domingo, 30 de novembro de 2025

Moby Dick: 41 - Moby Dick (b)

Moby Dick

Herman Melville

41 -  Moby Dick

continuando...
      
     Mas, mesmo afastadas as conjeturas sobrenaturais, havia o suficiente na forma terrena e em seu caráter incontestável de monstro para abalar a imaginação com força inusitada. Pois não era tanto sua extraordinária compleição que o distinguia dos outros Cachalotes, mas – como foi dito em outro lugar – uma peculiar fronte enrugada, branca como a neve, e uma corcova alta e branca, em forma de pirâmide. Essas eram suas características proeminentes; os sinais pelos quais, mesmo em mares ilimitados e ignorados pelos mapas, ele revelava sua identidade, a distância, para os que a conheciam.
     O resto de seu corpo estava tão rajado, manchado e marmorizado com esse mesmo tom de mortalha que, afinal, ele ganhou o nome próprio de Baleia Branca; um nome, aliás, plenamente justificado por seu aspecto fulgurante, quando visto deslizando pelo mar azul escuro, ao meio-dia, deixando um rastro lácteo de espuma cremosa no qual cintilavam faíscas douradas.
      Não era sua grandeza insólita, nem sua coloração notável, nem mesmo sua mandíbula inferior deformada que tanto conferiam a ele um terror natural, mas sua perversidade inteligente e sem par que, segundo relatos, ele sempre revelava em seus ataques. Mas, acima de tudo, eram suas retiradas traiçoeiras que talvez amedrontassem mais do que qualquer outra coisa. Pois, quando nadava à frente de seus perseguidores exultantes, com todos os sinais de estar em alerta, ele muitas vezes se virava subitamente e, atacando-os, tanto lhes despedaçava os botes, como os levava em desespero de volta ao navio.
     Várias fatalidades já haviam acometido sua caça. Muito embora desastres parecidos, ainda que pouco falados em terra, não fossem de modo algum estranhos à pescaria; na maior parte dos casos, de tal forma se apresentava a premeditação infernal de ferocidade da Baleia Branca que cada mutilação ou morte causada não era de todo pensada como ataque de um agente irracional.
      Imagine, então, a que ponto de enfurecimento, exaltado e inflamado, o pensamento de seus mais desesperados caçadores foi impelido enquanto, por entre os pedaços de botes triturados e os membros de companheiros dilacerados, eles nadavam para longe dos coágulos brancos da ira demoníaca da baleia sob um sol sereno e exasperador, que continuava a lhes sorrir como se iluminasse um nascimento ou um casamento.
     Seus três botes afundando à sua volta, e os remos e os homens a girar em redemoinhos; um capitão, arrancando uma faca de cordas da proa arrebentada, arremessou-se contra a baleia, como um duelista do Arkansas contra seu adversário, tentando atingir às cegas, com uma lâmina de seis polegadas, a vida profunda da baleia. Esse capitão era Ahab. E foi então que, subitamente, passando por baixo dele com a foice de sua mandíbula inferior, Moby Dick cortou a perna de Ahab, como faria uma ceifadeira com a grama no campo. Nenhum Turco de turbante, nenhum Veneziano ou Malaio mercenário o teria atingido com tanta malícia. Havia poucos motivos para duvidar de que, desde aquele encontro quase fatal, Ahab nutrisse uma violenta sede de vingança contra a baleia, ainda mais terrível porque, em sua morbidez frenética, atribuíra a ela não apenas todos os seus infortúnios físicos, como também seus sofrimentos intelectuais e espirituais. A Baleia Branca nadava diante dele como a encarnação monomaníaca de todos os agentes malignos que alguns homens sentem corroendo-lhes o íntimo, até que lhes reste apenas viver com a metade do coração e do pulmão. Aquela perversidade inatingível que ali esteve desde o princípio; a cujo domínio mesmo os cristãos modernos atribuem a metade dos mundos; que os antigos Ofitas do Oriente reverenciavam com suas imagens demoníacas; – Ahab não desesperava e as adorava como eles; mas, transferindo em delírio tais ideias ao abominado cachalote branco, lançava-se, mesmo mutilado, contra ele. Tudo o que mais enlouquece e atormenta; tudo o que alvoroça a quietude das coisas; toda a verdade com certa malícia; tudo o que destrói o vigor e endurece o cérebro; tudo o que há de sutilmente demoníaco na vida e no pensamento; em suma, toda a maldade, para Ahab, se tornava visível, personificada e passível de ser enfrentada em Moby Dick. Amontoou sobre a corcova branca da baleia toda a cólera e a raiva sentidas por sua raça inteira, desde a queda de Adão; e então, como se seu peito fosse um morteiro, ali fez explodir a granada de seu coração ardente.
     É pouco provável que sua monomania tenha surgido no exato momento da mutilação de seu corpo. Naquele momento, atirando-se contra o monstro, faca na mão, ele apenas liberou uma hostilidade corporal, passional e repentina; e, quando recebeu o golpe que o dilacerou, provavelmente sentiu apenas a dor física da laceração, nada mais. Mas quando, depois desse choque, foi obrigado a voltar para casa e, durante longos meses, dias e semanas, Ahab e a angústia estiveram juntos, deitados numa rede, dobrando em pleno inverno aquele assustador e tormentoso cabo da Patagônia; nesse momento, seu corpo dilacerado e sua alma ferida sangraram juntos; e, assim fundidos, enlouqueceram-no. Foi só então, na viagem de volta para casa, depois do encontro, que a monomania definitiva o arrebatou, o que parece certo devido ao fato de que, de tempo em tempo ao longo do trajeto, ele se mostrou completamente ensandecido; muito embora alijado de uma perna, uma força vital ainda se escondia em seu peito Egípcio, e de tal modo intensificada em seus delírios que seus pilotos foram forçados a amarrá-lo ali mesmo, seguindo viagem enquanto ele vociferava em sua rede. Numa camisa-de-força, ele se balançava com a loucura dos vendavais. E quando passavam por latitudes mais benignas, e o navio de velas desfraldadas navegava por lugares tranquilos, e os delírios do velho pareciam ter ficado aparentemente para trás no cabo Horn, e ele saía de seu covil escuro para a luz e o ar abençoados; mesmo então, quando ele trazia o rosto composto e firme, embora pálido, e transmitia mais uma vez ordens calmas e coerentes; e seus oficiais agradeciam a Deus por aquela loucura maligna ter acabado; mesmo então, Ahab, em seu íntimo, continuava a delirar. A loucura humana é quase sempre felina e muito astuta. Quando pensamos ter acabado, pode ser que apenas tenha se transformado em algo mais sutil. A loucura de Ahab não havia cessado, apenas se condensado; como o Hudson constante, quando aquele nobre nortista corre estreito, mas insondável através das gargantas das Terras Altas. Mas, em sua monomania de correnteza estreita, nem uma gota da ampla loucura de Ahab havia se perdido; do mesmo modo, em sua ampla loucura, nem uma gota de seu grande intelecto natural havia perecido. Aquilo que outrora fora agente vivo se tornava instrumento vivo. Se um tropo tão exaltado é capaz de se sustentar, sua demência própria atacou sua sensatez geral e a venceu, e a trouxe consigo e voltou sua artilharia concentrada inteira contra o alvo de sua própria loucura; de tal modo que, longe de ter perdido a energia, Ahab tinha agora, para aquela finalidade, uma potência mil vezes mais forte do que jamais teve para um fim sensato, quando em juízo perfeito.
      Isto já é muito; ainda assim, o lado mais amplo, mais profundo e mais sombrio de Ahab permanece desconhecido. Mas é inútil vulgarizar profundidades, e toda verdade é profunda. Descendo muito além do coração desse Hotel de Cluny cravado aqui onde estamos agora – embora seja grandioso e maravilhoso, deixemo-lo; – parti, almas nobres e tristes, na direção daquelas enormes salas Romanas, as Termas; onde muito abaixo das torres fantásticas da superfície terrena do homem, sua raiz de grandeza, toda a sua essência apavorante se encontra em posição de confronto; uma antiguidade sepultada sob antiguidades, entronizada nos torsos! Num trono quebrado, os grandes deuses caçoam do rei cativo; mas, como uma Cariátide, ele fica pacientemente sentado, sustentando em sua fronte congelada os entablamentos acumulados dos séculos. Descei, almas altivas e tristes! Interrogai aquele rei orgulhoso e triste! Uma semelhança familiar! Sim, ele vos gerou, jovens realezas exiladas; e apenas por meio de vosso monarca impiedoso vos será revelado o antigo segredo de Estado.
     Ora, em seu coração, Ahab tinha alguns vislumbres, tais como: todos os meus meios são razoáveis; minha motivação e meu objetivo, loucos. No entanto, sem poder para anular, mudar ou evitar o fato; ele sabia que aos olhos da humanidade ele disfarçara durante muito tempo; e, de certo modo, ainda disfarçava. Mas sua dissimulação sujeitava-se apenas à sua perceptibilidade, não à sua determinação. Ainda assim, foi tão bem-sucedido em seu disfarce que, quando por fim sua perna de mármore pisou em terra, nenhum habitante de Nantucket pensou outra coisa, senão que ele estivesse apenas naturalmente triste, e isso, de pronto, devido ao acidente terrível que havia sofrido.
     O relato de seu indiscutível delírio no mar também foi amplamente justificado por uma causa semelhante. E, da mesma forma, as mudanças de seu humor que sempre desde então, até o dia da partida do Pequod para a presente viagem, apareciam estampadas em seu rosto. Também não é improvável que, longe de desqualificar sua aptidão para outra viagem baleeira, considerados os sinais tão sombrios, as pessoas astutas daquela ilha prudente se sentiam inclinadas a dar guarida à ideia de que, por essas mesmas razões, ele estivesse mais capacitado e preparado para uma perseguição tão repleta de fúria e selvageria quanto a sangrenta caça às baleias. Atormentado por dentro e ferido por fora, com as duras presas de uma ideia incurável nele cravadas; alguém como ele, poderiam dizer, parecia ser o homem certo para erguer sua lança e arremessar seu ferro contra a mais terrível de todas as bestas. Ou, se por qualquer razão, o considerassem fisicamente incapaz de combater, ainda assim seria muito competente para, com berros, animar e incitar os outros ao ataque. Mas, seja como for, certo é que, com o desvairado segredo de seu ódio inabalável isolado e trancado em sua alma, Ahab tinha propositadamente embarcado nessa viagem com o único e exclusivo objetivo de perseguir a Baleia Branca. Tivessem alguns de seus antigos camaradas de terra imaginado metade do que ele ocultava dentro de si, com que prontidão suas almas honradas e horrorizadas teriam arrancado o navio desse homem tão demoníaco! Eles queriam uma viagem lucrativa, com o lucro contado em dólares da Casa da Moeda. Ahab estava determinado a conseguir uma vingança audaciosa, implacável e sobrenatural.
     Assim, pois, estava esse velho homem, grisalho e sem Deus, perseguindo com maldições a baleia de Jó ao redor do mundo, comandando uma tripulação composta basicamente de mestiços renegados, náufragos e canibais – também debilitados moralmente pela incompetência da mera virtude ou honradez perdida de Starbuck, pela invulnerável jovialidade, indiferente e despreocupada de Stubb, e pela mediocridade que prevalecia em Flask. Tal tripulação, com tais oficiais, parecia ser especialmente selecionada e reunida por uma fatalidade diabólica para ajudá-lo em sua vingança monomaníaca. Por quais motivos eles reagiram tão vigorosamente à ira do velho – que feitiço diabólico tomou conta de seus espíritos, a ponto de às vezes acreditarem ser sua a raiva de Ahab; e a Baleia Branca, inimiga inatingível, tão sua quanto dele; como é possível – o que a Baleia Branca representava para eles, ou como em sua compreensão inconsciente, de algum modo obscuro e insuspeito, ela parecia ter sido o grande demônio imperceptível dos mares da vida, – para explicar isso tudo, seria necessário ir mais fundo do que Ishmael consegue. O mineiro subterrâneo que trabalha em todos nós, como pode alguém dizer para onde seu cabo conduz somente pelo ruído abafado, nunca estático, de sua picareta? Quem não sente o arrastar irresistível do braço? Que esquife rebocado por um navio de setenta e quatro canhões pode ficar parado? Quanto a mim, cedi ao abandono das circunstâncias e do lugar; e, ainda que estivesse apressado para enfrentar a baleia, não podia ver naquela criatura coisa alguma além da maldade mais fatal.

Continua na página 183...
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Moby Dick: 1  - Miragens
Moby Dick: 41 -  Moby Dick (b)
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?

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