Edgar Allan Poe - Contos
O Homem das Multidões
Título original: The Man of the Crowd
Publicado em 1840
Houve quem dissesse muito judiciosamente de certo livro alemão: Es Ioesst sich nicht lesen (não se deixa ler). Do mesmo modo há segredos que não se deixam revelar.
Quantos homens morrem nos seus leitos torcendo convulsivamente as mãos dos espectros que os confessam e cravando neles olhos lastimáveis! Quantos morrem com o desespero na alma, convulsionados pelo horror dos mistérios que não querem ser revelados! Algumas vezes, ai!, a consciência humana geme sob o peso de um horror tão fundo que só o tumulo pode aliviá-la desse fardo. Assim a essência do crime não pode jamais ser explicada.
Ainda não há muito tempo, ao cair de uma tarde de outono, estava eu sentado à janela do hotel D... em Londres. Convalescia então de uma doença de alguns meses e, à medida que ia recuperando as forças, sentia-me numa destas disposições felizes que são precisamente o contrário do aborrecimento; disposições em que a apetência moral está vivamente estimulada pelo desaparecimento das cataratas que cobriam a visão espiritual; em que o espírito eletrizado ultrapassa tão prodigiosamente as suas faculdades ordinárias que a ingênua e sedutora divisa de Leibnitz vence a retórica louca e fraca de Górgias. A simples ação de respirar era um gozo para mim; e mesmo de coisas muito plausíveis para desgosto a minha sensibilidade tirava um prazer positivo. Tudo me inspirava interesse e curiosidade. Durante a maior parte da tarde, com um cigarro na boca e um jornal em cima dos joelhos, diverti-me ora a ver os anúncios, ora a observar a sociedade mista do salão, ora a olhar para a rua através dos vidros embaciados pelo fumo.
A rua do hotel D..., uma das principais artérias da cidade, estivera todo o dia cheia de gente. Com o cair da noite, a multidão aumentara ainda, de sorte que, ao acender dos revérberos, duas correntes de povo, espessas e contínuas, desfilavam por defronte da porta. Aquele oceano tumultuoso de cabeças humanas penetrava-me de uma emoção deliciosa e perfeitamente nova. Nunca me sentira numa situação semelhante àquela em que me achava nesse momento particular da noite. Por fim, deixei de prestar atenção alguma ao que se passava no hotel, absorto na contemplação da cena interior.
As minhas primeiras observações foram abstratas e gerais, olhando os transeuntes em massa e não os considerando senão na sua harmonia coletiva. Depois desci ao detalhe e examinei, com um interesse minucioso, as inumeráveis variedades de figuras, de toilettes, de aspetos, de andamentos, de rostos e de expressões fisionómicas.
A maior parte dos que passavam tinham o ar decidido de quem vai em serviço e pareciam não pensar senão em abrir caminho através da multidão. O seu aspecto era carrancudo e os olhos moviam-se-lhes nas órbitas com extraordinária vivacidade; quando eram empurrados por algum transeunte vizinho, concertavam o fato e seguiam para diante sem mostrarem o mínimo sintoma de impaciência.
Outros (uma classe ainda muito numerosa), vermelhos, inquietos nos seus movimentos, falavam consigo mesmos e gesticulavam, como que sentindo-se sós pelo próprio facto da multidão inumerável que os cercava. Esses, quando alguém lhes impedia o caminho, deixavam logo de resmonear, mas redobravam de gesticulação e, com um sorriso exagerado, esperavam a passagem da pessoa que lhes servia de obstáculo. Se os empurravam, cumprimentavam profusamente os empurradores e pareciam ficar muito confusos. Nestas duas classes de homens, além das circunstâncias que acabo de notar, não havia nada de característico. O seu vestuário pertencia a esta ordem que está exatamente definida pela palavra: decente. Eram, sem dúvida nenhuma passeantes, procuradores, negociantes, fornecedores, agiotas, enfim, o ordinário banal da sociedade; homens ociosos e homens ativamente ocupados de negócios pessoais, conduzindo-os sob a sua própria responsabilidade. Esta gente não me mereceu grande atenção.
A raça dos caixeiros saltava aos olhos. Aí distingui duas divisões notáveis. Havia os caixeiros das lojas de modas, mancebos esterlicados dentro dos seus fraques, com botas brilhantes, cabelo perfumado e ar petulante. Pondo de parte um certo não sei quê de rococó nas maneiras, que cheirava a metro e a paninho a léguas de distancia, o género destes indivíduos pareceu-me o exato fac-símile do que fora a perfeição do bom tom doze ou dezoito meses atrás. Quero dizer que apresentavam o rebotalho das graças da gentry e isto compreende, a meu ver, a melhor definição desta classe.
Quanto aos primeiros caixeiros das casas sólidas, ou steady old fellows, era impossível confundi-los. Conheciam-se pelos seus fatos pretos ou escuros, de uma aparência confortável, pelas suas gravatas e coletes brancos; pelos sapatos largos e sólidos com meias grossas ou polainas. Tinham todos a cabeça um pouco calva e a orelha direita singularmente derrubada pelo hábito de trazer a pena. Observei que tiravam e tornavam a pôr o chapéu com as duas mãos e que traziam os relógios presos por cadeias de ouro, de um feitio sólido e antigo. A sua afetação era a respeitabilidade (não pode haver afetação mais honrosa).
Havia também um bom número de indivíduos de aparência brilhante que reconheci logo por pertencerem à raça dos gatunos de alta esfera, de que todas as cidades grandes estão infestadas. Estudei curiosamente esta espécie de gentry e pareceu-me incrível como chegam a passar por verdadeiros gentlemen, mesmo entre os próprios gentlemen. A exageração dos punhos e o seu ar de franqueza excessiva deviam traí-los à primeira vista.
Os jogadores de profissão (e descobri uma boa quantidade deles) reconheciam-se ainda melhor. As suas toilettes eram variadíssimas, desde a do perfeito proxeneta trapaceiro, de colete de veludo, gravata vistosa, corrente de chumbo dourado e botões de filigrana, até à toilette clerical escrupulosamente simples, incapaz de levantar a mínima suspeita. Todos porém se distinguiam por uma cor baça e doentia, por não sei que obscuridade vaporosa do olhar, pela compressão e palidez dos lábios. Havia, ainda, outros dois sinais que me permitiam logo detectá-los: um tom baixo e reservado na conversação e uma disposição mais do que ordinária para estender o dedo polegar até formar um ângulo reto com os outros dedos.
Muitas vezes, em companhia destes marotos, vinham outros um pouco diferentes. Contudo via-se que eram aves da mesma pena. Podemos defini-los assim: gentlemen que vivem do seu espírito. Esta raça divide-se em dois batalhões para explorar o público: gênero dandy e gênero militar. Na primeira classe, as caraterísticas principais são longos cabelos e sorrisos; na segunda, longos casacos e franzimentos de sobrolho.
Descendo a escala do que se chama gentility, achei assuntos de meditação mais negros e mais profundos. Vi bufarinheiros judeus com os olhos de falcão brilhantes, em fisionomias cujo resto não era senão abjeta humildade. Mendigos de profissão empurrando pobres de melhor espécie a quem só o desespero lançara nas sombras da noite para implorar a caridade.
Inválidos fraquíssimos, semelhantes a espectros, sobre os quais a morte havia já pousado mão segura, que coxeavam ou vacilavam através da multidão, erguendo para todos olhos suplicantes como que em busca de alguma consolação fortuita, de alguma esperança perdida! Raparigas honestas regressando de um labor prolongado a um lar sombrio e tremendo, mais tristes que indignadas, diante das olhadelas dos atrevidos, cujo contato direto não podiam mesmo evitar. Prostitutas de todas as espécies e de todas as idades; a beleza incontestável no primor da sua feminidade, fazendo lembrar a estátua de Luciano, cuja superfície era mármore de Paros e o interior cheio de imundícies; a leprosa em andrajos, repelente e absolutamente decaída; a bruxa velha, rugosa, pintada, estucada, carregada de bijutarias, fazendo uma última tentativa para a mocidade; a criança pura, apenas formada, mas já experiente, por uma longa camaradagem, nas monstruosas provocações do seu comércio e ardendo em desejos de ser classificada ao nível das suas primogénitas no vício. Bêbados inumeráveis e indiscritíveis. Estes esfarrapados, cambaleantes, desarticulados, com o rosto pisado e os olhos turvos; aqueles com os fatos inteiros ainda, porém sujos, uma arrogância irresoluta no olhar, lábios grossos e sensuais, rostos rubicundos e sinceros; outros, vestidos de pano, que noutro tempo havia sido bom e ainda agora escrupulosamente escovados; alguns caminhando com passo firme e mais largo que o natural, mas cujas fisionomias eram terrivelmente pálidas, os olhos atrozmente espantados e vermelhos e que, no seu andar extravagante através da multidão, agarravam com os dedos trémulos todos os objetos que se achavam ao seu alcance. Depois vinham os pasteleiros, os moços de recados, os carvoeiros, os limpa-chaminés, com os tocadores de órgão, os saltimbancos, os trovadores ambulantes. Por fim os artistas maltrapilhos e os operários de todas as espécies, esgotados pelo trabalho. E toda aquela turba ia com uma atividade ruidosa e desordenada cujas discordâncias mortificavam o ouvido e produziam nos olhos uma sensação dolorosa.
À medida que a noite se profundava, profundava-se também o meu interesse pela cena; porque não só se ia alterando o caráter geral da multidão (as suas feições mais nobres desvanecendo-se com a retirada gradual da melhor parte da povoação e realçando-se as mais grosseiras à medida que o adiantamento da hora tirava da toca novas espécies de infâmia), mas os raios dos bicos de gás, fracos primeiro, enquanto lutavam com o crepúsculo da tarde, tinham agora vencido e derramavam sobre todos os objetos uma luz brilhante e agitada. Tudo era negro, mas resplandecente, como aquele ébano com o qual comparavam o estilo de Tertuliano.
Os estranhos efeitos da luz obrigaram-me a reparar nas fisionomias dos indivíduos, e bem que a rapidez com que aquela multidão fugia diante da janela não me permitisse lançar sobre cada rosto senão uma vista de olhos, parecia-me, contudo, que graças à minha singular disposição moral podia ler, muitas vezes, no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.
Com a fronte encostada aos vidros, ocupava-me assim a examinar a multidão quando descobri, de repente, uma fisionomia (a de um velho decrépito de sessenta e cinco a setenta anos), uma fisionomia que me atraiu e absorveu logo a atenção pela sua absoluta idiossincrasia. Nunca vira na minha vida expressão semelhante àquela. Lembro-me que o meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi que Retzch, se o houvesse contemplado, tê-lo-ia preferido grandemente às figuras que lhe serviram de modelo para pintar o seu demónio.
Como eu procurava, durante o curto instante de um primeiro olhar, fazer uma análise qualquer do sentimento geral que aquela criatura estranha me comunicara, senti elevar-se-me confusa e paradoxalmente no espírito as ideias da vasta inteligência, da circunspeção, da cupidez, da avareza sórdida, do sangue frio, da perversidade, da sede sanguinária, do triunfo, da alegria, do excessivo terror, do desespero intenso e supremo. Senti-me singularmente estimulado, absorto, fascinado. Quão extraordinária deve ser — digo eu comigo mesmo — a história escrita naquele peito! Veio-me então um desejo ardente de não perder o homem de vista, sem saber alguma coisa a seu respeito.
Enfiei precipitadamente o meu paletot, peguei no chapéu e na bengala, e marchei para a rua, metendo-me pelo meio da multidão, na direção que lhe tinha visto tomar, porque a singular criatura havia já desaparecido. Descobri-o por fim, não sem alguma dificuldade. Aproximei-me e segui-o de muito perto, com grandes precauções, de forma a que ele não desse por mim.
Título original: The Man of the Crowd
Publicado em 1840
Houve quem dissesse muito judiciosamente de certo livro alemão: Es Ioesst sich nicht lesen (não se deixa ler). Do mesmo modo há segredos que não se deixam revelar.
Quantos homens morrem nos seus leitos torcendo convulsivamente as mãos dos espectros que os confessam e cravando neles olhos lastimáveis! Quantos morrem com o desespero na alma, convulsionados pelo horror dos mistérios que não querem ser revelados! Algumas vezes, ai!, a consciência humana geme sob o peso de um horror tão fundo que só o tumulo pode aliviá-la desse fardo. Assim a essência do crime não pode jamais ser explicada.
Ainda não há muito tempo, ao cair de uma tarde de outono, estava eu sentado à janela do hotel D... em Londres. Convalescia então de uma doença de alguns meses e, à medida que ia recuperando as forças, sentia-me numa destas disposições felizes que são precisamente o contrário do aborrecimento; disposições em que a apetência moral está vivamente estimulada pelo desaparecimento das cataratas que cobriam a visão espiritual; em que o espírito eletrizado ultrapassa tão prodigiosamente as suas faculdades ordinárias que a ingênua e sedutora divisa de Leibnitz vence a retórica louca e fraca de Górgias. A simples ação de respirar era um gozo para mim; e mesmo de coisas muito plausíveis para desgosto a minha sensibilidade tirava um prazer positivo. Tudo me inspirava interesse e curiosidade. Durante a maior parte da tarde, com um cigarro na boca e um jornal em cima dos joelhos, diverti-me ora a ver os anúncios, ora a observar a sociedade mista do salão, ora a olhar para a rua através dos vidros embaciados pelo fumo.
A rua do hotel D..., uma das principais artérias da cidade, estivera todo o dia cheia de gente. Com o cair da noite, a multidão aumentara ainda, de sorte que, ao acender dos revérberos, duas correntes de povo, espessas e contínuas, desfilavam por defronte da porta. Aquele oceano tumultuoso de cabeças humanas penetrava-me de uma emoção deliciosa e perfeitamente nova. Nunca me sentira numa situação semelhante àquela em que me achava nesse momento particular da noite. Por fim, deixei de prestar atenção alguma ao que se passava no hotel, absorto na contemplação da cena interior.
As minhas primeiras observações foram abstratas e gerais, olhando os transeuntes em massa e não os considerando senão na sua harmonia coletiva. Depois desci ao detalhe e examinei, com um interesse minucioso, as inumeráveis variedades de figuras, de toilettes, de aspetos, de andamentos, de rostos e de expressões fisionómicas.
A maior parte dos que passavam tinham o ar decidido de quem vai em serviço e pareciam não pensar senão em abrir caminho através da multidão. O seu aspecto era carrancudo e os olhos moviam-se-lhes nas órbitas com extraordinária vivacidade; quando eram empurrados por algum transeunte vizinho, concertavam o fato e seguiam para diante sem mostrarem o mínimo sintoma de impaciência.
Outros (uma classe ainda muito numerosa), vermelhos, inquietos nos seus movimentos, falavam consigo mesmos e gesticulavam, como que sentindo-se sós pelo próprio facto da multidão inumerável que os cercava. Esses, quando alguém lhes impedia o caminho, deixavam logo de resmonear, mas redobravam de gesticulação e, com um sorriso exagerado, esperavam a passagem da pessoa que lhes servia de obstáculo. Se os empurravam, cumprimentavam profusamente os empurradores e pareciam ficar muito confusos. Nestas duas classes de homens, além das circunstâncias que acabo de notar, não havia nada de característico. O seu vestuário pertencia a esta ordem que está exatamente definida pela palavra: decente. Eram, sem dúvida nenhuma passeantes, procuradores, negociantes, fornecedores, agiotas, enfim, o ordinário banal da sociedade; homens ociosos e homens ativamente ocupados de negócios pessoais, conduzindo-os sob a sua própria responsabilidade. Esta gente não me mereceu grande atenção.
A raça dos caixeiros saltava aos olhos. Aí distingui duas divisões notáveis. Havia os caixeiros das lojas de modas, mancebos esterlicados dentro dos seus fraques, com botas brilhantes, cabelo perfumado e ar petulante. Pondo de parte um certo não sei quê de rococó nas maneiras, que cheirava a metro e a paninho a léguas de distancia, o género destes indivíduos pareceu-me o exato fac-símile do que fora a perfeição do bom tom doze ou dezoito meses atrás. Quero dizer que apresentavam o rebotalho das graças da gentry e isto compreende, a meu ver, a melhor definição desta classe.
Quanto aos primeiros caixeiros das casas sólidas, ou steady old fellows, era impossível confundi-los. Conheciam-se pelos seus fatos pretos ou escuros, de uma aparência confortável, pelas suas gravatas e coletes brancos; pelos sapatos largos e sólidos com meias grossas ou polainas. Tinham todos a cabeça um pouco calva e a orelha direita singularmente derrubada pelo hábito de trazer a pena. Observei que tiravam e tornavam a pôr o chapéu com as duas mãos e que traziam os relógios presos por cadeias de ouro, de um feitio sólido e antigo. A sua afetação era a respeitabilidade (não pode haver afetação mais honrosa).
Havia também um bom número de indivíduos de aparência brilhante que reconheci logo por pertencerem à raça dos gatunos de alta esfera, de que todas as cidades grandes estão infestadas. Estudei curiosamente esta espécie de gentry e pareceu-me incrível como chegam a passar por verdadeiros gentlemen, mesmo entre os próprios gentlemen. A exageração dos punhos e o seu ar de franqueza excessiva deviam traí-los à primeira vista.
Os jogadores de profissão (e descobri uma boa quantidade deles) reconheciam-se ainda melhor. As suas toilettes eram variadíssimas, desde a do perfeito proxeneta trapaceiro, de colete de veludo, gravata vistosa, corrente de chumbo dourado e botões de filigrana, até à toilette clerical escrupulosamente simples, incapaz de levantar a mínima suspeita. Todos porém se distinguiam por uma cor baça e doentia, por não sei que obscuridade vaporosa do olhar, pela compressão e palidez dos lábios. Havia, ainda, outros dois sinais que me permitiam logo detectá-los: um tom baixo e reservado na conversação e uma disposição mais do que ordinária para estender o dedo polegar até formar um ângulo reto com os outros dedos.
Muitas vezes, em companhia destes marotos, vinham outros um pouco diferentes. Contudo via-se que eram aves da mesma pena. Podemos defini-los assim: gentlemen que vivem do seu espírito. Esta raça divide-se em dois batalhões para explorar o público: gênero dandy e gênero militar. Na primeira classe, as caraterísticas principais são longos cabelos e sorrisos; na segunda, longos casacos e franzimentos de sobrolho.
Descendo a escala do que se chama gentility, achei assuntos de meditação mais negros e mais profundos. Vi bufarinheiros judeus com os olhos de falcão brilhantes, em fisionomias cujo resto não era senão abjeta humildade. Mendigos de profissão empurrando pobres de melhor espécie a quem só o desespero lançara nas sombras da noite para implorar a caridade.
Inválidos fraquíssimos, semelhantes a espectros, sobre os quais a morte havia já pousado mão segura, que coxeavam ou vacilavam através da multidão, erguendo para todos olhos suplicantes como que em busca de alguma consolação fortuita, de alguma esperança perdida! Raparigas honestas regressando de um labor prolongado a um lar sombrio e tremendo, mais tristes que indignadas, diante das olhadelas dos atrevidos, cujo contato direto não podiam mesmo evitar. Prostitutas de todas as espécies e de todas as idades; a beleza incontestável no primor da sua feminidade, fazendo lembrar a estátua de Luciano, cuja superfície era mármore de Paros e o interior cheio de imundícies; a leprosa em andrajos, repelente e absolutamente decaída; a bruxa velha, rugosa, pintada, estucada, carregada de bijutarias, fazendo uma última tentativa para a mocidade; a criança pura, apenas formada, mas já experiente, por uma longa camaradagem, nas monstruosas provocações do seu comércio e ardendo em desejos de ser classificada ao nível das suas primogénitas no vício. Bêbados inumeráveis e indiscritíveis. Estes esfarrapados, cambaleantes, desarticulados, com o rosto pisado e os olhos turvos; aqueles com os fatos inteiros ainda, porém sujos, uma arrogância irresoluta no olhar, lábios grossos e sensuais, rostos rubicundos e sinceros; outros, vestidos de pano, que noutro tempo havia sido bom e ainda agora escrupulosamente escovados; alguns caminhando com passo firme e mais largo que o natural, mas cujas fisionomias eram terrivelmente pálidas, os olhos atrozmente espantados e vermelhos e que, no seu andar extravagante através da multidão, agarravam com os dedos trémulos todos os objetos que se achavam ao seu alcance. Depois vinham os pasteleiros, os moços de recados, os carvoeiros, os limpa-chaminés, com os tocadores de órgão, os saltimbancos, os trovadores ambulantes. Por fim os artistas maltrapilhos e os operários de todas as espécies, esgotados pelo trabalho. E toda aquela turba ia com uma atividade ruidosa e desordenada cujas discordâncias mortificavam o ouvido e produziam nos olhos uma sensação dolorosa.
À medida que a noite se profundava, profundava-se também o meu interesse pela cena; porque não só se ia alterando o caráter geral da multidão (as suas feições mais nobres desvanecendo-se com a retirada gradual da melhor parte da povoação e realçando-se as mais grosseiras à medida que o adiantamento da hora tirava da toca novas espécies de infâmia), mas os raios dos bicos de gás, fracos primeiro, enquanto lutavam com o crepúsculo da tarde, tinham agora vencido e derramavam sobre todos os objetos uma luz brilhante e agitada. Tudo era negro, mas resplandecente, como aquele ébano com o qual comparavam o estilo de Tertuliano.
Os estranhos efeitos da luz obrigaram-me a reparar nas fisionomias dos indivíduos, e bem que a rapidez com que aquela multidão fugia diante da janela não me permitisse lançar sobre cada rosto senão uma vista de olhos, parecia-me, contudo, que graças à minha singular disposição moral podia ler, muitas vezes, no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.
Com a fronte encostada aos vidros, ocupava-me assim a examinar a multidão quando descobri, de repente, uma fisionomia (a de um velho decrépito de sessenta e cinco a setenta anos), uma fisionomia que me atraiu e absorveu logo a atenção pela sua absoluta idiossincrasia. Nunca vira na minha vida expressão semelhante àquela. Lembro-me que o meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi que Retzch, se o houvesse contemplado, tê-lo-ia preferido grandemente às figuras que lhe serviram de modelo para pintar o seu demónio.
Como eu procurava, durante o curto instante de um primeiro olhar, fazer uma análise qualquer do sentimento geral que aquela criatura estranha me comunicara, senti elevar-se-me confusa e paradoxalmente no espírito as ideias da vasta inteligência, da circunspeção, da cupidez, da avareza sórdida, do sangue frio, da perversidade, da sede sanguinária, do triunfo, da alegria, do excessivo terror, do desespero intenso e supremo. Senti-me singularmente estimulado, absorto, fascinado. Quão extraordinária deve ser — digo eu comigo mesmo — a história escrita naquele peito! Veio-me então um desejo ardente de não perder o homem de vista, sem saber alguma coisa a seu respeito.
Enfiei precipitadamente o meu paletot, peguei no chapéu e na bengala, e marchei para a rua, metendo-me pelo meio da multidão, na direção que lhe tinha visto tomar, porque a singular criatura havia já desaparecido. Descobri-o por fim, não sem alguma dificuldade. Aproximei-me e segui-o de muito perto, com grandes precauções, de forma a que ele não desse por mim.
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.
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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.
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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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