sábado, 8 de novembro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Mynheer Peeperkorn - Continuação (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn

(continuação)
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     Não havia traços dessa mesma aversão na conduta que os dois dialéticos adotavam ante Pieter Peeperkorn? Hans Castorp cria observá-la, talvez porque previra maliciosamente que tal aconteceria. Desejara bastante reunir o majestoso tartamudo com os seus dois “ministros”, como às vezes os chamava chistosamente no íntimo. Achara interessante ver o que resultaria desse encontro. Ao ar livre, Mynheer era menos grandioso do que num recinto fechado. O chapéu de feltro macio que ele costumava repuxar sobre os olhos, e que encobria as labaredas brancas dos cabelos e os imponentes arabescos da fronte, reduzia-lhe as feições, fazendo com que se encolhessem em certo sentido, e rebaixava a própria majestade do nariz vermelho. Além disso, Peeperkorn impressionava menos quando caminhava do que quando permanecia imóvel. Dava passos muito curtos, e a cada um deles inclinava obliquamente todo o seu corpo pesado e mesmo a cabeça, lançando a carga inteira sobre o pé que avançava no respectivo momento, o que fazia pensar antes num velho bonachão do que num rei. Em vez de empertigar-se ao andar, como costumava fazer quando se detinha, assumia postura um tanto encurvada. Mesmo assim, ultrapassava por mais de um palmo o Sr. Lodovico, sem falar do pequeno Naphta, e esse não era o único motivo por que a sua presença pesava muito, e da mesma forma como o pressentira Hans Castorp, sobre a existência dos dois políticos.
     Do confronto resultava uma pressão, uma diminuição, um prejuízo, e tudo isso era perceptível não somente para um observador sagaz, mas também para as próprias personagens comparadas, os baixotes eloqüentes tanto como o magnífico tartamudo. Peeperkorn tratava Naphta e Settembrini com extraordinária cortesia e com extrema atenção; devotava-lhes um respeito que Hans Castorp qualificaria de irônico, não o impedisse a plena compreensão da incompatibilidade desse adjetivo com o conceito da grande envergadura. Os reis não conhecem a ironia, nem sequer como meio correto, clássico, de retórica, e ainda menos num sentido mais complexo. Aquilo que, escondido sob uma camada de seriedade um tanto exagerada, ou também de forma patente, caracterizava a atitude do holandês em face dos amigos de Hans Castorp era antes uma zombaria delicada e grandiosa ao mesmo tempo. – Pois é! Pois é! – dizia então, enquanto os ameaçava com o dedo e inclinava a cabeça com os lábios gretados abertos num sorriso jovial. – Isto é... Isto são... Senhoras e senhores, eu chamo a sua atenção... Cerebrum, cerebral! Compreendem? Não, não, ótimo! Esquisito! Isto é... Já se vê... – E eles vingavam-se trocando olhares que, depois de se terem encontrado, se elevavam ao céu, numa expressão de desespero. A seguir procuravam os olhos de Hans Castorp, mas este se esquivava.
     Acontecia, então, o Sr. Settembrini pedir diretamente explicações do seu discípulo, manifestando assim a sua inquietação pedagógica. 

– Mas, por amor de Deus, engenheiro! Esse homem é um velho estúpido! Que é que o senhor acha nele? De que forma lhe pode ser útil? Simplesmente não posso entender. Tudo seria claro, embora não digno de elogios, se o senhor se resignasse com a existência dele e procurasse na sua companhia apenas a da sua atual amante. Mas é impossível não perceber que o senhor quase dedica mais atenção a ele do que a ela. Ajude-me a compreender, peço-lhe! 
– Perfeitamente – respondeu Hans Castorp, rindo. – Ótimo! Isto é... Permita-me... Muito bem. – E fez uma tentativa de arremedar os gestos esmerados de Peeperkorn. – Sim, senhor – continuou, ainda rindo. – Isso lhe parece estúpido, Sr. Settembrini, e indiscutivelmente não é claro, coisa que, a seus olhos, deve ser pior do que estúpido. Ora, a estupidez... Há tantos tipos de estupidez, e a argúcia não é o melhor dentre eles... Upa! Tenho a impressão de que acabo de formular um bon mot. Que acha disso? 
– Excelente. Aguardo ansiosamente a publicação do seu primeiro livro de aforismos. Talvez ainda não seja tarde para rogar-lhe que, ao escrevê-lo, leve em consideração certas ideias que ventilamos certa vez, com referência ao perigo que o paradoxo encerra para o homem. 
– Não deixarei de seguir o seu conselho, Sr. Settembrini. É o que farei, sem falta. Quando me ocorreu aquele mot, eu absolutamente não andava caçando paradoxos. Desejava apenas assinalar as enormes dificuldades que cria – sim, trata-se mesmo de criar – a definição de estupidez e de argúcia. É tão difícil distingui-las, porque uma se confunde com a outra... Sei perfeitamente que o senhor detesta o guazzabuglio místico e opina pelo valor, pelo juízo, pela apreciação dos valores. Quanto a isso, concordo inteiramente. Mas, quanto à “estupidez” e à “argúcia”, isto constitui às vezes um completo mistério, e deve ser lícito a gente se ocupar de mistérios, contanto que haja o sincero esforço de desvendá-los, se possível. Quero perguntar-lhe uma coisa. Pergunto: pode o senhor negar que ele nos mete a todos no chinelo? Sirvo-me de uma locução meio vulgar; mas, como vejo, o senhor não pode negá-lo. Ele nos mete no chinelo, e por esta ou aquela razão tem o direito de nos ridicularizar. De onde? Por quê? Em que sentido? Claro que esse direito não lhe veio em virtude da sua argúcia. Admito que no caso dele mal se pode falar de argúcia. Pelo contrário, o seu forte é o inarticulado e o sentimento. O sentimento é mesmo o seu cavalo de batalha; perdoe-me essa expressão da linguagem popular. Eu repito: não é devido à argúcia que nos mete no chinelo, quer dizer, não o faz pelas suas qualidades intelectuais. O senhor protestaria, se eu afirmasse o contrário, e de fato isso não entra em questão. Não é tampouco por causa das suas qualidades físicas. Por causa das suas espáduas de capitão, por respeito à força brutal dos seus braços, e porque ele seria capaz de derrubar qualquer um de nós com um só murro. Mas nem pensa em fazer isso, e se alguma vez pensasse, bastariam algumas palavras civilizadas para acalmá-lo... Não é, portanto, por causa das suas qualidades físicas. E, todavia, não há dúvida de que fatores físicos desempenham um certo papel no seu caso; não no sentido da força dos braços, senão num outro, místico. Cada vez que o corpo desempenha um papel, entra-se no terreno do místico. O elemento corporal confunde-se então com o espiritual, e vice-versa, de maneira que é impossível distingui-los. Mas nota-se o efeito, o dinamismo, e já nos achamos metidos no chinelo. Para explicar esse fato, dispomos de uma única palavra: personalidade. Empregamo-la também num sentido mais racional, para dizer que se tem personalidade jurídica ou moral ou não sei que personalidades mais. No entanto, não é a isso que me refiro, mas a um mistério que ultrapassa os limites da estupidez e da argúcia. Acho que as pessoas devem ter o direito de se ocupar com esse mistério, ora para desvendá-lo, se possível, ora, se isso for impossível, para edificar-se com ele. E – uma vez que o senhor é a favor dos valores – a personalidade não deixa de ser, afinal de contas, um valor positivo, segundo me parece. Mais positivo do que a estupidez e a argúcia. Positivo no mais alto grau, absolutamente positivo, tal qual a vida. Numa palavra, um valor vital, feito para ocupar-nos intensamente com ele. Foi isso o que achei indicado ponderar, como resposta àquilo que o senhor disse acerca da estupidez.

     Nos últimos tempos, Hans Castorp já não se atrapalhava nem perdia, o fio ao fazer explanações desse gênero. Deixara de estacar no meio do discurso. Chegava até o fim da sua réplica, baixava a voz, punha um ponto final e seguia o seu caminho como um homem, se bem que ainda se ruborizasse ao falar e tivesse, no fundo do coração, um pouco de medo do silêncio crítico que se seguiria quando emudecesse, a fim de lhe dar o tempo necessário para se envergonhar. Com efeito, Settembrini interpôs esse silêncio, antes de dizer: 

– O senhor nega que anda à caça de paradoxos. Sabe muito bem, no entanto, que eu também não gosto de vê-lo caçando mistérios. Ao fazer da personalidade um enigma, corre perigo de entregar-se à idolatria. O senhor venera uma máscara. Está vendo mística onde se trata de mistificação, de um daqueles enganosos receptáculos vazios, por meio dos quais o demônio do elemento corporal-fisionômico gosta de iludir-nos. O senhor nunca frequentou o ambiente de atores? Não conhece esses rostos de histriões, onde se combinam os traços de Júlio César, de Goethe e de Beethoven, e cujos portadores felizes se revelam como os mais lamentáveis cretinos, desde que abrem a boca? 
– Ora, um jogo da natureza – disse Hans Castorp. – Mas não é apenas isso, não se limita a uma ilusão. Visto esses homens serem atores, devem ter talento, e o próprio talento vai além da estupidez e da argúcia; constitui, ele mesmo, um valor vital. Também Mynheer Peeperkorn tem talento, por mais que o senhor proteste, e com ele nos mete no chinelo. Coloque o Sr. Naphta num canto da sala e deixe-o fazer uma conferência sobre Gregório Magno e a Cidade de Deus, que seja muito digna de nota; mas no outro canto encontra-se Peeperkorn com sua boca estranha, alçando as rugas da testa e dizendo apenas: “Perfeitamente! Permita-me... Basta!” O senhor vai ver que as pessoas se reunirão em torno de Peeperkorn, todas elas, e que Naphta ficará sozinho com sua argúcia e sua Cidade de Deus, ainda que se expresse com tanta clareza que nos penetre até a medula, para empregar uma locução de Behrens. 
– Não tem vergonha de adorar o êxito? – indagou o Sr. Settembrini. – Mundus vult decipi. Não faço questão que as pessoas se aglomerem ao redor do Sr. Naphta. Ele é um desgraçado espírito de contradição. Mas sinto-me tentado a tomar o partido dele, à vista da cena imaginária que o senhor acaba de descrever com uma aprovação absolutamente censurável. Desdenhe, se quiser, a forma distinta, precisa, lógica, a palavra humana e coerente! Desdenhe-as e prefira qualquer embrulhada de alusões e de charlatanice sentimental, e logo se achará nas mãos do Diabo. 
– Mas lhe asseguro que ele pode falar de modo bem coerente, quando se anima – disse Hans Castorp. – Certa vez me falou do dinamismo das drogas e de árvores venenosas da Ásia; contou fatos tão interessantes que quase me causou uma impressão sinistra. O interessante sempre é um pouco sinistro. E tudo aquilo era menos interessante em si, do que em relação com o efeito produzido pela sua personalidade, que tornava as palavras ao mesmo tempo sinistras e interessantes... 
– Naturalmente. Já é conhecido o seu fraco pelas coisas asiáticas. É verdade que eu não lhe posso oferecer esse tipo de maravilhas – retrucou o Sr. Settembrini com tanta amargura que Hans Castorp se apressou a declarar que as vantagens da sua palestra e dos seus ensinamentos eram de ordem totalmente diferente, e que ninguém tinha a ideia de fazer comparações injustas para ambas as partes. Mas o italiano rejeitou e fez como se não ouvisse esses cumprimentos. 
– Em todo caso – continuou –, deve o senhor permitir que eu admire a sua objetividade e a calma do seu espírito. Elas tocam as raias do grotesco, como o senhor deve admitir. Afinal de contas, esse bravateiro lhe surrupiou a sua Beatriz. Chamo as coisas pelos nomes. E o senhor? Isso não tem precedentes... 
– Há diferenças de temperamento, Sr. Settembrini. Diferenças quanto ao calor do sangue e ao cavalheirismo da raça. O senhor, como filho do sul, naturalmente recorreria ao veneno ou ao punhal, ou talvez desse ao caso um aspecto passional e convencional. Numa palavra, tudo acabaria numa rinha de galos. Isso seria, sem dúvida, muito viril, viril no sentido convencional, e muito galante. Mas comigo a coisa é diferente. Eu absolutamente não sou viril a ponto de ver num outro homem apenas o macho rival. Pode ser que eu não seja viril sob nenhum aspecto, mas tenho certeza de não o ser daquele modo que eu, sem querer, chamei de “convencional”, não sei por quê. No meu coração pachorrento pergunto-me a mim mesmo se existe alguma coisa de que eu possa censurar Peeperkorn. Será que ele me fez algum mal intencionalmente? Ofensas devem ser feitas de propósito, do contrário não são ofensas. E no que toca ao “fazer mal”, seria preciso que eu me ativesse a ela, e a isso não tenho direito. Não tenho direito em geral, e em especial não o tenho com relação a Peeperkorn. Pois, em primeiro lugar, é uma personalidade, o que de per si já é uma coisa que atrai as mulheres; e em segundo não é civil, como eu, e sim uma espécie de militar, como o pobre do meu primo; quer dizer, ele tem um point d’honneur, uma mania, que se refere ao sentimento, à vida... Estou dizendo tolices, mas prefiro desvairar um pouquinho e exprimir, mais ou menos claramente, uma ideia complicada, do que limitar-me a proferir lugares comuns perfeitamente formulados. Quem sabe se isso não é uma espécie de traço militar do meu caráter, se assim se pode dizer... 
– Diga-o – tornou Settembrini, sacudindo a cabeça em sinal de aprovação. – Isso é, inegavelmente, um traço digno de louvor. A coragem do conhecimento e da expressão, eis o que é a literatura, o espírito humano...

     Nessas ocasiões, eles costumavam separar-se em bons termos. O Sr. Settembrini dava um fim conciliador a conversas desse gênero, e tinha excelentes razões para proceder assim. A sua própria posição absolutamente não era tão inatacável que houvesse sido prudente levar muito longe o rigorismo. Uma palestra que tivesse por assunto o ciúme constituía para ele terreno um tanto escorregadio. Num determinado ponto, o humanista deveria ter respondido que, em virtude da sua veia pedagógica, sua relação com o sexo masculino também não era inteiramente convencional e semelhante àquela dos galos, e que, por isso, o imponente Peeperkorn o atrapalhava da mesma forma como Naphta e Mme. Chauchat. E finalmente não podia escapar ali o seu discípulo da influência e da superioridade natural de uma personalidade, à qual nem ele mesmo nem o seu parceiro em assuntos cerebrais eram capazes de se subtrair.
     A sua situação costumava melhorar quando se respirava uma atmosfera intelectual, quando havia discussões, quando era possível prender a atenção das pessoas que tomavam parte nos passeios a um daqueles seus debates elegantes e ao mesmo tempo apaixonados, acadêmicos e todavia conduzidos num tom que faria supor tratar-se de questões tremendamente atuais e vitais. Essas contendas eram travadas quase exclusivamente pelos dois adversários, e enquanto duravam ficava neutralizada até certo ponto a presença da “grande envergadura”, que não as podia acompanhar senão alçando as rugas da testa em sinal de pasmo, e intercalando exclamações zombeteiras, porém abruptas. E mesmo sob essas circunstâncias exercia ela a sua peculiar pressão. Lançava uma sombra sobre a palestra, que assim se via diminuída no seu brilho. Privava a da sua essência. De uma forma perceptível a todos, embora Peeperkorn não se desse conta de tudo isso, ou só o fizesse num grau dificilmente apreciável, a sua presença opunha à discussão algo que não favorecia nenhuma das duas causas, ofuscava a querela, que assim parecia desprovida de importância decisiva, e imprimia-lhe – mal nos atrevemos a dizê-lo – o cunho da futilidade. Ou, para formulá-lo de outra maneira: essa engenhosa luta de vida e morte relacionava-se secretamente, de um modo subterrâneo e indefinível, com a “grande envergadura” que caminhava lado a lado com ela, e cujo magnetismo lhe absorvia a força. É impossível precisar mais claramente esse processo misterioso, bem desagradável para os dois antagonistas. Só se pode dizer que, não existisse Pieter Peeperkorn, teria sido muito mais difícil esquivar-se à necessidade de tomar partido, quando, por exemplo, Leo Naphta defendia a natureza total e basicamente revolucionária da Igreja contra a doutrina do Sr. Settembrini, o qual via nessa potência histórica unicamente a protetora da mais sinistra estagnação e do mais obscuro conservantismo, pretendia mostrar que todas as forças vivas e futurosas, dirigidas para a revolução e a reforma, se baseavam nos princípios opostos do esclarecimento, da ciência e do progresso, princípios oriundos de uma época gloriosa de renascimento da cultura antiga, e sustentava essa opinião por meio de gestos primorosos e palavras brilhantes. A isso respondeu Naphta fria e incisivamente. Afirmou ser capaz de demonstrar – e de fato o demonstrou com evidência quase deslumbrante – que a Igreja, como encarnação da ideia religioso-ascética, estava intimamente muito longe de ser partidária e amparo daquilo que queria persistir, isto é, da formação secular e das leis do Estado; que, pelo contrário, arvorava a bandeira da revolução mais radical, da revolução completa; que, de um modo geral, tudo o que se considerava digno de ser mantido e o que os tíbios, os covardes, os conservadores, os burgueses procuravam manter – o Estado, a família, a arte e a ciência seculares –, sempre estivera em oposição consciente ou inconsciente à ideia religiosa, à Igreja, cuja tendência inata e cujo objetivo inalterável eram a dissolução de tudo quanto existia de ordem secular e a reorganização da sociedade, segundo o modelo do Estado ideal e comunista de Deus.
     Em seguida, Settembrini tomou a palavra, e soube aproveitá-la – e como soube! Tal confusão da ideia revolucionária, luciferiana, com a revolta geral de todos os maus instintos – disse ele – era deplorável. O espírito inovador da Igreja consistira durante séculos inteiros em perseguir, por meio da Inquisição, o pensamento fecundo, em estrangulá-lo, em sufocá-lo na fumaceira dos holocaustos. Recentemente, porém, mandava os seus emissários declarar que simpatizava com a revolução, e afirmava ser seu objetivo substituir a liberdade, a cultura, a democracia, pela ditadura do populacho e pela barbárie. Sim, aquilo representava realmente um caso pavoroso de consequência contraditória ou de consequente contradição...
     Naphta objetou que entre os argumentos do seu oponente não faltavam exemplos semelhantes de contradição e de incoerência. Embora o Sr. Settembrini se julgasse um democrata, revelava pouca simpatia pelo povo e pela igualdade; pelo contrário, manifestava a altivez censurável de um aristocrata, ao qualificar de populacho o proletariado universal, chamado a exercer a ditadura temporária. Mas era como autêntico democrata que evidentemente se comportava em face da Igreja, a qual, na verdade – era preciso admiti-lo com orgulho –, representava a potência mais nobre da história humana; nobre no sentido supremo e mais lato, no sentido espiritual. Pois o espírito ascético – se lhe permitiam empregar esse pleonasmo –, o espírito da negação e do aniquilamento do mundo era a nobreza por excelência, o princípio aristocrático na sua forma mais pura. Esse espírito não poderia nunca ser popular, e, com efeito, também a Igreja sempre tinha sido impopular. Bastaria que o Sr. Settembrini se ocupasse um pouquinho com a cultura da Idade Média para que deparasse com esse fato, com a antipatia rude que o povo, na acepção mais ampla da palavra, sentia pelas coisas eclesiásticas. Existiam, por exemplo, entre as invenções da imaginação dos poetas populares, certas figuras de monges que, de modo bem luterano, opunham à ideia ascética o vinho, a mulher e o canto. Todos os instintos do heroísmo mundano, todo o espírito guerreiro, bem como a poesia cortesã, tinham sido adversários mais ou menos abertos da ideia religiosa e, por conseguinte, da hierarquia. Pois tudo isso fora o “mundo” e a mentalidade do populacho, em comparação com a nobreza do espírito, representada pela Igreja.
     O Sr. Settembrini agradeceu ao seu antagonista por lhe ter refrescado a memória. A figura do monge Ilsan, no Jardim das rosas, tinha muitos traços simpáticos, em confronto com esse aristocratismo de tumba que acabava de ser apregoado. Embora ele, Settembrini, não fosse um partidário do reformador alemão ao qual se aludira, estava disposto a defender com o máximo ardor todo o individualismo democrático que formava a base da sua doutrina, contra quaisquer ambições eclesiástico-feudais de domínio sobre a personalidade. 

– Vejam só! – exclamou Naphta. Porventura se queria acusar a Igreja de falta de espírito democrático e de compreensão do valor da personalidade humana? E que diziam da tão humana ausência de preconceitos no direito canônico? Ao passo que no direito romano a capacidade jurídica dependia da posse dos direitos civis, e no germânico, da nacionalidade e da liberdade pessoal, o direito canônico exigia apenas que o indivíduo pertencesse à Igreja e tivesse a verdadeira fé, libertando-se de todas as considerações políticas e sociais e declarando capazes de testar e de herdar os próprios escravos, prisioneiros de guerra e servos.

     Settembrini observou causticamente que essa declaração talvez não houvesse sido feita, se não se tivesse secretamente em mira a porção “canônica” cobrada sobre cada herança. A seguir pôs-se a falar da “demagogia dos padrecos”. Chamou de “afabilidade”, peculiar à irrestrita ambição, a maneira como a Igreja punha em movimento o submundo, visto que os deuses, por motivos compreensíveis, nada queriam saber dele. Opinou que, evidentemente, ela ligava maior importância à quantidade das almas do que à sua qualidade, o que implicava uma grande falta de distinção espiritual.
     A Igreja desprovida de distinção de espírito? Mas como? Que o Sr. Settembrini dirigisse a sua atenção para o aristocratismo inexorável em que se baseava a ideia da hereditariedade da tara, a transmissão de uma culpa grave para os descendentes que – democraticamente falando – eram inocentes, como acontecia no caso dos filhos naturais, sobre os quais pesavam o opróbrio vitalício e a privação de quaisquer direitos. Mas o italiano rogou que não se insistisse nesse ponto, uma vez que o seu sentimento humano se revoltava contra tal procedimento. Além disso estava farto de rodeios e reconhecia claramente nos truques da apologética do adversário o infame e diabólico culto do nada que pretendia ser considerado como espírito e fazia aparecer como algo de legítimo e de sagrado a confessada falta de popularidade do princípio ascético.

continua pág 386...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn - Continuação (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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