sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Edgar Allan Poe - Contos: Leonor

Edgar Allan Poe - Contos



Leonor
Título original: Eleonora
Publicado em 1841



Sub conservatione formae especificae salva 
anima.
— Raimond Lully


Eu sou oriundo de uma raça caracterizada pelo vigor da fantasia e pelo ardor da paixão. Os homens chamaram-me doido; mas ainda não está resolvido o problema — se a loucura é ou não a suprema inteligência — se muito do que é glorioso — se tudo o que é profundo — não tem a sua origem numa doença do pensamento — em modalidades do espírito exaltadas à custa das faculdades gerais. Aqueles que sonham de dia sabem muitas coisas que escapam àqueles que somente de noite sonham. Nas suas vagas visões obtêm relances de eternidade, e, quando despertam, estremecem ao verem que estiveram mesmo à beira do grande segredo. Penetram, sem leme nem bússola, no vasto oceano da « luz inefável» ; e de novo, como os aventureiros do geógrafo núbio, aggressi sunt mare tenebrarum, quid in eo esset exploraturi.

Diremos, então, que estou doido. Concordo, pelo menos, em que há dois estados distintos da minha existência mental — o estado de uma razão lúcida, que não pode ser contestada, e pertencente à memória de acontecimentos que constituem a primeira época da minha vida — e um estado de sombra e dúvida, que abrange o presente e a recordação do que constitui a segunda grande era do meu ser. Por consequência, acreditai tudo o que eu disser do primeiro período da minha existência; e dai ao que eu vier a contar dos derradeiros tempos o crédito que se vos afigurar justo; ou ponde-o completamente em dúvida; ou, se não puderdes duvidar, fazei de Édipo e procurai decifrar o seu enigma.

Aquela que na minha mocidade eu amei, e de quem agora, serena e lucidamente, estou traçando estas recordações, era a filha única da única irmã de minha mãe havia muito falecida.

Minha prima chamava-se Leonor. Havíamos sempre vivido juntos, sob um sol tropical, no vale de Many -Coloured Grass. Jamais viandante algum aventurou seus passos por aquele vale; pois estendia-se por entre uma cadeia de montes gigantescos, que sobre ele debruçavam as suas escarpas, vedando o acesso dos raios solares aos seus mais aprazíveis recônditos. Nas suas proximidades atalho algum jamais fora trilhado, e, para chegarmos ao nosso ditoso lar, não precisávamos de afastar, com força, a folhagem de milhares de árvores florestais, nem de esmagar milhões de fragrantes flores. Assim vivíamos nós sozinhos, nada sabendo do mundo para além do vale — eu, minha prima e sua mãe.

Das obscuras regiões de além dos montes, no extremo superior dos nossos domínios, descia um estreito e profundo rio, que excedia em brilho e limpidez tudo menos os claros olhos de Leonor; e, serpeando furtivamente em intrincados meandros, embrenhava-se por fim através de uma sombria garganta, por entre montes ainda mais negros do que aqueles de que brotara. Denominávamo-lo o « Rio do Silêncio» , pois as suas águas pareciam ter a faculdade de tudo emudecer. Do seu leito nenhum murmúrio se erguia, e tão de mansinho ia desfiando o seu curso que os diáfanos seixinhos que esmaltavam o fundo e que nós tanto gostávamos de contemplar, permaneciam absolutamente imóveis, refulgindo eternamente no velho sítio onde um dia se quedaram.

A margem do rio e de muitos cintilantes riachos que, por tortuosos rodeios, a ele afluíam, bem como os espaços que das margens desciam até o leito de seixos do fundo das águas — todos estes lugares, não menos do que toda a superfície do vale, desde o rio até as montanhas que o circundavam, eram tapetados por uma relva verde, macia, espessa, curta, perfeitamente lisa e perfumada a baunilha, mas tão profusamente matizada com botões de ouro, margaridas, violetas e asfódelos, que a sua extraordinária beleza falava aos nossos corações, com eloquência e paixão, do amor e da glória de Deus.

E, aqui e além, em maciços que se diriam antes matas de sonhos, brotavam fantásticas árvores, cujos altos e esguios troncos se não erguiam a prumo, mas, torcendo-se, inclinavam-se para a luz que ao meio dia irrompia pelo centro do vale. A sua casca apresentava ao mesmo tempo o esplendor do marfim e da prata e era mais macia do que tudo menos as macias faces de Leonor; de sorte que, se não fora o verde brilhante das enormes folhas que das suas copas se alastravam em linhas compridas e trémulas, embaladas pelos zéfiros, poderia alguém imaginá-las gigantescas serpentes da Síria prestando homenagem ao seu Soberano — o Sol.

De mãos dadas, durante quinze anos, vagueei eu com Leonor por este vale, antes de o Amor penetrar em nossos corações. Era uma tarde, ao cerrar-se o terceiro lustro da sua vida e o quarto da minha: nós estávamos sentados, abraçados um no outro, debaixo das árvores-serpentes e contemplávamos as nossas imagens refletidas no espelho das águas do « Rio do Silêncio. Nem mais uma palavra pronunciámos durante o resto daquele doce dia, e na manhã seguinte ainda as nossas palavras eram trémulas e raras. Do fundo das águas havíamos tirado o deus Eros, e agora sentíamos que havíamos ateado dentro de nós as almas ardorosas dos nossos maiores. As paixões que durante séculos haviam caracterizado a nossa raça acudiam agora de tropel com as fantasias que os haviam igualmente distinguido e bafejavam venturas e bênçãos sobre o vale de Many -Coloured Grass. Tudo como por encanto mudou. Sobre as árvores onde jamais se conhecera uma flor desabrocharam agora estranhas flores em forma de estrela. Tornaram-se mais carregados os tons das alfombras de verdura; e quando, uma a uma, murcharam as brancas margaridas, surgiram, em seu lugar, dez a dez, os asfódelos da cor dos rubis. E a vida brotava nos nossos atalhos; pois o alto flamingo, até aqui nunca visto, com todas as alacres e variegadas aves, ostentava ante nós a sua plumagem escarlate. Peixes de ouro e de prata acorriam agora ao rio, de cujo seio se erguia, de mansinho, um murmúrio que, por fim, foi engrossando até se transformar numa suave melodia mais divina do que a da harpa de Éolo, mais doce do que tudo menos a voz de Leonor. E agora, também uma enorme nuvem, que por muito tempo dominara as regiões do Hesper, avançara num deslumbramento de carmesim e ouro e viera pairar serenamente sobre nós, descendo dia a dia até pousar sobre os cumes dos montes, transfigurando-os com o seu glorioso esplendor, e encerrando-nos, como que para todo o sempre, dentro de uma mágica prisão de magnificência e glória.

O encanto de Leonor era o de um Serafim; mas ela era uma rapariga ingénua e simples como a curta vida que vivera entre as flores. Nenhum artificio mascarava o amor que lhe estuava no coração, e ela examinava comigo os seus mais íntimos recessos, quando juntos passeávamos no vale de Many-Coloured Grass e conversávamos sobre as notáveis transformações que nele ultimamente se haviam operado.

Um dia, finalmente, tendo falado, banhada em pranto, da triste e derradeira transformação que a Humanidade deve sofrer, nunca mais deixou de discutir este doloroso assunto, intercalando-o em todas as nossas conversas, como nos cantos do bardo de Schiraz estão constantemente ocorrendo as mesmas imagens, a cada passo repetidas em cada impressionante variação de frase.

Ela tinha visto que o dedo da Morte se lhe cravara no seio — que, como o efémero, ela fora feita perfeita em encanto e beleza somente para morrer; mas para ela os terrores do túmulo apenas consistiam numa apreensão, que uma tarde, ao crepúsculo, ela me revelou passeando comigo pelas margens do « Rio do Silêncio» . O que a penalizava era pensar que, após havê-la sepultado no vale de Many -Coloured Grass, eu abandonaria para sempre aquelas ditosas paragens, transferindo o amor, que só dela tão apaixonadamente agora era para alguma rapariga do mundo exterior e banal. E, então, ao ouvir-lhe exprimir este pesar, atirei-me aos pés de Leonor e jurei-lhe que nunca me ligaria pelo casamento a filha alguma da Terra — que jamais eu, fosse de que maneira fosse, trairia a sua querida recordação ou a recordação do devotado afeto que tamanha ventura trouxera à minha vida. Invoquei o omnipotente Senhor do Universo como testemunha da pia solenidade do meu juramento. E a maldição que de Deus e dela impetrei, no caso de eu atraiçoar o meu juramento, envolvia uma pena cujo extraordinário horror me não permite referi-la aqui.

Os claros olhos de Leonor tornaram-se mais claros, quando eu assim exprimi o carinho que a prendia à minha vida; suspirou, como se do peito lhe arrancaram um peso mortal; tremeu e chorou amargamente; mas (que era ela senão uma criança?) aceitou o juramento, que lhe tornava mais macio o leito da morte. E disse-me, não muitos dias depois, finando-se tranquilamente, que, em vista do que eu fizera para alívio e consolo do seu espírito, velaria sempre por mim depois de morta, e, se tal lhe fosse permitido, voltaria visivelmente a visitar-me nas vigílias da noite; se, porém, isto ultrapassasse o que às almas no Paraíso é permitido, dar-me-ia, pelo menos, frequentes indicações da sua presença, suspirando sobre mim nos ventos da tarde ou enchendo o ar que eu respirasse com o perfume dos turíbulos dos anjos. E, com estas palavras nos lábios, exalou a sua inocente vida, pondo termo à primeira época da minha.

Até aqui é fiel o relato que fiz. Mas, quando transponho a barreira formada pela morte da minha amada e penetro na segunda era da minha existência, sinto uma sombra empolgar-me o cérebro e não confio na perfeita sanidade das minhas palavras. Mas prossigamos.

Os anos foram-se arrastando pesadamente e eu continuei habitando no vale de Many -Coloured Grass; — mas uma segunda transformação se operara em todas as coisas. As flores estreladas secaram nas árvores e não mais reapareceram. Apagaram-se os matizes do verde tapete de relva; e, um a um, murcharam os rubros asfódelos, e, em seu lugar, surgiram, dez a dez, escuras violetas contorcionadas e sempre carregadas de orvalho.

A Vida desapareceu dos nossos atalhos; o alto flamingo já não exibia ante nós a sua plumagem escarlate, mas tristemente fugiu do vale para os montes com todas as alacres aves multicores que em sua companhia haviam vindo. Os peixes de ouro e de prata nunca mais esmaltaram o nosso doce rio. A suave melodia que encantara mais do que a harpa de Éolo e fora mais divina do que tudo menos a voz de Leonor, foi-se a pouco e pouco extinguindo, sumindo-se em murmúrios cada vez mais débeis, até que, por fim, o rio voltou à solenidade do seu primitivo silêncio. E então ergueu-se de novo a enorme nuvem, e, abandonando os píncaros dos montes à sua antiga tristeza, recuou para as regiões do Hesper, e consigo levou todo o áureo esplendor e todas as radiosas magnificências que por alguns anos transfiguraram o vale de Many-Coloured Grass.

Todavia, as promessas de Leonor não ficaram no olvido; pois eu ouvia os sons do baloiçar dos turíbulos dos anjos; correntes de um sagrado perfume flutuavam permanentemente sobre o vale; nas horas ermas, quando o meu coração palpitava pesadamente, os ventos que me refrescavam a fronte vinham carregados de brandos suspiros; indistintos murmúrios enchiam muitas vezes o ar da noite; e uma vez — oh, mas só uma vez! eu fui despertado de um sono, que se me afigurava o sono da morte, pela pressão duns lábios espirituais sobre os meus.

Mas o vácuo dentro do meu coração recusava-se, ainda assim, a ser preenchido. Tinha saudades do amor que o enchera a transbordar. Por fim o vale fazia-me sofrer pelas recordações de Leonor, e abandonei-o então para sempre, trocando-o pelas vaidades e pelos turbulentos triunfos do mundo.


****


Encontrei-me dentro de uma estranha cidade, onde todas as coisas poderiam ter servido para me apagarem da lembrança os doces sonhos que por tanto tempo sonhara no vale de Many-Coloured Grass. O luxo e a pompa de uma corte majestosa, o doido clangor das armas e a radiosa beleza das mulheres desvairaram-me e embriagaram-me o cérebro. Até aqui, porém, ainda a minha alma permanecera fiel aos seus juramentos, e nas horas silentes da noite ainda até mim chegavam as revelações da presença de Leonor.

De súbito cessaram estas manifestações; o mundo escureceu de todo ante os meus olhos; e eu quedei-me espavorido ante o escaldante pensamento que me possuía — ante as terríveis tentações que me empolgavam; pois de muito longe, de uma terra distante e ignota, viera para a alegre corte do rei que eu servia, uma menina a cuja beleza todo o meu perjuro coração imediatamente se rendeu — a cujos pés me curvei sem uma luta, no mais ardente, no mais abjeto culto de amor.

Que era, na verdade, a minha paixão pela rapariguinha do vale comparada com o fervor e o delírio, o alucinado êxtase de adoração com que eu depunha toda a minha alma em pranto aos pés da etérea Hermengarda? — Oh, que deslumbrante era a angélica Hermengarda! e na minha alma para ninguém mais havia lugar. — Oh, que divina era a celestial Hermengarda! e quando eu sondava as profundezas dos seus olhos inolvidáveis, só neles pensava — só neles e nela!

Casei; não me arreceei da maldição que invocara; nem senti o amargor de haver infringido um juramento solene.

Mas uma vez, no silêncio da noite, chegaram até mim, através das minhas persianas, os brandos suspiros que havia muito eu já não ouvia; e, numa voz familiar e doce, percebi estas palavras que jamais esquecerei:

— Dorme em paz! — pois o Espírito do Amor reina e governa, e, acolhendo no teu apaixonado coração aquela que se chama Hermengarda, tu és absolvido, por motivos que só no céu te serão explicados, dos juramentos que fizeste a Leonor!»


continua na página 327...

__________________


Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.



____________________


Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849


_____________________


Leia também:

Edgar Allan Poe - Contos: MetzengersteinEdgar Allan Poe - Contos: Silêncio
Edgar Allan Poe - Contos: Um Manuscrito encontrado numa Garrafa
Edgar Allan Poe - Contos: A Entrevista
Edgar Allan Poe - Contos: Berenice (começo)
Edgar Allan Poe - Contos: Morella
Edgar Allan Poe - Contos: O Rei Peste
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (01)
Edgar Allan Poe - Contos: A Sombra
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym (Prefácio)
Edgar Allan Poe - Contos: Ligeia (1)
Edgar Allan Poe - Contos: Leonor

Nenhum comentário:

Postar um comentário