sábado, 10 de dezembro de 2022

A Montanha Mágica - Da pia batismal e dos dois aspectos do avô

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo II


Da pia batismal e dos dois aspectos do avô


 Hans Castorp conservava apenas pálidas recordações da casa paterna. Mal chegara a conhecer o pai e a mãe. Morreram ambos no curto intervalo entre o seu quinto e sétimo ano de vida. Primeiro faleceu a mãe, de forma absolutamente inesperada, em vésperas de um parto, por causa de uma obstrução de vasos sanguíneos, consequência de uma neurite; segundo o diagnóstico do Dr. Heidekind, foi uma embolia que paralisou instantaneamente o coração: a mãe acabava de rir-se, sentada na cama, e parecia cair para trás de tanto riso, mas na realidade isso se deu porque morrera. O pai, Hans Hermann Castorp, era incapaz de compreender essas coisas; visto ter tido grande apego à esposa e não ser ele próprio de compleição muito robusta, não pôde conformar-se com o golpe. Seu espírito, desde aquele dia, tornou-se confuso e apoucado. Presa de uma espécie de torpor, cometeu uma série de erros nos negócios, de maneira que a firma  Castorp & Filho sofreu prejuízos sensíveis. Na segunda primavera depois da morte da mulher, contraiu uma pneumonia durante uma inspeção dos depósitos do porto varrido pela ventania, e como o coração fatigado não resistiu à febre alta, faleceu ao cabo de cinco dias, não obstante todos os cuidados do Dr. Heidekind. Acompanhado de numeroso cortejo de concidadãos, foi unir-se à esposa no jazigo dos Castorps, muito bem situado no cemitério de Santa Catarina, com vista para o jardim Botânico. 
 O avô paterno, o senador, sobreviveu apenas pouco tempo ao pai; morreu também de uma pneumonia, porém depois de muita luta e longo sofrimento, pois, ao contrário de seu filho, era Hans Lorenz Castorp uma personalidade que dificilmente se deixava abater, e se arraigava com grande tenacidade na vida. Durante o breve período entre aqueles outros dois falecimentos – não ultrapassou um ano e meio – morava o órfão Hans Castorp na casa do avô, mansão ao gosto do Classicismo nórdico, edificada em princípios do século passado, sobre um terreno estreito, à Rua da Esplanada. Era pintada numa cor que lembrava um céu nublado. No meio do andar térreo, cinco degraus acima do chão, achava-se o portão de entrada, flanqueado por meias colunas. Existiam ainda dois pavimentos superiores, além do primeiro cujas janelas desciam até o chão e estavam defendidas por grades de ferro fundido. 
 Ali havia apenas as salas de recepção, inclusive a de jantar, clara, decorada com estuque e cujas três janelas guarnecidas de cortinas escarlates davam para o pequeno quintal. Era nesse aposento que, durante os referidos dezoito meses, o avô e o neto almoçavam todos os dias às quatro horas, servidos pelo velho Fiete, que trazia brincos nas orelhas, botões de prata na casaca e uma gravata de cambraia igual àquela do patrão, do qual também imitava o hábito de esconder na laçada o queixo escanhoado. O avô tratava-o por “tu” e falava com ele em dialeto baixo-alemão, não para pilheriar, pois que não tinham nenhum senso de humor, mas com toda a seriedade, e porque sempre o fazia no contato com gente do povo – estivadores, carteiros, carroceiros e criados. Hans Castorp escutava-o com gosto, e com o mesmo prazer escutava as respostas que dava Fiete, igualmente em baixo-alemão, quando servia o dono da casa e se curvava para falar-lhe junto à orelha direita, com a qual o senador ouvia muito melhor do que com a outra. O ancião compreendia, fazia que sim e continuava comendo, muito ereto entre a mesa e o alto espaldar da poltrona de acaju, e quase que sem se inclinar para o prato. O neto, sentado à sua frente, contemplava em silêncio, com atenção inconsciente e profunda, os gestos precisos e bem cuidados, mediante os quais as belas mãos alvas, magras e idosas do avô, com as unhas convexas, aparadas em ponta, e com o anel sinete de pedra verde no indicador direito, arranjavam na ponta do garfo um bocado de carne, legumes e batatas, e os conduziam à boca, enquanto a cabeça, levemente, ia a seu encontro. Hans Castorp olhava então suas próprias mãos, ainda desajeitadas, e sentia que nelas se preparava a capacidade de manejar mais tarde a faca e o garfo com a mesma perfeição do avô. 
 Mais problemática era, porém, a questão de saber se um dia chegaria a acomodar o queixo numa gravata como aquela que enchia a ampla abertura do colarinho singular do avô, cujas pontas afiadas roçavam as bochechas. Ora, para isso, era preciso ter a idade dele, pois, já naqueles dias, ninguém, com exceção do avô e do velho Fiete, usava tais colarinhos e gravatas. Era uma lástima, porquanto o pequeno Hans Castorp gostava imensamente de contemplar o queixo do avô, apoiado no alto nó da gravata branca como neve; ainda quando adulto, causava-lhe prazer essa reminiscência, que encerrava algo que ele aprovava no fundo de seu coração. 
 Terminada a refeição, os guardanapos eram dobrados, enrolados e enfiados nas argolas de prata – uma tarefa da qual Hans Castorp naquela época se desincumbia com grande dificuldade, visto esses guardanapos serem tão grandes como pequenas toalhas. A seguir, o senador levantava-se da poltrona, que Fiete puxava para trás, e ia, de passo arrastado, ao “gabinete”, em busca de um charuto. Às vezes, o neto o seguia ali. 
 Esse “gabinete” devia sua origem ao fato de a sala de jantar ocupar toda a largura da casa e ter três janelas, de modo que não restara espaço suficiente para três salas de recepção, como se costuma encontrar nas casas desse tipo, senão apenas duas, uma das quais formava um ângulo  reto com a sala de jantar e tinha somente uma janela. Para evitar que essa sala ficasse excessivamente ampla, haviam feito uma subdivisão por meio de um tabique, aproximadamente na quarta parte do seu comprimento, formando-se assim o dito “gabinete”, uma peça estreita, que de uma claraboia recebia uma luz crepuscular e continha apenas poucos móveis: uma estante, na qual se achavam as caixas de charutos do senador; uma mesa de jogo cuja gaveta abrigava objetos atraentes, como naipes de uíste, fichas, tabuletas de dentes móveis para marcar pontos, uma lousa com lápis de pedra, boquilhas de papel, e outras coisas; e finalmente no canto havia um armário de vidro, estilo rococó, de madeira de mogno, atrás de cujas vidraças se achavam cortinas de seda amarela. 
 Quando o pequeno Hans Castorp estava nesse gabinete, acontecia às vezes que se punha nas pontas dos pés, para aproximar-se do ouvido do ancião e pedir: 

 – Vovô, mostre-me, por favor, a pia batismal. 

 E o avô, que já afastara para trás a aba comprida da sobrecasaca de casimira macia e tirara do bolso da calça um molho de chaves, abria então o armário, de cujo interior emanava um aroma singularmente misterioso e agradável ao menino. Ali estava guardada toda espécie de objetos pouco usados e justamente por isso fascinantes: um par de candelabros de prata, um barômetro quebrado com figuras talhadas em madeira, um álbum de daguerreotipias, um licoreiro de madeira de cedro, um pequeno turco, duro ao tato, sob a roupagem de seda, e que tinha na barriga um mecanismo engenhoso, que outrora lhe permitira caminhar sobre a mesa, mas já não funcionava havia muito tempo, um modelo de navio antigo; e bem no fundo havia até uma ratoeira. O velho, porém, retirava da prateleira do centro uma bacia redonda de prata muito oxidada, que se encontrava sobre uma bandeja igualmente de prata, e mostrava ao menino ambos esses objetos, tirando um de cima do outro e exibindo-os de todos os lados, enquanto mais uma vez lhe dava as explicações já muitas vezes prestadas. 
 A bacia e a bandeja primitivamente não formavam um jogo, como se podia ver, e como o pequeno voltava a aprender; mas haviam sido usados como tal – dizia o avô – fazia uns cem anos, isto é, desde a compra da bacia. Esta era formosa, de linhas simples e nobres, com a marca do gosto austero que reinava em princípios do século passado. Polida e maciça, repousava sobre um pé redondo e era dourada no seu interior; mas desse ouro sobrara com o tempo somente um reflexo de amarelo pálido. Como único adorno, uma coroa de rosas e folhas denteadas, lavrada em relevo, cobria a borda superior. Quanto à bandeja, podia-se ler a data que lhe conferia uma antiguidade muito maior: “1650”, em números enfeitados de arabescos, emoldurados de toda espécie de desenhos distribuídos desordenadamente, à “maneira moderna” daquela época, mistura exuberante e arbitrária de escudos e rabiscos, metade flores metade estrelas. No reverso da bandeja, porém, estavam inscritos os nomes dos chefes de família que no decorrer dos anos a tinham possuído. Já havia ali sete nomes, cada qual com o ano da transmissão do objeto, e o ancião, com a ponta do dedo ornado de anel, recitava-os um a um, ao neto. Estava ali o nome do pai, assim como o do próprio avô, o do bisavô, e depois se dobrava, triplicava, quadruplicava o prefixo na boca do narrador. O menino, com a cabeça inclinada para o lado, ouvia tudo isso, cravando na bacia um olhar pensativo, sonhador ou abstrato, e abrindo a boca infantil, numa expressão entre respeitosa e sonolenta; ouvia esses “bis, tris, tetra”, sons obscuros de tumba e de tempos soterrados, que todavia expressavam uma ligação piedosamente mantida entre o presente – a sua própria vida – e aquele mundo submerso. Esses sons exerciam sobre ele um efeito esquisito, que se refletia no seu rosto. Ao ouvi-los, tinha a impressão de respirar um ar frio, bolorento, o ar da igreja de Santa Catarina ou da cripta de São Miguel; parecia-lhe sentir o sopro daqueles lugares onde as pessoas tiram os chapéus e avançam num andar reverente, cadenciado, na ponta dos pés; julgava ouvir até mesmo o silêncio remoto, pacato, desses lugares ecoantes; sensações devotas mesclavam-se com a idéia da morte e da história, ao som dessas sílabas surdas, e tudo isso impressionava o garoto simpaticamente; quem sabe se não era para ouvi-las e repeti-las mais uma vez, que ele gostava tanto de contemplar a pia batismal?  
 Depois, o avô repunha a bacia na bandeja e mostrava ao menino a concavidade lisa, levemente dourada, que resplandecia sob a luz vinda do teto. 

 – Já faz quase oito anos – dizia – que te levantamos sobre esta bacia, e que a água com que foste batizado caiu dentro dela. O sacristão Lassen da paróquia de São Jacó verteu-a na concha da mão do bom pastor Bugenhagen, e dali escorreu ela sobre a tua cabeça até a bacia. A água tinha sido amornada, para que não te assustasses e chorasses. E de fato não choraste nem um pouquinho, embora antes gritasses de tal maneira que Bugenhagen tinha dificuldades de fazer seu sermão. Mas quando sentiste a água, ficaste quietinho, e quero acreditar que foi por respeito ao Santo Sacramento. E por estes dias vai fazer quarenta e quatro anos que teu saudoso pai recebeu o batismo, e a água que escorreu da cabeça dele caiu nesta mesma bacia. Foi aqui, nesta casa, sua casa paterna, na sala ao lado, e quem o batizou foi ainda o velho pastor Hesekiel, o mesmo a quem os franceses quase que fuzilaram, quando jovem, porque pregara contra suas rapinagens e saques; esse pastor também já faz muito que está junto de Deus. E há setenta e cinco anos batizaram a mim. Foi também nesta mesma sala, e mantiveram a minha cabeça por cima da bacia, exatamente como a vês agora colocada sobre a bandeja; e o pastor pronunciou as mesmas palavras como no teu batizado e no de teu pai, e a água morna e límpida escorreu da mesma forma dos meus cabelos (não tinha muito mais do que tenho agora), e caiu aqui, nesta bacia dourada. 

 O pequeno levantava os olhos para a fina e comprida cabeça do ancião, que voltava a inclinar-se para a bacia, como fizera naquele momento já longínquo a que se referia. E se apoderava do menino uma sensação ia muitas vezes experimentada, a impressão estranha, entre sonhadora e angustiante, de algo que desfilava sem se mover, que se mudava e contudo permanecia, algo que era reiteração tanto como vertiginosa monotonia – impressão que ele conhecia de outras ocasiões, e cuja volta esperara e desejara. Era em parte pelo prazer de senti-la mais uma vez que pedia ao avô que lhe mostrasse a relíquia da família, na sua imutável progressão. 
 Quando, mais tarde, o jovem se examinava a si mesmo, verificava que a imagem do avô se lhe gravara na memória com muito maior nitidez, intensidade e significação do que a de seus próprios pais; isso talvez se devesse a alguma simpatia ou afinidade física particular, pois o neto se parecia com o avô, tanto quanto um fedelho de faces rosadas pode ter semelhança com um septuagenário encanecido e esclerótico. Mas, antes de tudo, esse fato falava em favor do ancião, que incontestavelmente fora a figura mais característica, a personalidade pitoresca da família. No que se refere aos assuntos públicos, o tempo, já muito antes do traspasse de Hans Lorenz Castorp, passara por cima da sua maneira de ser e pensar. Fora ele um homem profundamente cristão, membro da Igreja Reformista, e de opiniões rigorosamente tradicionalistas; empenhara-se em manter de pé a restrição aristocrática da única classe social capaz de produzir os futuros governantes, e o fizera com tamanha tenacidade como se vivesse no século XIV, quando o artesanato, vencendo a encarniçada resistência do patriciado livre, conquistara o direito de voto e assento no Conselho Municipal. O velho sentia grande dificuldade em adaptar-se a inovações. Sua vida coincidia com uma época de rápido desenvolvimento e múltiplas revoluções, com decênios de progresso em marcha forçada, que haviam exigido muita audácia e grande abnegação nos negócios públicos. Mas Deus sabe que não era culpa do velho Castorp que o espírito moderno obtivesse seus conhecidos e brilhantes triunfos. Ligara ele maior importância às tradições ancestrais e às instituições antigas do que às arriscadas ampliações do porto e outros arremedos ímpios de cidades grandes; refreara e se opusera, sempre que lhe era possível, e se fosse por ele, a administração seria ainda hoje tão idílica e antiquada como o seu próprio escritório. 
 Era assim que o ancião, em tempos de vida e mesmo depois, se apresentava aos olhos de seus concidadãos, e posto que o pequeno Hans Castorp nada entendesse de assuntos públicos, os olhares silenciosos e contemplativos da criança faziam pouco mais ou menos as mesmas observações; observações mudas, despidas de crítica, porém cheias de vida, e que mais tarde,  como reminiscência consciente, conservavam o seu caráter de irrestrita aprovação, hostil a qualquer análise verbal. Como já dissemos, havia nisso um quê de simpatia, aquele laço íntimo, aquela afinidade de almas que não raras vezes salta uma geração. Os filhos e os netos olham para admirar, e admiram na intenção de aprender e aperfeiçoar, o que se acha preparado na sua massa hereditária. 
 O senador Castorp era alto e macilento. Os anos lhe haviam curvado os ombros e a nuca, mas ele fazia esforço intenso para compensar isso por uma postura muito ereta. Ao assumi-la, numa dignidade penosamente mantida, contraía-se-lhe a boca, cujos lábios já não se apoiavam em dentes, repousando sobre as gengivas vazias, uma vez que o ancião punha a dentadura postiça apenas para comer. E justamente esse esforço, aumentado talvez pelo empenho de esconder um incipiente tremor de cabeça, é que determinava aquela atitude austera e tesa, com o queixo escorado pelo nó da gravata, atitude que tanto agradava ao pequeno Hans Castorp. 
 O senador apreciava a caixinha de rapé – usava uma oblonga, de tartaruga, lavrada de ouro – e servia-se de lenços vermelhos, cujas pontas costumavam pender do bolso traseiro da sobrecasaca. Se bem que isso não deixasse de ser uma nota um tanto cômica da sua personalidade, parecia perfeitamente admissível em consideração à idade, como uma negligência que a velhice ora se pode permitir consciente e humoristicamente, ora acarreta sem que a vítima, numa ignorância respeitável, se dê conta dela. Seja como for, era esse o único sinal de fraqueza que o olhar arguto do pequeno Hans Castorp jamais observara na pessoa do avô. Mas, para o menino de sete anos tanto como para a recordação do adulto, a imagem cotidiana e familiar do ancião não constituía a genuína e verdadeira. Na sua realidade autêntica, o avô tinha aspecto diferente, muito mais belo e muito mais certo do que o de todos os dias: era assim como aparecia num retrato de tamanho natural, que antigamente estivera pendurado na sala de estar dos pais do menino, e depois emigrara com ele para a Rua da Esplanada, onde recebera o seu lugar por cima do sofá de seda vermelha, na sala de recepção. 
 O retrato mostrava Hans Lorenz Castorp vestido com os trajes oficiais de um vereador da cidade – trajes dos cidadãos austeros e até piedosos de uma era desaparecida, e que essa comunidade ao mesmo tempo conservadora e progressista levara consigo na sua marcha através das épocas, reservando-os ao uso festivo, a fim de confundir, dessa forma cerimoniosa, o passado com o presente, o presente com o passado, e de evidenciar a perpétua continuidade da sua história, como que confirmando a veneranda solidez da sua firma comercial. Sobre um chão coberto de lajes avermelhadas, diante de um fundo de pilares e arcos ogivais, o senador Castorp aparecia de pé, com o queixo inclinado e as comissuras da boca apontando para baixo, cravando nas lonjuras a mirada contemplativa dos olhos azuis, empapuçados. A veste talar, aberta na frente, exibia nas orlas um largo debrum de peles. De umas meias mangas amplas, estufadas e adornadas de galões, saíam outras mangas, mais justas, de pano liso. Punhos de renda cobriam as mãos até a metade. As pernas finas do ancião estavam revestidas de meias de seda preta, e os pés, calçados de sapatos com fivelas de prata. Rodeava-lhe o pescoço uma golilha larga como um prato, engomada e disposta em numerosas pregas, que o queixo aplanava na parte dianteira, e que se levantava de ambos os lados. Por baixo dela caía sobre o colete um folho pregueado de cambraia. Sob o braço levava o ancião o tradicional chapéu de aba larga, cuja copa terminava em ponta. 
 Era um excelente retrato, obra de um artista afamado, executada com ótimo gosto, no estilo dos mestres antigos, ao qual se prestava o tema. Trazia à lembrança de quem o contemplasse quadros espanhóis ou holandeses do fim da Idade Média. O pequeno Hans Castorp olhara-o frequentemente, não como um perito de arte, é claro, mas com certa compreensão geral e até com muita perspicácia. Embora não tivesse visto o avô em pessoa tal como o representava a tela, senão uma única vez, – e assim mesmo durante um curto instante, por ocasião da chegada de um cortejo solene ao palácio da municipalidade – não deixava de considerar, como já dissemos, a aparência do retrato como a verdadeira e genuína, e de ver no avô de todos os dias apenas a forma interina, um substituto imperfeitamente adaptado ao seu  papel. Pois, o que havia de diferente e esquisito no seu aspecto cotidiano tinha a sua origem, evidentemente, numa tal adaptação imperfeita e quiçá um tanto desajeitada; tratava-se de restos e vestígios da sua forma pura e autêntica, que não se tinham apagado por completo. Assim, estavam fora de moda o colarinho duro, pontudo, e o alto nó da gravata branca, mas era impossível aplicar o termo “fora de moda” àquela maravilhosa peça de vestuário, de que aqueles constituíam apenas alusão interina: a golilha espanhola. E o mesmo acontecia com a cartola de abas inusitadamente recurvas, que o avô usava na rua, e à qual, numa realidade superior, correspondia o feltro de aba larga, reproduzido no quadro; e ainda o mesmo se dava com a longa e ampla sobrecasaca, cujo modelo e essência era, aos olhos do pequeno Hans Castorp, a veste talar, agaloada e debruada de peles. 
 Assim o menino aprovara no seu íntimo que o avô surgisse em plena autenticidade e perfeição no dia em que chegou a hora de lhe dizer adeus para sempre. Era na sala de jantar, a mesma sala onde tantas vezes haviam feito as refeições, sentados um em frente do outro. No seu centro jazia agora Hans Lorenz Castorp, estendido no caixão enfeitado de prata, exposto numa essa rodeada de coroas. Lutara até o fim contra a pneumonia, lutara tenaz e demoradamente, se bem que antes tivesse dado a impressão de se acomodar à vida moderna apenas por meio de uma espécie de adaptação. E enquanto o ancião jazia ali, no seu leito de gala, não se sabia se era vencedor ou vencido. Em todo caso, exibia uma expressão severa e sossegada; a fisionomia, depois de todas essas lutas, aparecia mudada, e o nariz mais pontiagudo. A metade inferior do corpo estava escondida sob um cobertor, em cima do qual se achava um ramo de palmeira. A cabeça repousava erguida sobre um travesseiro de seda, de forma que o queixo se conchegava imponentemente à concavidade dianteira da golilha espanhola. Entre as mãos, meio ocultas pelos punhos de renda, e cujos dedos, embora imitando uma posição natural, não deixavam de revelar frieza e imobilidade, haviam introduzido um crucifixo de marfim, que o defunto, de sob as pálpebras abaixadas, parecia fitar incessantemente. 
 No princípio da enfermidade, Hans Castorp vira o avô algumas vezes; mas depois não tornara a vê-lo. Haviam evitado que ele assistisse ao espetáculo da luta, que na sua maior parte se desenrolara durante as horas noturnas. Só indiretamente sentira o menino as suas consequências, em virtude da atmosfera angustiada da casa, dos olhos avermelhados do velho Fiete, das idas e vindas dos médicos. O resultado final, porém, que agora presenciava na sala, resumia-se no fato de que o avô, solenemente desobrigado daquela adaptação passageira, assumira em definitivo o seu genuíno e merecido aspecto. E esse resultado parecia ao pequeno Hans Castorp digno de aprovação, ainda que o velho Fiete vertesse lágrimas, meneando sem cessar a cabeça, e que ele mesmo chorasse, como o fizera quando da repentina morte da mãe, e pouco tempo depois em presença do pai, que também estivera estendido assim, não menos silencioso e estranho. 
 Não se esqueça que era a terceira vez, num curto lapso de tempo, e numa idade tão tenra, que a morte agia sobre o espírito e os sentidos – principalmente os sentidos – do menino. Esse quadro e essa impressão já não lhe eram novos, senão bastante familiares. Nas duas ocasiões anteriores já se mostrara comedido e dono de si, sem perder o domínio dos nervos, apesar da tristeza natural que sentia. E dessa vez aparentou ainda maior tranquilidade do que das outras. Como ignorasse a significação prática que aqueles acontecimentos tinham para a sua existência, ou talvez os considerasse com certa indiferença pueril, confiante em que o mundo, deste ou daquele modo, cuidaria de seu bem-estar, manifestou em frente dos ataúdes certa frieza igualmente infantil, bem como uma atenção objetiva, à qual o terceiro enterro acrescentou um matiz especial de superioridade precoce, baseada na plenitude da experiência anteriormente adquirida, que o imunizava contra os frequentes acessos de choro e o contágio do pranto dos demais, fazendo com que tudo isso se lhe afigurasse como uma reação normal. No decorrer de três ou quatro meses, após o falecimento do pai, esquecera-se da morte; agora se recordou, e todas as impressões antigas reavivaram-se exatamente, simultâneas e intensas, na sua peculiaridade incomparável.
 Analisadas e resumidas, essas impressões seriam pouco mais ou menos as seguintes: a morte tinha dois aspectos, um piedoso, significativo, de melancólica beleza, quer dizer, um aspecto religioso, e ao mesmo tempo tinha outro, absolutamente diverso e até mesmo oposto, um aspecto muito físico, bem material, que era impossível qualificar propriamente de belo, significativo, piedoso, sequer de triste. A natureza solene e religiosa expressava-se no suntuoso ataúde do defunto, na magnificência das flores e no ramo de palmeira, que, como se sabe, simbolizavam a paz celestial; expressava-se além disso, e ainda mais nitidamente, no crucifixo entre os dedos exangues de quem outrora era o avô, bem como no Cristo abençoador, de Thorwaldsen, que se achava à cabeceira do féretro, e nos dois candelabros que se erguiam de ambos os lados e nessa ocasião haviam assumido um caráter igualmente eclesiástico. Todas essas disposições encontravam evidentemente o seu sentido preciso e próprio na ideia de que o avô se unira para sempre com sua verdadeira e genuína figura. Mas, além dessa razão de ser, existia – como o pequeno Hans Castorp bem notava, ainda que não se desse conta disso em palavras – mais uma outra, uma finalidade mais profana, a manifestar-se em tudo isso, principalmente naquela multidão de flores, e entre elas em especial nas tuberosas espalhadas por toda parte: cabia-lhes disfarçar, fazer esquecer e não admitir ao limiar da consciência o segundo aspecto da morte, que não era nem belo nem realmente triste, mas, a bem dizer, quase indecente e de um caráter baixo e carnal. 
 Era em virtude desse segundo aspecto que o avô defunto se afigurava tão estranho, que no fundo nem parecia o avô, senão um boneco de cera, de tamanho natural, que a morte pusera em seu lugar, e ao qual agora se dedicavam todas essas pompas piedosas e reverentes. Quem jazia ali, ou melhor, aquilo que ali se achava estendido, não era portanto o verdadeiro avô; não passava de um invólucro, que – Hans Castorp sabia-o muito bem – não constava de cera, mas de sua própria matéria; apenas de matéria, e precisamente nisso residia o indecente e a ausência de tristeza; aquilo era tão pouco triste como são as coisas que dizem respeito ao corpo e só a ele. O pequeno Hans Castorp contemplava essa matéria lisa, cor de cera, de uma consistência caseosa, de que estava feita aquela figura morta de tamanho natural, com o rosto e as mãos do ex-avô. Uma mosca acabava de pousar na testa imóvel e começava a mexer a probóscide. O velho Fiete espantou-a cautelosamente, evitando tocar a testa; ao fazê-lo, exibia uma fisionomia reservada e pudica, como se não devesse nem quisesse saber do ato que praticava; pudor que sem dúvida se devia ao fato de ser o avô, no atual estado, corpo e nada mais. Mas a mosca deu um vôo circular e aterrissou em seguida nos dedos do avô, perto da cruz de marfim. Enquanto isso sucedia, Hans Castorp percebeu, mais distintamente do que antes, aquela emanação leve apenas, mas de uma persistência singular, e que não lhe ficava estranha. Por vergonhoso que isso parecesse, lembrava-lhe ela um companheiro de escola, afetado de um mal desagradável e por isso evitado pelos colegas. E Hans Castorp compreendeu que o aroma das tuberosas tinha por objetivo abafar essa emanação, o que não conseguia, apesar da linda exuberância e austeridade. 
 Hans Castorp esteve diversas vezes diante do cadáver; uma vez a sós com o velho Fiete; outra, com seu tio-avô Tienappel, negociante de vinhos, e os dois tios James e Peter; depois uma terceira vez, quando um grupo de estivadores endomingados permaneceu durante alguns minutos perante o ataúde, para despedir-se do antigo chefe da casa Castorp & Filho. E chegou a hora do enterro. A sala estava cheia de gente e o pastor Bugenhagen, da igreja de São Miguel, o mesmo que batizara Hans Castorp, pronunciou, ornado de uma golilha espanhola, a oração fúnebre. No coche que seguia à frente de uma fila comprida, uma fila interminável, o pastor conversava muito amigavelmente com o pequeno. E assim terminou mais um capítulo da vida de Hans Castorp, que logo depois mudou de casa e de ambiente, pela segunda vez na sua curta existência. 



continua pág 019...

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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.


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