terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Edgar Allan Poe - Contos: Os Crimes da Rua Morgue (01)

Edgar Allan Poe - Contos


Os Crimes da Rua Morgue
Título original: The Murders in the Rue Morgue 
Publicado em 1841



As faculdades de espírito que se definiram pelo termo « analíticas» são elas próprias muito pouco suscetíveis de análise. Não as apreciamos senão pelos seus resultados. O que sabemos, entre outras coisas, é que elas são para aquele que as possui num grau extraordinário uma das mais intensas fontes de prazer. Do mesmo modo que o homem forte se regozija com a sua aptidão física e se compraz com os exercícios que põem os seus músculos em ação, a análise orgulha-se desta atividade espiritual cuja função é a de discernir. Sente mesmo prazer nas ocasiões mais triviais em que põe o seu talento em jogo. Apaixonam os segredos, enigmas figurados, hieróglifos. Manifesta em cada uma das soluções uma forte perspicácia, que vulgarmente assume um caráter sobrenatural. Os resultados habilmente deduzidos pelo próprio espírito e essência do seu método revelam realmente intuição.

Esta faculdade de « resolução» é talvez baseada num estudo intenso das matemáticas e, em particular, no mais elevado grau desta ciência, que muito impropriamente e devido simplesmente às suas operações retrógradas se designou análise, como se ela tosse análise por excelência. Porque, em suma, todo o cálculo não é em si uma análise.

Um jogador de xadrez, por exemplo, faz perfeitamente uma coisa sem a outra, pelo que se deduz que este jogo não é devidamente apreciado quanto aos seus efeitos sobre o espírito.

Não quero escrever um tratado de análise, mas apenas pôr em evidência, no início de um singular relato, algumas observações apanhadas aqui e ali e que lhe servirão de prefácio.

Aproveito, portanto, esta ocasião para proclamar que o grande poder de reflexão é bem mais ativo e mais utilmente explorado pelo modesto jogo de damas que por toda a laboriosa futilidade do xadrez. Neste último jogo em que todas as pedras são dotadas de movimentos diversos e estranhos, e representam valores diferentes e variados, a complexidade é tomada — erro bastante comum — por profundidade. A atenção é o principal neste jogo.

Se enfraquece por um instante, comete um grande erro, do qual resulta uma perda ou uma grande derrota. Como os movimentos possíveis não são somente variados, mas desiguais em « potência» , as oportunidades de semelhantes erros são múltiplas; em nove de dez casos é o jogador mais atento que ganha e não o mais hábil.

Nas damas, pelo contrário, em que o movimento é simples e não sofre senão poucas variações, as probabilidades de inadvertência são muito menores, e a atenção não sendo absoluta e completamente monopolizada, todas as vantagens alcançadas por cada um dos jogadores não podem ser adquiridas senão por uma perspicácia superior.

Para pôr de parte essas abstrações, suponhamos um jogo de damas em que a totalidade das peças seja reduzida a quatro « damas» , e onde naturalmente não há ocasião de se entregar a distrações. É evidente que a vitória não pode ser decidida — se as duas partes são absolutamente iguais — senão por hábil tática resultante de qualquer esforço poderoso do intelecto. Privado de recursos vulgares, o analítico perscruta o espírito do seu adversário, identifica-se com ele e muitas vezes descobre num relance o único meio — um meio algumas vezes absurdamente simples — de o induzir a um erro ou de o precipitar num falso cálculo.

Por muito tempo se citou o whist pela sua ação sobre a faculdade de cálculo: e conheceram-se homens de uma grande inteligência que pareciam ter um prazer incompreensível e desdenhavam o xadrez como um jogo frívolo. Com efeito, não há nenhum jogo análogo que faça trabalhar mais a faculdade de análise. O melhor jogador de xadrez da cristandade não pode nunca ser outra coisa senão o melhor jogador de xadrez; mas a potência do whist implica com o poder de vencer em todas as especulações, assim como noutras importantes em que o espírito se debate com outro espírito.

Quando digo força, digo esta perfeição ao jogo que compreende a inteligência em todos os casos, dos quais se pode legitimamente obter benefício.

Eles são não só diversos, mas complexos, e são subtraídos muitas vezes da profundeza de pensamentos absolutamente inacessíveis a uma inteligência vulgar. Observar atentamente é recordar-se distintamente: e, sob esse ponto de vista, o jogador de xadrez é capaz de uma atenção muito intensa e jogará muito bem ao whist, porque as regras de Hoy le, baseadas elas próprias num simples mecanismo do jogo, são facilmente e em geral inteligíveis.

Por conseguinte, ter uma memória fiel e proceder segundo a razão são pontos que constituem para o vulgar o summum do bom jogador. Mas é para os casos que fogem à regra que o talento da análise se manifesta: faz em silêncio uma infinidade de observações e de deduções. Os seus parceiros fazem outras tantas, talvez; e a diferença de extensão nos conhecimentos assim adquiridos, não permanece tanto na validade da dedução, como na qualidade de observação. Importa saber, sobretudo, o que é preciso observar. O nosso jogador não se confina ao seu jogo, e, se bem que este jogo seja o objetivo da sua atenção, não rejeita por isso as deduções que surgem de objetos estranhos ao jogo.

Ele examina a fisionomia do parceiro e compara-a cuidadosamente com a de cada uma dos seus adversários. Considera a maneira como cada um distribui as cartas; conta muitas vezes, graças aos olhares que deixam escapar os jogadores satisfeitos, com os trunfos honneurs, um a um.

Repara ainda em cada expressão fisionómica, à medida que o jogo se desenrola e recolhe o necessário dos pensamentos, das expressões variadas de confiança, de surpresa, de triunfo ou de mau humor. Pela forma de apanhar uma vaza, adivinha se a mesma pessoa pode fazer uma outra em seguida. Reconhece se o que foi jogado na mesa é um disfarce astucioso. Uma palavra acidental, involuntária, uma carta que cai ou que se volta por acaso, que se apanha com ansiedade ou imprevidentemente; o contar das vazas e a ordem com que são arrumadas; o embaraço, a hesitação, a vivacidade, o nervosismo. Tudo é para ele sintoma, diagnóstico, e influi para esta percepção — intuição aparente — do verdadeiro estado das coisas. Quando se fazem as duas ou três primeiras jogadas, ele conhece a fundo o jogo que está em cada mão, e pode desde então jogar as suas cartas com perfeito conhecimento de causa, como se todos os outros jogadores tenham mostrado as deles.

A faculdade de análise não deve ser confundida com o simples engenho; porque enquanto o analista é forçosamente engenhoso, acontece muitas vezes que o homem engenhoso é absolutamente incapaz de analisar. A faculdade de combinar, ou construtividade, que os frenologistas — erram, quanto a mim — consideram um órgão à parte, supondo que ela seja uma faculdade primordial, apareceu em seres cuja inteligência era limítrofe da idiotice, bastantes vezes para atrair a atenção geral dos escritores psicológicos. Entre o engenho e a aptidão analítica há uma diferença muito maior do que entre o imaginativo e a imaginação, mas de um caráter rigorosamente análogo. Em suma, ver-se-á que o homem engenhoso está sempre cheio de imaginação è que o homem imaginativo não passa de um analítico. A narrativa que se segue será para o leitor um comentário elucidativo das proposições que acabei de expor

Morava eu em Paris — durante a primavera e uma parte do verão de 18... — quando travei aí conhecimento com um certo C. Auguste Dupin. Este jovem gentleman pertencia a uma excelente família, uma ilustre família mesmo; mas, devido a imensos acontecimentos desastrosos, ficou numa tal pobreza que sucumbiram todas as energias do seu caráter e acabou por se aventurar na vida a tentar restabelecer a fortuna. Graças à cortesia dos seus credores, ficou de posse de um resto do seu património, e do rendimento que recebia dele, arranjou forma, devido a uma economia rigorosa, de fazer face às necessidades da vida, sem se inquietar absolutamente nada com as coisas supérfluas. Os livros eram na verdade o seu único luxo, e em Paris obtêm-se facilmente.

O nosso primeiro encontro ocorreu num obscuro gabinete de leitura da Rua Montmartre, por um acaso, quando estávamos ambos à procura do mesmo livro, bastante notável e muito raro. A partir de então passámos a ver-nos com frequência. Interessei-me profundamente pela sua historiazinha de família, que ele me contava minuciosamente com a candura e o à vontade — a sem cerimónia do eu — que é próprio de todos os Franceses quando falam dos seus próprios negócios. Fiquei muito admirado com a prodigiosa vastidão das suas leituras e acima de tudo senti o meu espírito enlevado pela fresca vitalidade da sua imaginação. Ao procurar em Paris certos objetivos que consistiam o meu único estudo, vi que a companhia de semelhante homem seria para mim um tesouro incalculável e desde então dediquei-me francamente a ele. Decidimos enfim que viveríamos juntos todo o tempo da minha estada nesta cidade. E, como os meus negócios eram um pouco menos complicados que os seus, encarreguei-me de alugar e de mobilar, num estilo apropriado à melancolia fantástica dos nossos dois caráteres, uma casinha antiga e estranha, de cujas superstições nós desdenhámos, bem como do motivo que a teria feito abandonar — quase que em ruínas, e situada numa rua solitária de Saint-Germain

Se a rotina da nossa vida neste lugar fosse conhecida no mundo, nós teríamos passado por dois doidos — talvez daqueles do género inofensivo. A nossa reclusão era completa; não recebíamos nenhuma visita. O lugar do nosso retiro permaneceu um segredo — cuidadosamente guardado — para os meus antigos camaradas, e havia vários anos que Dupin deixara de ver gente e de percorrer Paris. Nós não vivíamos senão um para o outro.

O meu amigo tinha um humor estranho. Como defini-lo? Amava a noite, pelo amor à noite; ela era a sua paixão, e eu mesmo participava tranquilamente nesta mania, como em todas as outras que lhe pertenciam, deixando-me levar ao sabor de todas as suas estranhas originalidades num perfeito abandono. A negra divindade não poderia morar sempre conosco, mas fechávamos as pesadas persianas do nosso casebre, acendíamos duas velas muito perfumadas que não davam senão uma luz muito fraca e muito pálida. Apenas com esta débil claridade a nossa alma entregava-se aos seus sonhos: líamos, escrevíamos ou falávamos, até que o relógio nos anunciava a verdadeira escuridão. Então, andávamos pelas ruas abraçados, continuando a conversa do dia, caminhando ao acaso até a uma hora tardia e procurando através das luzes desordenadas e das trevas da populosa cidade, essas inumeráveis excitações espirituais que o estudo calmo não pode proporcionar

Nestas circunstâncias, eu não podia impedir-me de reparar e de admirar — se bem que o rico idealismo de que ele era dotado tivesse de me preparar para tal — uma aptidão analítica particular de Dupin. Parecia sentir um prazer amargo em exercê-la — talvez mesmo em expô-la — e confessava sem cerimónia o prazer que sentia com isso. Dizia-me, com um sorrisinho muito aberto, que muitos homens tinham para ele uma janela fechada em vez do coração, e habitualmente acompanhava uma asserção semelhante de provas imediatas e das mais surpreendentes, tiradas de um conhecimento profundo da minha própria pessoa. Nesses momentos, os seus modos eram frios e distantes. Os seus olhos fixavam o vácuo e a sua voz — uma bela voz de tenor — elevava-se, como de costume, uma oitava, com petulância, sem a absoluta deliberação do seu falar e a certeza absoluta da sua acentuação. Observava-lhe os seus passos e sonhava muitas vezes com a velha filosofia « de desdobramento da alma» e divertia-me a ideia de um Dupin duplo — um Dupin criador e um Dupin analista. Não imaginem, depois do que acabo de contar, que vou desvendar um grande mistério ou escrever um romance. O que observei neste francês singular, era simplesmente o resultado de uma inteligência superexcitada, talvez doentia. Mas um exemplo dará uma melhor ideia da natureza das suas observações na época a que me refiro.


continua na página 332...

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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.



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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849


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