Hannah Arendt
Parte III
TOTALITARISMO
Os homens normais não sabem que tudo é possível.
David Rousset
1 - As Massas
continuando...
A lealdade total só é possível quando a fidelidade é esvaziada de todo o seu conteúdo concreto,
que poderia dar azo a mudanças de opinião. Os movimentos totalitários, cada um ao seu modo,
fizeram o possível para se livrarem de programas que especificassem um conteúdo concreto,
herdados de estágios anteriores e não-totalitários da sua evolução. Por mais radical que seja,
todo objetivo político que não inclua o domínio mundial, todo programa político definido que
trate de assuntos específicos em vez de referir-se a "questões ideológicas que serão importantes
durante séculos" é um entrave para o totalitarismo. A grande realização de Hitler ao organizar o
movimento nazista — que ele gradualmente construiu a partir de um pequeno partido
tipicamente nacionalista formado por gente obscura e meio louca — é que ele liberou o movimento do antigo programa do partido, não por mudá-lo ou aboli-lo oficialmente, mas
simplesmente por recusar-se a mencioná-lo ou discutir os seus pontos.[35] Nesse aspecto, como
em outros, a tarefa de Stálin foi muito mais difícil: o programa socialista do partido bolchevista
era uma carga muito mais incômoda[36]que os 25 pontos do programa do partido nazista redigidos
por um economista amador e político maluco.[37] Mas Stálin, após haver abolido as facções do
partido, conseguiu finalmente o mesmo resultado, através dos constantes ziguezagues da linha
partidária comunista e da constante reinterpretação e aplicação do marxismo, o que esvaziava a
doutrina de todo o seu conteúdo, já que não era possível prever o rumo ou ação que ela ditaria.
O fato de que o mais perfeito conhecimento do marxismo e do leninismo já não servia de guia
para a conduta política — e de que, pelo contrário, só era possível seguir a linha do partido se se
repetisse a cada manhã o que Stálin havia dito na véspera — resultou naturalmente no mesmo
estado de espírito, na mesma obediência concentrada, imune a qualquer tentativa de se
compreender o que se estava fazendo, expressa pelo engenhoso lema de Himmler para os
homens da SS: "Minha honra é a minha lealdade''.[38]
A falta de um programa partidário, ou o fato de se ignorá-lo, não é, por si só, necessariamente
um sinal de totalitarismo. O primeiro a considerar programas e plataformas como
desnecessários pedaços de papel e embaraçosas promessas, não condizentes com o estilo e o
ímpeto de um movimento, foi Mussolini com a sua filosofia fascista de ativismo e inspiração
no próprio momento histórico.[39] Todo líder da ralé é caracterizado pela mera sede de poder e
pelo desprezo à "tagarelice" quando se pergunta o que pretende fazer com ele. O
verdadeiro objetivo do fascismo era apenas a tomada do poder e a instalação da "elite" fascista
no governo. O totalitarismo jamais se contenta em governar por meios externos, ou seja, através
do Estado e de uma máquina de violência; graças à sua ideologia peculiar e ao papel dessa
ideologia no aparelho de coação, o totalitarismo descobriu um meio de subjugar e aterrorizar os
seres humanos internamente. Neste sentido, elimina a distância entre governantes e governados
e estabelece uma situação na qual o poder e o desejo de poder, tal como os entendemos, não
representam papel algum ou, na melhor das hipóteses, têm um papel secundário.
Essencialmente, o líder totalitário é nada mais e nada menos que o funcionário das massas que
dirige; não é um indivíduo sedento de poder impondo aos seus governados uma vontade tirânica
e arbitrária.
Como simples funcionário, pode ser substituído a qualquer momento e depende
tanto do "desejo" das massas que ele incorpora, como as massas dependem dele. Sem ele, elas
não teriam representação externa e não passariam de um bando amorfo; sem as massas, o líder
seria uma nulidade. Hitler, que conhecia muito bem essa interdependência, exprimiu-a certa vez
num discurso perante a SA: "Tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o que eu sou,
sou somente através de vocês".[40] Infelizmente nossa tendência é dar pouca importância a
declarações deste tipo ou interpretá-las erradamente. Na tradição política do Ocidente,[41] a ação
é definida em termos de dar e executar ordens. Mas esta ideia sempre pressupôs alguém que
comanda, que pensa e deseja e, em seguida, impõe o seu pensamentos o seu desejo sobre um
grupo destituído de pensamento e de vontade — seja por meio da persuasão, da autoridade ou
da violência. Hitler, porém, era da opinião de que até mesmo "o pensamento (...) [só existe] em
virtude da formulação ou execução de uma ordem",[42] eliminando assim, mesmo teoricamente,
de um lado a diferença entre pensar e agir e, do outro, a diferença entre governantes e
governados.
Nem o nacional-socialismo nem o bolchevismo jamais proclamaram uma nova forma de
governo ou afirmaram que o seu objetivo seria alcançado com a tomada do poder e o controle da
máquina estatal. Sua ideia de domínio — a dominação permanente de todos os indivíduos em
toda e qualquer esfera da vida[43] — é algo que nenhum Estado ou mecanismo de violência
jamais pôde conseguir, mas que é realizável por um movimento totalitário constantemente
acionado. A tomada do poder através dos instrumentos de violência nunca é um fim em si, mas apenas um meio para um fim, e a tomada do poder em qualquer país é apenas uma etapa
transitória e nunca o fim do movimento. O fim prático do movimento é amoldar à sua estrutura o maior
número possível de pessoas, acioná-las e mantê-las em ação; um objetivo político que constitua a
finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe.
continua página 376...
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Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 1[c]- As Massas)
________________[34] A própria prática tem sido abundantemente documentada. W. Krivitsky, em seu livro In Stalin 's secret services
(Nova York, 1939), remonta esta diretriz diretamente a Stálin.
[35] Hitler escreveu em Mein Kampf (2 vols., 1? edição alemã, 1925 e 1927 respectivamente) que era melhor ter um
programa antiquado do que permitir fcma discussão de programa (livro II, cap. V). Pouco depois, declararia
publicamente: "Quando tomarmos o governo, o programa virá por si mesmo. (...) O primeiro passo deverá ser uma
inconcebível onda de propaganda. Isto é, uma ação política que pouco teria a ver com os outros problemas do
momento". Ver Heiden, op. cit., p. 203.
[36] Souvarine sugere (erradamente, em nossa opinião) que já Lênin havia abolido o papel de um programa
partidário. "Nada podia mostrar mais claramente que o bolchevismo, como doutrina, não existia a não ser na cabeça
de Lênin; todo bolchevista, se fosse deixado sozinho, desviava-se da 'linha' de sua facção (...) pois o que unia esses
homens era o seu temperamento e a autoridade de Lênin, e não as ideias" (op. cit., p. 85).
[37] O programa de Gottfried Feder para o partido nazista, com os seus famosos 25 pontos, teve papel mais
importante na literatura acerca do movimento do que no próprio movimento.
[38] O impacto do lema, formulado pelo próprio Himmler, é difícil de traduzir. Em alemão, Meine Ehre heisst Treue
indica uma devoção e uma obediência absolutas, que transcendem o significado da mera disciplina ou fidelidade
pessoal. Nazi conspiracy, cujas traduções de documentos alemães e da literatura nazista são uma fonte indispensável
de material, mas que, infelizmente, são muito irregulares, traduz a senha da SS como "Minha honra significa
fidelidade" (V, 346).
[39] Mussolini foi provavelmente o primeiro líder de partido a rejeitar conscientemente um programa formal e
substituí-lo apenas pela liderança e pela ação inspiradas. Por trás dessa atitude, estava a noção de que a atualidade do
próprio momento era o principal elemento de inspiração, ao qual um programa partidário somente poderia prejudicar.
A filosofia do fascismo italiano foi expressa pelo "atualismo" de Gentile e não pelos "mitos" de Sorel. Compare-se
também o artigo "Fascism" da Encyclopedia of social sciences. O programa de 1921 foi formulado quando o
movimento existia havia apenas dois anos, e continha, na maior parte, a sua filosofia nacionalista.
[40] Ernst Bayer, Die SA, Berlim, 1938. Traduzido do Nazi conspiracy, IV, 783.
[41] Isso ocorre pela primeira vez na Política de Platão, 305, onde a ação é interpretada em termos de archein
eprattein — de ordenar o início de um ato e de executar a ordem.
[42] Hitlers Tischgespràche, p. 198.
[43] Mein Kampf, livro I, cap. XI. Veja-se também, por exemplo, Dieter Schwartz, "An-griffe auf die
nationalsozialistische Weltanschauung" [Ataques à ideologia nacional-socialista], em Aus dem Schwarzen Korps, n?
2, 1936, que responde à crítica óbvia de que o nacional-socialismo, após haver galgado o poder, continuava a falar de
"luta": "Como ideologia [Weltanschauung], o nacional-socialismo não abandonará a sua luta até que (...) o modo de
vida de cada indivíduo alemão tenha sido moldado segundo os seus valores fundamentais, postos em prática a cada
dia".
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