômetro continuava teimosamente a rodar, a rodar, já sem fio, no alto do mastro, como se protestasse contra aquele desprezo pela ciência que Quaresma representava.
Quaresma vivia assim, sentindo que a campanha que lhe tinham movido, embora tendo deixado de ser pública, lavrava ocultamente. Havia no seu espírito e no seu caráter uma vontade de acabá-la de vez, mas como? Se não o acusavam, se não articulavam nada contra ele diretamente? Era um combate com sombras, com aparências, que seria ridículo aceitar.
De resto, a situação geral que o cercava, aquela miséria da população campestre que nunca suspeitara, aquele abandono de terras à improdutividade encaminhavam sua alma de patriota meditativo a preocupações angustiosas.
Via o major com tristeza não existir naquela gente humilde sentimento de solidariedade, de apoio mútuo. Não se associavam para cousa alguma e viviam separados, isolados, em famílias geralmente irregulares, sem sentir a necessidade de união para o trabalho da terra. Entretanto, tinham bem perto o exemplo dos portugueses que, unidos aos seis e mais, conseguiam em sociedade cultivar a arado roças de certa importância, lucrar e viver. Mesmo o velho costume do “moitirão” já se havia apagado.
Como remediar isso?
Quaresma desesperava...
A tal afirmação de falta de braços pareceu-lhe uma afirmação de má fé ou estúpida, e estúpido ou de má fé era o Governo que os andava importando aos milhares, sem se preocupar com os que já existiam. Era como se no campo em que pastavam mal meia dúzia de cabeças de gado, fossem introduzidas mais três, para aumentar o estrume!...
Pelo seu caso, ele via bem as dificuldades, os óbices de toda a sorte que havia para fazer a terra produtiva e remunerada. Um fato veio mostrar-lhe com eloquência um dos aspectos da questão. Vencendo a erva-de-passarinho, os maus-tratos e o abandono de tantos anos, os abacateiros de suas terras conseguiram frutificar, fracamente é verdade, mas de forma superior às necessidades de sua casa.
A sua alegria foi grande. Pela primeira vez, ia passar-lhe pelas mãos dinheiro que lhe dava a terra, sempre mãe e sempre virgem. Tratou de vender, mas como? a quem? No lugar havia um ou outro que os queria comprar por preços ínfimos. Com decisão foi ao Rio procurar comprador. Andou de porta em porta. Não queriam, eram muitos. Ensinaram-lhe que procurasse um tal Senhor Azevedo no Mercado, o rei das frutas. Lá foi.
- Abacates! Ora! Tenho muitos... Estão muito baratos!
- Entretanto, disse Quaresma, ainda hoje indaguei em uma confeitaria e pediram-me pela dúzia cinco mil-réis.
- Em porção, o senhor sabe que... É isso... Enfim, se quer mande-os...
Depois, tilintou a pesada corrente de ouro, pôs uma das mãos na cava do colete e quase de costas para o major:
- É preciso vê-los... O tamanho influi...
Quaresma os mandou e, quando lhe veio o dinheiro, teve a satisfação orgulhosa de quem acaba de ganhar uma grande batalha imortal. Acariciou uma por uma aquelas notas encardidas, leu-lhes bem o número e a estampa, arrumou-as todas uma ao lado da outra sobre uma mesa e muito tempo levou sem ânimo de trocá-las.
Para avaliar o lucro, descontou o frete, de estrada de ferro e carroça, o custo dos caixões, o salário dos auxiliares e, após esse cálculo que não era laborioso, teve a evidência de que ganhara mil e quinhentos réis, nem mais nem menos. O Senhor Azevedo tinha-lhe pago pelo tanto a quantia com que se compra uma dúzia.
Assim mesmo o seu orgulho não diminuiu e ele viu naquele ridículo lucro objeto para maior contentamento do que se recebesse um avultado ordenado.
Foi, portanto, com redobrada atividade que se pôs ao trabalho. Para o ano, o lucro seria maior. Tratava-se agora de limpar as fruteiras. Anastácio e Felizardo continuavam ocupados nas grandes plantações; contratou um outro empregado para ajudá-lo no tratamento das velhas flores frutíferas. Foi, pois, com o Mané Candeeiro que ele se pôs a serrar os galhos das árvores, os galhos mortos e aqueles em que a erva daninha segurava as suas raízes. Era árduo e difícil o trabalho. Tinham às vezes que subir às grimpas para a extirpação do galho atingido; os espinhos rasgavam as roupas e feriam as carnes; e em muitas ocasiões estiveram em risco de vir ao chão serrote e Quaresma ou o camarada.
Mané Candeeiro falava pouco, a não ser que se tratasse de cousas de caça; mas cantava que nem passarinho. Estava a serrar, estava a cantar trovas roceiras, ingênuas, onde com surpresa o major não via entrar a fauna, a flora locais, os costumes das profissões roceiras. Eram vaporosamente sensuais e muito ternas, melosas até; por acaso lá vinha uma em que um pássaro local entrava; então o major escutava:
Eu vou dar a despedida
Como deu o bacurau,
Uma perna no caminho
Outra no galho de pau.
Este bacurau que entrava aí satisfazia particularmente às aspirações de Quaresma. A observação popular já começava a interessar-se pelo espetáculo ambiente, já se emocionava com ele e a nossa raça deitava, portanto, raízes na grande terra que habitava. Ele a copiou e mandou ao velho poeta de São Cristóvão. Felizardo dizia que Mané Candeeiro era um mentiroso, pois todas aquelas caçadas de caititus, jacus, onças eram patranhas; mas, respeitava o seu talento poético, principalmente no desafio: o moleque é bom!
Ele era claro e tinha umas feições regulares, cesarianas, duras e fortes, um tanto amolecidas pelo sangue africano.
Quaresma procurou descobrir nele aquela odiosa catadura que Darwin achou nos mestiços; mas, sinceramente, não a encontrou.
Com auxílio de Mané Candeeiro foi que Quaresma conseguiu acabar de limpar as fruteiras daquele velho sítio abandonado há quase dez anos. Quando o serviço ficou pronto, ele viu com tristeza aquelas velhas árvores amputadas, mutiladas, com folhas aqui e sem folhas ali... Parecia sofrer e ele se lembrou das mãos que as tinham plantado há vinte ou trinta anos, escravos, talvez, banzeiros e desesperançados!...
Mas não tardou que os botões rebentassem e tudo reverdecesse, e o renascimento das árvores como que trouxe o contentamento das aves e do passaredo solto. De manhã, esvoaçavam os tiés-vermelhos, com o seu pio pobre, espécie de ave tão inútil e tão bela de plumas que parece ter nascido para os chapéus das damas; as rolas pardas e caboclas em bando, mariscando, no chão capinado; pelo correr do dia, eram os sanhaçus a cantar nos galhos altos, os papa-capins, as nuvens de coleiros; e de tarde como que todos eles se reuniam, piando, cantando, chilreando, pelas altas mangueiras, pelos cajueiros, pelos abacateiros, entoando louvores ao trabalho tenaz e fecundo do velho Major Quaresma.
Não durou muito essa alegria. Um inimigo apareceu inopinadamente, com a rapidez ousadíssima de um general consumado. Até ali ele se mostrara tímido, parecia que somente mandava esclarecedores.
Desde aquele ataque às provisões de Quaresma, logo afugentadas, não mais as formigas reapareceram; mas, naquela manhã, quando contemplou o seu milharal, foi como se lhe tirassem a alma, e ficou sem ação e as lágrimas lhe vieram aos olhos.
O milho que já tinha repontado, muito verde, pequenino, com uma timidez de criança, crescera cerca de meio palmo acima da terra; o major até mandara buscar o sulfato de cobre para a solução em que ia lavar a batata-inglesa a plantar nos intervalos dos pés.
Toda a manhã, ele ia lá e já via o milharal crescido com o seu pendão branco e as suas espigas de coma cor de vinho, oscilando ao vento; naquela, ele não viu nada mais. Até os tenros colmos tinham sido cortados e levados para longe! “A modo que é obra de gente” disse Felizardo; entretanto, tinham sido as saúvas, os terríveis himenópteros, piratas ínfimos que lhe caíam em cima do trabalho com uma rapacidade turca... Era preciso combatê-los. Quaresma pôs-se logo em campo, descobriu as aberturas principais do formigueiro e em cada uma queimou o formicida mortal.
Passaram-se dias; os inimigos pareciam derrotados, mas, certa noite, indo ao pomar para melhor apreciar a noite estrelada, Quaresma ouviu uma bulha esquisita, como se alguém esmagasse as folhas mortas das árvores... Um estalido... E era perto... Acendeu um fósforo e o que viu, meu Deus! Quase todas as laranjeiras estavam negras de imensas saúvas. Havia delas às centenas, pelos troncos e pelos galhos acima e agitavam-se, moviam-se, andavam como em ruas transitadas e vigiadas a população de uma grande cidade: umas subiam, outras desciam; nada de atropelos, de confusão, de desordem. O trabalho como que era regulado a toques de corneta. Lá em cima umas cortavam as folhas pelo pecíolo; cá embaixo, outras serravam-nas em pedaços e afinal eram carregadas por terceiras, levantando-as acima da descomunal cabeça, em longas fileiras pelo trilho limpo, aberto entre a erva rasteira.
Houve um instante de desânimo na alma do major. Não tinha contato com aquele obstáculo nem o supusera tão forte. Agora via bem que era a uma sociedade inteligente, organizada, ousada e tenaz com quem se tinha de haver. Veio-lhe então à lembrança aquela frase de Saint-Hilaire: se nós não expulsássemos as formigas, elas nos expulsariam.
O major não estava lembrado ao certo se eram essas as palavras, mas o sentido era, e ficou admirado que só agora ela lhe ocorresse.
continua na página 58...
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
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