Thomas Mann
A Montanha Mágica
Capítulo III
Ensombramento pudico
Estando muito cansado, Hans Castorp receara dormir além da hora. Mas levantou-se muito mais cedo do que era necessário, de maneira que teve tempo de sobra para observar com minúcia os seus hábitos matinais – hábitos sumamente civilizados, no meio dos quais desempenhavam papéis importantes uma baciazinha de borracha, um sabonete verde de alfazema, num receptáculo de madeira, e o indispensável pincel de palha – e também para combinar os cuidados de limpeza e de higiene com o trabalho de desemalar e arrumar os seus objetos. Ao passar o aparelho prateado pelas faces cobertas de perfumada espuma, lembrou-se dos seus sonhos confusos e maneou a cabeça, esboçando um sorriso indulgente ante tamanho desvario, com a sensação de superioridade que experimenta quem se barbeia à luz clara da razão. Não se sentia precisamente descansado, mas o dia incipiente dava-lhe boa disposição. Com o rosto empoado, em ceroulas de fio de Escócia e chinelos de marroquim vermelho, e ainda enxugando as mãos, saiu à sacada, que corria ao longo do edifício, subdividida apenas por paredes de vidro fosco, que, embora sem avançarem até a balaustrada, formavam compartimentos correspondentes aos diversos quartos. A manhã estava fresca e nublada. Vastas massas de neblina jaziam imóveis diante das elevações laterais, enquanto volumosas nuvens brancas e cinzentas repousavam sobre a cordilheira mais distante. Pedaços e tiras de céu azul apareciam aqui e ali, e quando um raio de sol caía sobre o fundo do vale, a aldeia cintilava muito alva, contrastando com os sombrios pinheirais que cobriam as encostas. Em algum lugar se dava um concerto matinal, provavelmente no mesmo hotel donde viera, na noite anterior, o som de uma orquestra. Ouviam-se em surdina os acordes de um hino religioso; depois de uma pausa, seguiu-se uma marcha. Hans Castorp gostava da música, de todo o coração, porque ela produzia nele um efeito semelhante ao do porter matutino, efeito altamente calmante, entorpecente, que o induzia à “basbaquice”. Assim escutou-a satisfeito, com a cabeça levemente inclinada para o lado, com a boca aberta e os olhos um pouco avermelhados. Lá de baixo subia, sinuoso, o caminho que conduzia ao sanatório, e pelo qual haviam chegado na véspera. Gencianas estreladas, de talo curto, cresciam na grama úmida da encosta. Parte do terraço estava cercada por uma sebe, para formar um jardim, onde havia veredas ensaibradas, canteiros de flores e uma gruta artificial de rochedos, junto a um esplêndido abeto. Para o sul abria-se um alpendre com telhado de zinco, onde se viam algumas espreguiçadeiras. Ao lado se erguia um mastro pintado de marrom avermelhado, em que às vezes tremulava uma bandeira; bandeira de fantasia, verde e branca, com o emblema da medicina, um caduceu, no centro.
Uma mulher passeava pelo jardim, uma senhora já de idade, de aspecto sombrio, quase trágico. Vestida completamente de preto, com um negro véu envolvendo os desgrenhados cabelos grisalhos, ia e vinha sem descanso pelas veredas, num passo monótono e rápido, de joelhos um tanto dobrados e de braços rígidos, caídos para a frente. Tinha a testa sulcada de rugas horizontais, e dirigia fixamente ao alto os olhos muito negros, sob os quais pendiam bolsas flácidas. Seu semblante envelhecido, de uma lividez meridional, com a grande e melancólica boca contraída para um lado, relembrou a Hans Castorp o retrato de uma famosa atriz trágica, que ele vira em alguma parte. Era sinistro observar como essa mulher enlutada, pálida, acertava, aparentemente sem sabê-lo, os passos longos, tristonhos, ao ritmo da marcha que ressoava de longe.
Pensativo, com uma simpatia compassiva, Hans Castorp contemplou-a do alto da sacada. Era-lhe como se aquela visão triste obscurecesse o sol da manhã. Mas, ao mesmo tempo, percebeu mais uma coisa, algo audível, ruídos que partiam do quarto dos vizinhos da esquerda – o casal russo, segundo as informações de Joachim. E esses ruídos igualmente não condiziam com aquela manhã clara e fresca; pelo contrário, pareciam poluí-la de certa forma viscosa. Hans Castorp recordou-se de que, já na noite anterior, ouvira qualquer coisa parecida, mas o cansaço impedira-o de prestar atenção. Era uma luta acompanhada de risinhos e arfadas, cuja natureza escabrosa não podia passar despercebida ao jovem, se bem que ele, por bondade, se esforçasse a princípio por interpretá-la de uma maneira inocente. Também poderíamos ter dado outras denominações a essa tal bondade, por exemplo, o nome um tanto insípido de pureza da alma, ou talvez o belo e austero nome de pudicícia, ou ainda os nomes depreciativos de temor à verdade ou de tartufice, ou até mesmo o de resguardo místico ou de piedade. Havia um pouco de tudo isso na atitude que Hans Castorp adotava em face dos rumores que vinham do quarto vizinho, e que se refletia na sua fisionomia através de um ensombramento pudico, como se não devesse nem quisesse saber nada daquilo que ouvia – expressão de inocência que não era precisamente original, mas que, em certas ocasiões, tinha o hábito de adotar.
Com a dita fisionomia retirou-se, pois, da sacada, para o quarto, na intenção de não assistir por mais tempo a acontecimentos que se lhe afiguravam graves e mesmo perturbadores, apesar de se manifestarem sob o acompanhamento de risinhos. Porém, no interior do quarto, fizeram-se ouvir ainda mais distintamente os atos praticados do outro lado da parede. Parecia uma perseguição em torno dos móveis; uma cadeira caiu estrondosamente uma pessoa apanhou a outra; davam-se palmadas e beijos, e a todos esses sons juntavam-se agora os acordes de uma valsa, as frases batidas e melodiosas de uma canção popular, acompanhando de longe a cena invisível. Hans Castorp, com a toalha na mão, sem querer, deteve-se a escutar. E de repente corou baixo da camada de pó-de-arroz: o que ele já previra claramente acabava de suceder: o brinquedo, sem dúvida alguma, tomara um rumo animalesco. “Grande Deus!”, pensou, virando as costas para terminar sua toilette com movimentos propositadamente ruidosos. “Ora, são marido e mulher, está bem, não há mal nenhum nisso. Mas, já de manhã, em pleno dia... É meio forte. E me parece que ontem à noite também quebraram a trégua. Afinal de contas, são enfermos, ou pelo menos um dos dois está doente, uma vez que estão aqui; seria indicada alguma moderação. Mas o mais escandaloso”, continuava raciocinando com grande irritação, são essas paredes tão finas que a gente ouve tudo. É insuportável! Construção barata, claro; é uma vergonha como economizaram nisso! Será que, mais tarde, verei esse casal e lhes serei apresentado? Seria bem penoso para mim.” Nesse momento Hans Castorp notou com admiração que o rubor que lhe subira às faces recém-barbeadas não queria absolutamente ceder. Pelo menos persistia a sensação de calor que o acompanhava e não era outra coisa senão aquele ardor seco de que padecera na noite anterior, e que, depois d se ter sumido durante o sono, reaparecera agora, reanimado por essas circunstâncias. Isso não o predispôs mais favoravelmente para com o casal vizinho. Pelo contrário, avançando os lábios, murmurou a seu respeito uma palavra altamente desrespeitosa. A seguir cometeu o erro de refrescar, uma vez mais, o rosto com água, o que agravou o mal consideravelmente. Assim sucedeu que sua voz vacilasse, mal-humorada, ao responder ao primo que batera para chamá-lo. E ainda quando Joachim entrou, Hans Castorp não dava a impressão de um homem refrescado, que com boa disposição encara a manhã.
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Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
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