sexta-feira, 15 de abril de 2022

Edgar Allan Poe - Contos: Ligeia (1)

Edgar Allan Poe - Contos




Ligeia
Título original: Ligeia
Publicado em 1838



Há nisto uma vontade que não morre. Quem
conhece os mistérios da vontade e a sua força?
Porque Deus não é mais que uma grande
vontade, penetrando todas as coisas com a
intensidade que lhe é própria. O homem só
cede aos anjos e só se submete por completo à
morte pela fraqueza da sua pobre vontade.
— Joseph Glanville




Juro-vos pela minha alma que não me lembro quando, nem onde vi, pela primeira vez, lady Ligeia.

Passaram-se longos anos desde esse dia e um grande sofrimento enfraqueceu a minha memória. Ou talvez aconteça agora o não poder recordá-lo, porque realmente o temperamento da minha amada, a sua rara cultura, o seu género de beleza tão singular e tão plácida, e a aliciante e subjugadora eloquência das suas palavras musicais e profundas, tenham penetrado no meu coração de maneira tão sub-reptícia, constante e furtiva que eu não dei conta disso.

No entanto, suponho que a encontrei pela primeira vez, e que depois voltámos a ver-nos multas outras, numa cidade antiga das margens do Reno.

Quanto à sua família, se alguma vez me falou nela, deve ter sido numa data tão longínqua que não tenho a mais pequena ideia.

Oh, Ligeia, Ligeia!

Abismado em estudos cuja natureza amortece as impressões do mundo exterior, basta-me esta palavra tão doce — Ligeia! — para evocar ante os olhos do pensamento a imagem do que já não existe. Mesmo agora, enquanto escrevo, ilumina-me como uma luz a ideia de que nunca soube o nome da família da que foi, primeiro minha amiga e minha prometida, depois minha companheira de estudos e, por fim, a esposa do meu coração.

Foi um capricho de Ligeia? Foi uma prova da força do meu afeto o eu não pedir informação alguma a esse respeito? Ou então abnegação, qualquer coisa como a oferenda romântica de um culto apaixonado? Não sei. Mas se alguma vez o espírito romântico, o pálido Ashtophet do Egito idólatra — o das asas tenebrosas — presidiu, como dizem, a bodas de sinistro augúrio, foi, com certeza, às minhas.

Apesar de tudo, há um ponto claro na minha memória. É a pessoa de Ligeia.

Era alta, um pouco delgada, e nos últimos dias essa magreza aumentou extraordinariamente. Tentaria, inutilmente, pintar a majestade, a tranquila desenvoltura do seu andar e a incompreensível leveza e elasticidade dos seus passos. Ia e vinha como uma sombra. Não me apercebia da sua entrada no meu escritório a não ser pela música querida da sua voz doce e profunda, ou quando ela colocava a sua mão de mármore sobre o meu ombro.

Quanto à beleza do rosto, nenhuma mulher a igualou jamais. Era como a visão de um sonho de ópio, uma visão aérea, enfeitiçadora, mais estranhamente celeste que as quimeras que revoluteiam nas almas submissas das filhas de Delos. No entanto, os seus traços estavam muito longe de ser vazados nesses moldes falsamente regulares que deram as obras clássicas do paganismo.

« Não existe beleza atraente — afirmou Bacon, lorde Verulam, falando com exatidão de todas as formas de beleza — sem certa estranheza nas proporções» .

Embora estivesse convencido de que os traços fisionómicos de Ligeia. não eram de uma regularidade clássica; embora me apercebesse de que a sua beleza era verdadeiramente esquisita e fortemente penetrada de estranheza, em vão me esforcei por descobrir uma irregularidade e também não consegui jamais decifrar o mistério dessa estranheza. Examinava a sua fronte alta e pálida, uma fronte sem defeito — que frias são estas palavras aplicadas a uma majestade divina! — a pele que rivalizava com o mais puro marfim, a amplidão imponente, a calma, a graciosa curvatura das fontes, a cabeleira negra como as asas de um corvo, luxuriante, ondulada, justificando a expressão homérica: cabeleira de jacinto.

Observava as linhas delicadas do seu nariz e não me recordava de tê-las visto iguais a não ser nos graciosos medalhões hebraicos. O mesmo desenho, a mesma superfície soberbamente unida, a mesma imperceptível tendência para a forma aquilina, reveladora de um espírito claro. Olhava para a boca encantadora e via nela um triunfo de todas as coisas celestiais : a curva gloriosa do lábio superior, um pouco curto, o ar docemente, voluptuosamente, repousado do lábio inferior, e os dentes que refletiam como um relâmpago cada raio da luz bendita que caía sobre eles, o seu sorriso plácido e sereno mas radiante e triunfal.

Via a forma do queixo cheio de força e majestade, com aquela espiritualizada plenitude grega, aqueles contornos que Apoio revelou em sonhos a Cleómenes, filho de Cleómenes de Atenas.

Por fim, olhava para os grandes olhos de Ligeia. Nem na mais remota antiguidade se encontraria o modelo de semelhantes olhos. Talvez neles se ocultasse o mistério de que fala lorde Verulam. Eram maiores que os olhos de qualquer criatura humana, mais rasgados que os olhos de uma gazela dos vales de Nurjahad, mas só em certas ocasiões, em certos momentos de excessiva animação essa particularidade me surpreendia. Nesses momentos, a sua beleza era, ou, pelo menos, o meu espírito inflamado assim o supunha, como a beleza das famosas huris turcas. As pupilas possuíam um negro brilhante e as pestanas, longas e igualmente negras, tinham a negrura profunda das suas sobrancelhas ligeiramente irregulares. A estranheza dos seus olhos era, no entanto, independente da forma, da cor e do brilho, e devia, portanto, atribuir-se à expressão deles.

Mas esta palavra não tem sentido e não é mais que um som de vaga significação com que a nossa ignorância se defende dos mistérios espirituais.

A expressão dos olhos de Ligeia! Quantas horas (e que longas!) eu meditei sobre ela! Quantas vezes, nas noites estivais, eu tentei sondá-la! Que era esse não sei quê, essa qualquer coisa mais profunda que o fogo de Demócrito que existia no fundo das pupilas da minha bem amada? Ignorava-o. Mas estava possuído pela obsessão de descobri-lo.

Oh, os seus olhos! As suas largas, brilhantes e divinas pupilas! Chegaram a ser para mim como as estrelas gémeas de Leda e, por elas, fui o mais apaixonado dos astrónomos.

Entre as numerosas e incompreensíveis anomalias da ciência psicológica não há nenhuma tão interessante, tão excitante como querer a gente recordar-se de uma coisa esquecida há muito tempo, encontrarmo-nos à beira mesmo da recordação, sem a atingir completamente.

Desta maneira, quantas vezes ao tentar a análise ardente dos olhos de Ligeia senti aproximar-se o completo conhecimento do segredo da sua expressão! E, no entanto, nunca consegui apoderar-me dele, pois acabava por desaparecer de todo.

No entanto (oh estranho, oh mais estranhos dos mistérios!), sempre encontrei nos objetos mais comezinhos e vulgares do mundo uma série de analogias com essa expressão. Desde a época em que a beleza de Ligeia se introduziu no meu espírito e se instalou ali como num relicário, muitos seres do mundo material me provocaram uma sensação análoga à que eu sentia flutuar sobre mim, ou em mim, sob a influência das suas enormes e luminosas pupilas. Mas nem por isso eu deixei de ser incapaz de definir exatamente esse sentimento e de o analisar. Reconheci-o muitas vezes no rápido crescimento de uma vinha, na contemplação de uma falena, de uma borboleta, de uma crisálida, ou numa corrente de água borbulhante. Encontrei-o no Oceano e na passagem de um meteoro. Pressenti-o no olhar de alguns velhos centenários.

Há no céu uma ou duas estrelas, sobretudo uma dupla e lucilante que se encontra próximo da grande estrela da Lira, que vistas com o telescópio me produziram um sentimento análogo. Também experimentei a mesma sensação com certos sons de instrumentos de corda, assim como em algumas passagens das minhas leituras.

Entre outros inumeráveis exemplos lembro-me bem de que em certo livro de Joseph Glanville encontrei qualquer coisa extraordinariamente expressiva e evocadora: « Há nisto uma vontade que não morre. Quem conhece os mistérios da vontade e a sua força? Porque Deus não é mais que uma grande vontade, penetrando todas as coisas com a intensidade que lhe é própria. O homem só cede aos anjos e só se submete por completo à morte pela fraqueza da sua pobre vontade» .

Reli e meditei muitas vezes este parágrafo e acabei por estabelecer uma certa, embora longínqua, relação entre as palavras do filósofo e moralista inglês e o caráter de Ligeia. Uma intensidade singular no pensamento, na ação, na palavra, seria talvez o resultado, ou, pelo menos, o indício dessa gigantesca potência volitiva, que no decorrer das nossas longas relações havia de dar outras e mais positivas provas da sua existência.

De todas as mulheres que conheci, a plácida Ligeia, de aspecto tão tranquilo, era a presa mais dilacerada pelos tumultuosos abutres da paixão cruel. Eu não podia avaliar essa paixão a não ser pelo milagroso eflúvio daqueles olhos caridosos e ao mesmo tempo assustadores, pela melodia quase mágica, a modulação, a nitidez e doce calma da sua voz profunda, e pela selvagem energia das estranhas palavras que habitualmente pronunciava e cujo efeito se duplicava contrastando com a forma como as proferia.

Já falei da cultura de Ligeia. Era imensa, não igualada por nenhuma mulher. Conhecia profundamente as línguas clássicas, e, no que diz respeito aos meus próprios conhecimentos das línguas modernas da Europa, nunca a surpreendi na mais pequena falta. No fim de contas, porém, a sua cultura não se revelava só na linguística, mas em qualquer tema de erudição académica. Ligeia não tinha defeito. A conclusão da sua superioridade infinita fazia com que eu me resignasse, com a confiança de um estudante, e me deixasse conduzir por ela no mundo caótico das investigações metafísicas, pelas quais me fez interessar desde os primeiros anos do nosso matrimónio,

Com que delícia triunfal, com que esperança etérea eu via como Ligeia, inclinada sobre mim, desdobrava a admirável perspectiva, a ampla avenida esplêndida e virgem pela qual chegava ao fim de uma sabedoria demasiado preciosa e demasiado divina para não ser proibida! Com que terrível dor não vi depois, ao cabo de alguns anos, que todas essas esperanças fugiam voando rapidamente!

Sem Ligeia, eu não era mais que um menino às apalpadelas na noite. Só a sua presença, as suas lições, podiam iluminar com luz viva os mistérios transcendentes que aprofundávamos.

Privado do fulgor lustral dos seus olhos, toda aquela literatura alada e áurea, de começo, se tornava fastidiosa e pesada como chumbo.

Os seus olhos cada vez iluminavam menos as páginas que eu ia decifrando. Ligeia caiu doente. Os seus olhos estranhos ardiam com uma luz brilhante de mais, os dedos pálidos tomaram a cor da morte, uma cor transparente e cerúlea. As veias azuis da sua fronte palpitavam impetuosas. Compreendi que ela ia morrer e lutei desesperadamente contra o horrível Azrael.

Com grande espanto meu, os esforços dessa mulher apaixonada foram ainda mais enérgicos. A julgar pela seriedade da sua natureza, supus que a morte chegaria para ela livre de terrores; mas não foi assim.




continua na página 288...

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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.



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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849


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