quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 1[c]- As Massas)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

Uma Sociedade Sem Classes
     1 - As Massas

continuando...
 
          A atomização da massa na sociedade soviética foi conseguida pelo habilidoso uso de repetidos expurgos que invariavelmente precediam o verdadeiro extermínio de um grupo. A fim de destruir todas as conexões sociais e familiares, os expurgos eram conduzidos de modo a ameaçarem com o mesmo destino o acusado e todas as suas relações, desde meros conhecidos até os parentes e amigos íntimos. A "culpa por associação" é uma invenção engenhosa e simples; Jogo que um homem é acusado  os seus antigos amigos se transformam nos mais amargos inimigos: para salvar a própria pele, prestam informações e acorrem com denúncias que "corroboram" provas inexistentes, a única maneira que encontram de demonstrarem a sua própria fidelidade. Em seguida, tentam provar que a sua amizade com o acusado nada mais era que um meio de espioná-lo e delatá-lo como sabotador, trotskista, espião estrangeiro ou "fascista. Uma vez que o mérito é "julgado pelo número de denúncias apresentadas contra os camaradas",[34] é óbvio que a mais elementar cautela exige que se evitem, se possível, todos os contatos íntimos — não para evitar que outros descubram os pensamentos secretos, mas para eliminar, em caso quase certo de problemas futuros, a presença daqueles que sejam obrigados, pelo perigo da própria vida, à necessidade de arruinar a de ou trem. Em última análise, foi através do desenvolvimento desse artifício, até os seus máximos e mais fantásticos extremos, que os governantes bolchevistas conseguiram criar uma sociedade atomizada e individualizada como nunca se viu antes, e a qual nenhum evento ou catástrofe poderiam por si só ter suscitado. Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos^ movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Essa exigência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomarem o poder e decorre da alegação, já contida em sua ideologia, de que a organização abrangerá, no devido tempo, toda a raça humana. Contudo, onde o governo totalitário não é preparado por um movimento totalitário (como foi o caso da Rússia em contraposição com a Alemanha nazista), o movimento tem de ser organizado depois, e as condições para o seu crescimento têm de ser artificialmente criadas de modo a possibilitar a lealdade total que é a base psicológica do domínio total. Não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais — de família, amizade, camaradagem — só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento, pertencem ao partido.
     A lealdade total só é possível quando a fidelidade é esvaziada de todo o seu conteúdo concreto, que poderia dar azo a mudanças de opinião. Os movimentos totalitários, cada um ao seu modo, fizeram o possível para se livrarem de programas que especificassem um conteúdo concreto, herdados de estágios anteriores e não-totalitários da sua evolução. Por mais radical que seja, todo objetivo político que não inclua o domínio mundial, todo programa político definido que trate de assuntos específicos em vez de referir-se a "questões ideológicas que serão importantes durante séculos" é um entrave para o totalitarismo. A grande realização de Hitler ao organizar o movimento nazista — que ele gradualmente construiu a partir de um pequeno partido tipicamente nacionalista formado por gente obscura e meio louca — é que ele liberou o movimento do antigo programa do partido, não por mudá-lo ou aboli-lo oficialmente, mas simplesmente por recusar-se a mencioná-lo ou discutir os seus pontos.[35] Nesse aspecto, como em outros, a tarefa de Stálin foi muito mais difícil: o programa socialista do partido bolchevista era uma carga muito mais incômoda[36]que os 25 pontos do programa do partido nazista redigidos por um economista amador e político maluco.[37] Mas Stálin, após haver abolido as facções do partido, conseguiu finalmente o mesmo resultado, através dos constantes ziguezagues da linha partidária comunista e da constante reinterpretação e aplicação do marxismo, o que esvaziava a doutrina de todo o seu conteúdo, já que não era possível prever o rumo ou ação que ela ditaria. O fato de que o mais perfeito conhecimento do marxismo e do leninismo já não servia de guia para a conduta política — e de que, pelo contrário, só era possível seguir a linha do partido se se repetisse a cada manhã o que Stálin havia dito na véspera — resultou naturalmente no mesmo estado de espírito, na mesma obediência concentrada, imune a qualquer tentativa de se compreender o que se estava fazendo, expressa pelo engenhoso lema de Himmler para os homens da SS: "Minha honra é a minha lealdade''.[38]
     A falta de um programa partidário, ou o fato de se ignorá-lo, não é, por si só, necessariamente um sinal de totalitarismo. O primeiro a considerar programas e plataformas como desnecessários pedaços de papel e embaraçosas promessas, não condizentes com o estilo e o ímpeto de um movimento, foi Mussolini com a sua filosofia fascista de ativismo e inspiração no próprio momento histórico.[39] Todo líder da ralé é caracterizado pela mera sede de poder e pelo desprezo à "tagarelice" quando se pergunta o que pretende fazer com ele. O verdadeiro objetivo do fascismo era apenas a tomada do poder e a instalação da "elite" fascista no governo. O totalitarismo jamais se contenta em governar por meios externos, ou seja, através do Estado e de uma máquina de violência; graças à sua ideologia peculiar e ao papel dessa ideologia no aparelho de coação, o totalitarismo descobriu um meio de subjugar e aterrorizar os seres humanos internamente. Neste sentido, elimina a distância entre governantes e governados e estabelece uma situação na qual o poder e o desejo de poder, tal como os entendemos, não representam papel algum ou, na melhor das hipóteses, têm um papel secundário.
     Essencialmente, o líder totalitário é nada mais e nada menos que o funcionário das massas que dirige; não é um indivíduo sedento de poder impondo aos seus governados uma vontade tirânica e arbitrária. Como simples funcionário, pode ser substituído a qualquer momento e depende tanto do "desejo" das massas que ele incorpora, como as massas dependem dele. Sem ele, elas não teriam representação externa e não passariam de um bando amorfo; sem as massas, o líder seria uma nulidade. Hitler, que conhecia muito bem essa interdependência, exprimiu-a certa vez num discurso perante a SA: "Tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o que eu sou, sou somente através de vocês".[40] Infelizmente nossa tendência é dar pouca importância a declarações deste tipo ou interpretá-las erradamente. Na tradição política do Ocidente,[41] a ação é definida em termos de dar e executar ordens. Mas esta ideia sempre pressupôs alguém que comanda, que pensa e deseja e, em seguida, impõe o seu pensamentos o seu desejo sobre um grupo destituído de pensamento e de vontade — seja por meio da persuasão, da autoridade ou da violência. Hitler, porém, era da opinião de que até mesmo "o pensamento (...) [só existe] em virtude da formulação ou execução de uma ordem",[42] eliminando assim, mesmo teoricamente, de um lado a diferença entre pensar e agir e, do outro, a diferença entre governantes e governados. 
     Nem o nacional-socialismo nem o bolchevismo jamais proclamaram uma nova forma de governo ou afirmaram que o seu objetivo seria alcançado com a tomada do poder e o controle da máquina estatal. Sua ideia de domínio — a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida[43] — é algo que nenhum Estado ou mecanismo de violência jamais pôde conseguir, mas que é realizável por um movimento totalitário constantemente acionado. A tomada do poder através dos instrumentos de violência nunca é um fim em si, mas apenas um meio para um fim, e a tomada do poder em qualquer país é apenas uma etapa transitória e nunca o fim do movimento. O fim prático do movimento é amoldar à sua estrutura o maior número possível de pessoas, acioná-las e mantê-las em ação; um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe. 

Parte III Totalitarismo (Uma sociedade sem classes 1[c]- As Massas)
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[34] A própria prática tem sido abundantemente documentada. W. Krivitsky, em seu livro In Stalin 's secret services (Nova York, 1939), remonta esta diretriz diretamente a Stálin.
[35] Hitler escreveu em Mein Kampf (2 vols., 1? edição alemã, 1925 e 1927 respectivamente) que era melhor ter um programa antiquado do que permitir fcma discussão de programa (livro II, cap. V). Pouco depois, declararia publicamente: "Quando tomarmos o governo, o programa virá por si mesmo. (...) O primeiro passo deverá ser uma inconcebível onda de propaganda. Isto é, uma ação política que pouco teria a ver com os outros problemas do momento". Ver Heiden, op. cit., p. 203.
[36] Souvarine sugere (erradamente, em nossa opinião) que já Lênin havia abolido o papel de um programa partidário. "Nada podia mostrar mais claramente que o bolchevismo, como doutrina, não existia a não ser na cabeça de Lênin; todo bolchevista, se fosse deixado sozinho, desviava-se da 'linha' de sua facção (...) pois o que unia esses homens era o seu temperamento e a autoridade de Lênin, e não as ideias" (op. cit., p. 85).
[37] O programa de Gottfried Feder para o partido nazista, com os seus famosos 25 pontos, teve papel mais importante na literatura acerca do movimento do que no próprio movimento.
[38]  O impacto do lema, formulado pelo próprio Himmler, é difícil de traduzir. Em alemão, Meine Ehre heisst Treue indica uma devoção e uma obediência absolutas, que transcendem o significado da mera disciplina ou fidelidade pessoal. Nazi conspiracy, cujas traduções de documentos alemães e da literatura nazista são uma fonte indispensável de material, mas que, infelizmente, são muito irregulares, traduz a senha da SS como "Minha honra significa fidelidade" (V, 346).
[39] Mussolini foi provavelmente o primeiro líder de partido a rejeitar conscientemente um programa formal e substituí-lo apenas pela liderança e pela ação inspiradas. Por trás dessa atitude, estava a noção de que a atualidade do próprio momento era o principal elemento de inspiração, ao qual um programa partidário somente poderia prejudicar. A filosofia do fascismo italiano foi expressa pelo "atualismo" de Gentile e não pelos "mitos" de Sorel. Compare-se também o artigo "Fascism" da Encyclopedia of social sciences. O programa de 1921 foi formulado quando o movimento existia havia apenas dois anos, e continha, na maior parte, a sua filosofia nacionalista.
[40] Ernst Bayer, Die SA, Berlim, 1938. Traduzido do Nazi conspiracy, IV, 783.
[41] Isso ocorre pela primeira vez na Política de Platão, 305, onde a ação é interpretada em termos de archein eprattein — de ordenar o início de um ato e de executar a ordem.
[42] Hitlers Tischgespràche, p. 198.
[43Mein Kampf, livro I, cap. XI. Veja-se também, por exemplo, Dieter Schwartz, "An-griffe auf die nationalsozialistische Weltanschauung" [Ataques à ideologia nacional-socialista], em Aus dem Schwarzen Korps, n? 2, 1936, que responde à crítica óbvia de que o nacional-socialismo, após haver galgado o poder, continuava a falar de "luta": "Como ideologia [Weltanschauung], o nacional-socialismo não abandonará a sua luta até que (...) o modo de vida de cada indivíduo alemão tenha sido moldado segundo os seus valores fundamentais, postos em prática a cada dia".

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