a carta da alforria
Ensaio 5jB – 2ª edição 1ª reimpressão
baitasar
O que se passa, sinhô Clemente?
siá casta reparô quiusiô clementi num tava mesmo diantes, parecia fugitivo agoniado morgulento, parecia quia vida limpinha nas claridade dudia tinha dado lugá prum feitiço maldiçoado e gorento, dava pra vê quiusiô clementi tava encimesmado daquele medo quase solto da barriga pras perna, parecia tinha firmeza quia morte do sebastião dava interesse no padecimento dusiô clementi, Não entendo essa avareza do Clemente, esse negro morto sozinho, sem testemunha, já está desencadeando estranheza e afoiteza na fazenda. Por que não se livrar logo com as incumbências de sempre e dar o destino que deve ser dado? Por que não mostrar um pouco de astúcia? Espero que isso tudo não nos traga doenças nem maldição.
Nada, Casta, fez otra folga nas palavra dita, num tava conseguindo firmá dureza na soada das coisa dita, o amargo na boca fedia chorume apodrecido, estou um pouco ansioso pelo café, mas logo passa...
Sinhô Clemente, a rotina da casa está toda alterada. As negras todas com cara de mortuário, contrariadas, lacrimejando, suplicando, alarmadas com o inusitado, uma morte silenciosa e solitária.
Chega, sinhá... chega! Quero tomar o meu café em paz... pode ser?
a trovoada pareceu se mostrá, siá casta respirô aliviada, o medo provisório tinha acabado, O Clemente recuperou o seu próprio juízo, a validade da sua razão que nos guia e sustenta, chegava da cozinha o sabô imaginativo da quentura do café
Pelo aroma delicioso.... huuuummmm... o café está vindo.
A sinhá trouxe o papel e a tinta?
Está tudo aqui, apontô pra caixa de madêra qui colocô na mesa, o sinhô está sentindo o aroma esparramando na casa?
o marido fungô mais forte, depois fez jeito sonolento qui num tava dando importância
O café é mais gostoso no prazer do aroma que no gosto, lembrô qui já muriquinhu gostava ditá entre as preta na fervura do café, não tem fervura que elas não saibam fazer com gosto ou desgosto, num disse, na continuação das palavra solta na mesa, qui esse tempo de muriquinhu era as lembrança qui gostava ditê, o amanhecimento, as cantoria, o pão quentinho, o melado, a nata
enquanto usdois matraqueava Gabriela botava na mesa as mistura, os queijo e os pão saindo fumegando das fornada, os aroma se misturava e atiçava as vontade, num conseguia escondê tanto apetite
A sinhá como sempre se esmerando na feitura das refeições.
Obrigado, sinhô Clemente.
Saber mandar é uma arte... comecemos o dia, então...
usdois se oiava duma ponta da mesa inté otro ponto, o café era a ponte
Está chegando na Villa uma leva de negros, é coisa para amanhã ou depois. Espero me dar bem na escolha e no negócio. É sempre um risco, às vezes, fazemos uma boa escolha, mas o preço da arroba não é interessante; outras vezes, o empreendimento não vale o preço. É um jogo interessante, mas todos na Villa, no fundo, sabem que não têm virtudes e acabam escravos.
Gosto daqui, sinhô Clemente. Andar pelas nossas terras no sol do verão, olhar as belezas da natureza, o nosso Paraíso, um lugar para viver sem chorar.
Uma natureza sem igual, sinhá Casta, oiô provocativo pra esposa, colocô a caneca de porcelana na mesa, aproximô uqui deu da mesa, a sinhá Casta não gostaria de ir também? O passeio lhe faria bem...
a dona da casa e o dono de tudo se oiô sem mais falá, ela sentia as batida no peito ficá apressada quanto mais segurava a euforia, ele sorria, usdois encabulado no convencimento deles mesmo
Acho bastante interessante...
A sinhá Casta se dedica unicamente a esta casa – que vai indo bem, graças ao seu tino entusiasmado para dona da casa –, tava acalourado como dono de tudo, desenfermado cua sua voz grave e potente, otra veiz uma voz respeitável e fingidamente sincera, vosmecê merece esse passeio.
dona casta oiô pela porta a entrada das claridade, o sino da igreja bordando o vozerio nas rua, o cochêro empinado levantava o relho e batia na anca do cavalo negro, o véu à cabeça, a villa formiguenta de gente, um rosário, as mão no colo, as piedade, a igreja
Podemos visitar a construção das Dores?
É claro. Podemos, sim. Mas, por agora, vamos à carta...
Mas, Clemente...
Por favor, sinhá Casta. É assunto vencido. Não quero a maculação da fazenda com as carnes do criolo. E não se trata apenas do lugar do buraco. Já lhe expliquei, que a Irmandade dos Pretos Forros se encarregue das despesas do ritual fúnebre, do sofrimento da morte, do enterramento, e sei lá mais o que vão inventar.
Sinhô Clemente, as rezas...
Não adiantam de nada... criolo não ressuscita! Chega!
Mas a igreja...
Pois fale com o urubu-viúvo, mas acho que o depositário, na volta do campanário da freguesia, está com os dias contados – ou as mortes, ahahahah! –, soltô sua risada mais forte, tinha muntas risada, uma pra cada apuro, as pessoas de bem e melhor esclarecidas estão reclamando dos odores e gases que os defuntos liberam. As moças precisam dos seus lencinhos perfumados nas domingueiras. Mas não é só isso... não é só negócio. Em todo o Império brasileiro, está se discutindo esses sepultamentos no centro das vilas e o risco de infecções e epidemias. Então, essa importunice ao nariz é arriscada a boa saúde.
Que horror! Coitados dos nossos mortos...
Ahahahah! A sinhá fala como se não fosse virar uma morta! Dessa ninguém escapa...
siá casta bate trêis veiz na mesa, ela qué se apartá daquela desgraça agourenta do siô clementi, as batida na mesa parece dá mais conforto, a imaginação empurra ou tira do medo
O sinhô fala com jeito sem respeito pelos mortos. Coitados... cuidar com dignidade do corpo morto é proteger o espírito na salvação.
Não tem lugar na Villa pra milagres, sinhá Casta. Morto não tem o que reclamar. Morreu... acabou, a fila anda. Quero ver o urubu-viúvo se virar sem as esmolas dos mortos.
sabia qui devia obediência ao esposo, vivia bem alimentada, abrigada com conforto do frio e das chuva, mais num aceitava diminuí sua crença no deus acima de tudo
Esmolas?
a casa se acordava no tempo dela, num adiantava os movimento lá fora, precisava dos movimento prudentro, as janela aberta, a cozinha do fogão zunindo cuas lenha, as panela esfregada, o chão varrido, as cama arrumada, os pinico esvaziado, o telhado morno, a geada derretida, o café servido, siá casta precisava do próprio do tempo
Ah, minha Santa Casta... e a sinhá acredita que sepultamento em lugar de prestígio é de graça? A morte não iguala desiguais. A sinhá já visitou o cemitério da Santa Cúria da Villa? Os mortos de prestígio estão enfiados, lado a lado, no intramuros da igreja. É errado? Não acho, afinal, sempre foi assim: vivos, mortos de prestígio e santos... reunidos. Mas vai mudar, pode anotar no seu caderninho, e vai ter luta porque os sobreviventes continuam atrás da boa morte.
Não é uma coisa boa esquecer dos nossos mortos...
Sinhá Casta, essa tal boa morte já virou um bom negócio: o lugar do sepultamento, a condução fúnebre, o cortejo, os cortinados, os cavalos, os cocheiros, as velas, os caixões, o vestuário, as reformas, os consertos, as tochas, tudo é pago, tudo tem seus custos. Um negócio que interessa mais aos vivos que aos mortos, a sinhá não concorda?
A memória não interessa só aos mortos, os vivos não querem esquecer nem serem esquecidos.
Então, que construam seus buracos...
siá casta procurava um refúgio sem careta, silêncio e mau-humô, a casa tava agitada como já tinha dito quia ficá, Seja feita a vontade de Deus. Não vejo pecado em sonhar com uma vida de sol bem no alto, céu limpinho, sem trovoada, sem medo da escuridão, uma vida protegida. E uma boa morte...
Sinhá Casta, me responda, por favor... existe alguma razão para gastar – qualquer recurso que seja – no sumiço do criolo?
esperô a resposta qui num chegô
Foi o que pensei, é simples assim, depois que fechar o buraco... ele nunca existiu. Ninguém vai lembrar, ninguém vai saber, nunca existiu. A reposição vai chegar e a vida continuar. Então, chega de desvios, vamos à carta, amassava o pão na boca, depois o café ajudava engolí, pegue o papel e a tinta...
“Antônio Clemente, na fazenda de sua propriedade, nos arredores norte da Villa Risonha, faz ver ao Tabelião José Ozório Farias, que aos dias 21 de julho, sebastião, negro ioruba sudanês, também podendo ser negro benguela, apesar das diferenças de um e outro, é forro por mim livrado de toda servidão até o dia da sua morte. Mas se depois de forro cometer contra mim – ou meus parentes – alguma ingratidão poderei revogar a liberdade que dei a esse liberto e reduzí-lo a servidão em que antes estava. As causas que nomeio para revogar essa carta são as seguintes: 1. a primeira causa é se o negro alforriado disser, quer em minha presença, quer em minha abstinência, alguma injúria grave sobre mim, perante alguns homens bons. 2. A segunda, e não menos importante, é se me ferir com pau, pedra, ferro, ou qualquer arma branca ou de fogo, bem como, me pôr as suas mãos irosamente com intenção de me injuriar ou desonrar. Não obstante, declaro que a carta foi concedida em atenção aos bons serviços e fidelidade até os dias de hoje. Um negro de doce submissão, inaptidão para a rebeldia e profundo afeto com a família do seu proprietário. Um negro dócil, respeitoso e diligente que não tem parentes. Antes de encerrar, quero agradecer pelos muitos anos de bom trabalho desempenhado pelo alforriado. E salientar que o alforriado não está doente, aleijado, quebrado das virilhas ou sofre com reumatismo, não está cego nem teve algum membro amputado. Sendo assim, a partir de agora que a caridade pública da Irmandade dos Pretos Forros se encarregue dos seus gastos, não só pelo amor à Deus acima de tudo, como possa obter perdão dos seus pecados. Amém.”
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é bão lê tumbém se quisé...
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