quinta-feira, 7 de julho de 2022

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte IV(b) - "Peço Energia, Sigo Já"

 O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 





SEGUNDA PARTE


IV - "Peço Energia, Sigo Já"
  

continuando...


No dia seguinte, tinha recobrado o ânimo. Comprou ingredientes e ei-lo mais o Mané Candeeiro a abrir picadas, a fazer esforços de sagacidade, para descobrir os redutos centrais, as “panelas” dos insetos terríveis. Então era como se os bombardeassem: o sulfeto queimava, estourava em tiros seguidos, mortíferos, letais!
E daí em diante, foi uma batalha sem tréguas. Se aparecia uma abertura, um “olho”, logo se lhe aplicava o formicida, pois, do contrário, nenhuma plantação era possível, tanto mais que extintos os das suas terras, não tardariam os formigueiros das vizinhanças ou dos logradouros públicos a deitar canículos para o seu terreno.
Era um suplício, um castigo, uma espécie de vigilância a dique holandês e Quaresma viu bem que só uma autoridade central, um governo qualquer, ou um acordo entre os cultivadores, podia levar a efeito a extinção daquele flagelo pior que a saraiva, que a geada, que a seca, sempre presente, inverno ou verão, outono ou primavera.
Não obstante essa luta diária, o major não desanimou e pôde colher alguns produtos das plantações que tinha feito. Se por ocasião das frutas, a sua alegria foi grande, mais expressiva e mais profunda ela foi quando viu partir para a estação, em sucessivas carretas, as abóboras, os aipins, as batatas-doces, em cestos cobertos com sacos cosidos. Os frutos, em parte, eram de outras mãos; as árvores não tinham sido plantadas por ele; mas aquilo não, vinha do seu suor, da sua iniciativa, do seu trabalho!
Ele ainda foi ver aqueles cestos na estação, com a ternura de um pai que vê partir seu filho para a glória e para a vitória. Recebeu o dinheiro dias depois, contou-o e esteve deduzindo os lucros.
Não foi à roça nesse dia; o trabalho de guarda-livros roubou o de cultivador. A sua atenção, já um tanto gasta, não lhe favorecia a tarefa das cifras, e só pelo meio-dia, pôde dizer à irmã:
- Sabes qual foi o lucro, Adelaide?
- Não. Menor do que o dos abacates?
- Um pouco mais.
- Então... Quanto?
- Dous mil quinhentos e setenta réis, respondeu Quaresma, destacando sílaba por sílaba.
- O quê?
- Foi isso. Só de frete paguei cento e quarenta e dous mil e quinhentos.
Dona Adelaide esteve algum tempo com os olhos baixos, seguindo a costura que fazia, depois, levantando o olhar:
- Homem, Policarpo, o melhor é deixares isso... Tens gasto muito dinheiro... Só com as formigas!
- Ora, Adelaide! Pensas que quero fazer fortuna? Faço isso para dar exemplo, levantar a agricultura, aproveitar as nossas terras feracíssimas...
- É isto... Queres sempre ser a abelha-mestra... Já viste os grandes fazerem esses sacrifícios?... Vê lá se fazem! Histórias... Metem-se no café que tem todas as proteções...
- Mas, faço eu.
A irmã prestou mais atenção à costura, Policarpo levantou-se, foi até a janela que dava para o galinheiro. Fazia um dia fosco e irritante. Ele concertou o pince-nez, esteve olhando e de lá falou:
- Oh! Adelaide! Aquilo não é uma galinha morta?...
A velha senhora ergueu-se com a costura, foi até à janela e verificou com a vista:
- É... É já a segunda que morre hoje.
Após esta leve conversa, Quaresma voltou à sua sala de estudos. Meditava grandes reformas agrícolas. Mandara buscar catálogos e ia examiná-los. Tinha já em mente uma charrua dupla, um capinador mecânico, um semeador, um destocador, grades, tudo americano, de aço, dando o rendimento efetivo de vinte homens. Até então, não quisera essas inovações; as terras mais ricas do mundo não precisavam desses processos, que lhe pareciam artificiais, para produzir; estava, porém, agora disposto a empregá-los como experiência. Aos adubos, entretanto, o seu espírito resistia.
Terra virada, dizia Felizardo, terra estrumada; parecia a Quaresma uma profanação estar a empregar nitratos, fosfatos ou mesmo estrume comum, numa terra brasileira... Uma injúria!
Quando se convencesse de que eram necessários, parecia-lhe que todo o seu sistema de ideias ia por terra e os móveis de sua vida desapareceriam. Estavam assim a escolher arados e outros “Planets”, “Bajacs” e “Brabants” de vários feitios, quando o seu pequeno copeiro lhe anunciou a visita do Doutor Campos.
O edil entrou com a sua jovialidade, a sua mansidão e o seu grande corpo. Era alto e gordo, pançudo um pouco, tinha os olhos castanhos, quase à flor do rosto, uma testa média e reta; o nariz, malfeito. Um tanto trigueiro, cabelos corridos e já grisalhos, era o que se chama por aí um caboclo, embora o seu bigode fosse crespo. Não nascera em Curuzu, era da Bahia ou de Sergipe, habitava, porém, o lugar há mais de vinte anos, onde casara e prosperara, graças ao dote da mulher e à sua atividade clínica. Com esta, não gastava grande energia mental: tendo de cor uma meia dúzia de receitas, ele, desde muito, conseguira enquadrar as moléstias locais no seu reduzido formulário. Presidente da Câmara, era das pessoas mais consideráveis de Curuzu, e Quaresma o estimava particularmente pela sua familiaridade, pela sua afabilidade e simplicidade.
- Ora viva, major! Como vai isto por aí? Muita formiga? Lá em casa já não há mais.
Quaresma respondeu com menos entusiasmo e jovialidade, mas contente com a alegria comunicativa do doutor. Ele continuava a falar com desembaraço e naturalidade:
- Sabe o que me traz aqui, major? Não sabe, não é? Preciso de um pequeno obséquio seu.
O major não se espantou; simpatizava com o homem e abriu-se em oferecimentos.
- Como o major sabe... Agora a sua voz era doce, flexível, sutil; as palavras caíam-lhe da boca adocicadas, dobravam-se, coleavam-se:
- Como o major sabe, as eleições se devem realizar por estes dias. A vitória é “nossa”. Todas as mesas estão conosco, exceto uma... Aí mesmo, se o major quiser...
- Mas, como? se eu não sou eleitor, não me meto, nem quero meter-me em política? perguntou Quaresma ingenuamente.
- Exatamente por isso, disse o doutor com voz forte; e em seguida brandamente: a seção funciona na sua vizinhança, é ali, na escola, se...
- E daí?
- Tenho aqui uma carta do Neves, dirigida ao senhor. Se o major quer responder (é melhor já) que não houve eleição... Quer?
Quaresma olhou o doutor com firmeza, coçou um instante o cavanhaque e respondeu claramente, firmemente:
- Absolutamente não.
O doutor não se zangou. Pôs mais unção e macieza na voz, aduziu argumentos: que era para o partido, o único que pugnava pelo levantamento da lavoura. Quaresma foi inflexível; disse que não, que lhe eram absolutamente antipáticas tais disputas, que não tinha partido e mesmo que tivesse não iria afirmar uma cousa que ele não sabia ainda se era mentira ou verdade.
Campos não deu mostras de aborrecimento, conversou um pouco sobre cousas banais e despediu-se com o ar amável, com a jovialidade mais sua que era possível. Isto se passou na terça-feira, naquele dia de luz fosca e irritante. À tarde houve trovoada, choveu muito. O tempo só levantou na quinta-feira, dia em que o major foi surpreendido com a visita de um sujeito com um uniforme velho e lamentável, portador de um papel oficial para ele, proprietário do “Sossego”, conforme mesmo disse o tal homem fardado.
Em virtude das posturas e leis municipais, rezava o papel, o Senhor Policarpo Quaresma, proprietário do sítio “Sossego”, era intimado, sob as penas das mesmas posturas e leis, a roçar e capinar as testadas do referido sítio que confrontavam com as vias públicas.
O major ficou um tempo pensando. Julgava impossível uma tal intimação. Seria mesmo? Brincadeira... Leu de novo o papel, viu a assinatura do Doutor Campos. Era certo... Mas que absurda intimação esta de capinar e limpar estradas na extensão de mil e duzentos metros, pois seu sítio dava de frente para um caminho e de um dos lados acompanhava outro na extensão de oitocentos metros - era possível!?
A antiga corvéia!... Um absurdo! Antes confiscassem-lhe o sítio. Consultando a irmã, ela lhe aconselhou que falasse ao Doutor Campos. Contou-lhe então Quaresma a conversa que tivera com ele dias antes.
- Mas és tolo, Policarpo. Foi ele mesmo...
A luz se lhe fez no pensamento... Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhe a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as.
Pelos seus olhos passaram num instante aquelas faces amareladas e chupadas que se encostavam nos portais das vendas preguiçosamente; viu também aquelas crianças maltrapilhas e sujas, d’olhos baixos, a esmolar disfarçadamente pelas estradas; viu aquelas terras abandonadas, improdutivas, entregues às ervas e insetos daninhos; viu ainda o desespero de Felizardo, homem bom, ativo e trabalhador, sem ânimo de plantar um grão de milho em casa e bebendo todo o dinheiro que lhe passava pelas mãos - este quadro passou-lhe pelos olhos com a rapidez e o brilho sinistro do relâmpago; e só se apagou de todo, quando teve que ler a carta que a sua afilhada lhe mandara. Vinha viva e alegre. Contava pequenas histórias de sua vida, a viagem próxima do papai à Europa, o desespero do marido no dia em que saiu sem anel, pedia notícias do padrinho, de Dona Adelaide e, sem desrespeito, recomendava à irmã de Quaresma que tivesse muito cuidado com o manto de arminho da “Duquesa”.
A “Duquesa” era uma grande pata branca, de penas alvas e macias ao olhar, que, pela lentidão e majestade do andar, com o pescoço alto e o passo firme, merecera de Olga esse apelido nobre. O animal tinha morrido havia dias. E que morte! Uma peste que lhe levara duas dúzias de patos, levara a “Duquesa” também. Era uma espécie de paralisia que tomava as pernas, depois o resto do corpo. Três dias levou a agonizar. Deitada sobre o peito, com o bico colado ao chão, atacada pelas formigas, o animal só dava sinal de vida por uma lenta oscilação do pescoço em torno do bico, espantando as moscas que a importunavam na sua última hora.
Era de ver como aquela vida tão estranha à nossa, naquele instante penetrava em nós e sentíamos lhe o sofrimento, a agonia e a dor.
O galinheiro ficou como uma aldeia devastada; a peste atacou galinhas, perus, patos; ora sobre uma forma, ora sobre outra, foi ceifando, matando, até reduzir a sua população a menos de metade. E não havia quem soubesse curar. Numa terra cujo governo tinha tantas escolas que produziam tantos sábios, não havia um só homem que pudesse reduzir com as suas drogas ou receitas aquele considerável prejuízo.
Esses contratempos, essas contrariedades abateram muito o cultivador entusiástico dos primeiros meses; entretanto não passara pela mente de Quaresma abandonar os seus propósitos. Adquiriu compêndios de veterinária e até já tratava de comprar as máquinas agrícolas descritas nos catálogos.
Uma tarde, porém, estava à espera da junta de bois que encomendara para o trabalho do arado, quando lhe apareceu à porta um soldado de polícia com um papel oficial. Ele se lembrou da intimação municipal. Estava disposto a resistir, não se incomodou muito.
Recebeu o papel e leu. Não vinha mais da municipalidade, mas da coletoria, cujo escrivão, Antonino Dutra, conforme estava no papel, intimava o Senhor Policarpo Quaresma a pagar quinhentos mil-réis de multa, por ter enviado produtos de sua lavoura sem pagamento dos respectivos impostos.
Viu bem o que havia nisso de vingança mesquinha; mas o seu pensamento voou logo para as cousas gerais, levado pelo seu patriotismo profundo.
A quarenta quilômetros do Rio, pagavam-se impostos para se mandar ao mercado umas batatas? Depois de Turgot, da Revolução, ainda havia alfândegas interiores?
Como era possível fazer prosperar a agricultura, com tantas barreiras e impostos? Se ao monopólio dos atravessadores do Rio se juntavam as exações do Estado, como era possível tirar da terra a remuneração consoladora?
E o quadro que já lhe passara pelos olhos, quando recebeu a intimação da municipalidade, voltou-lhe de novo, mais tétrico, mais sombrio, mais lúgubre; e anteviu a época em que aquela gente teria de comer sapos, cobras, animais mortos, como em França os camponeses, em tempos de grandes reis.
Quaresma veio a recordar-se do seu tupi, do seu folklore, das modinhas, das suas tentativas agrícolas - tudo isso lhe pareceu insignificante, pueril, infantil.
Era preciso trabalhos maiores, mais profundos; tornava-se necessário refazer a administração. Imaginava um governo forte, respeitado, inteligente, removendo todos esses óbices, esses entraves, Sully e Henrique IV, espalhando sábias leis agrárias, levantando o cultivador... Então sim! O celeiro surgiria e a pátria seria feliz.
Felizardo entregou-lhe o jornal que toda a manhã mandava comprar à estação, e lhe disse:
- Seu patrão, amanhã, não venho “trabaiá”.
- Por certo; é dia feriado... A Independência.
- Não é por isso. - Por que então? - Há “baruio” na Corte e dizem que vão “arrecrutá”. Vou pro mato... Nada! - Que barulho?
- “Tá” nas “foias”, sim “sinhô”.
Abriu o jornal e logo deu com a notícia de que os navios da esquadra se haviam insurgido e intimado ao Presidente a sair do poder. Lembrou-se das suas reflexões de instantes atrás; um governo forte, até à tirania... Medidas agrárias... Sully e Henrique IV...
Os seus olhos brilhavam de esperança. Despediu o empregado. Foi ao interior da casa, nada disse à irmã, tomou o chapéu, e dirigiu-se à estação.
Chegou ao telégrafo e escreveu:
“Marechal Floriano, Rio. Peço energia. Sigo já. - Quaresma.”



continua na página 62...

___________________



Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.



_________________



MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro


_________________


Leia também:

O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte I - A Lição de Violão
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte II(a) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte II(b) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte III(a) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte III(b) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte IV(a) - Desastrosas consequências...
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte IV(b) - Uma vez ou outra...
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte V(a) - O Bibelot
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte V(b) - O Bibelot
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte I(a) - No "Sossego"
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte I(b) - No "Sossego"
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte II(a) - Espinhos e Flores
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte II(b) - Espinhos e Flores
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte III(a) - GoliasO Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte IV(b) - "Peço Energia, Sigo Já"

Nenhum comentário:

Postar um comentário