terça-feira, 14 de outubro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Mynheer Peeperkorn

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn

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     Mynheer Peeperkorn, um holandês de certa idade, esteve durante algum tempo hospedado no Sanatório Berghof, que com muita razão usava no seu prospecto o epíteto “internacional”. Pieter Peeperkorn – era este o seu nome, e assim falava de si próprio dizendo, por exemplo: “E agora Pieter Peeperkorn vai se regalar com uma cachacinha” – era um holandês colonial, nascido em Java, um plantador de café. Sua nacionalidade um tanto desbotada mal bastaria por si só para nos decidir a introduzi-lo à última hora na nossa história. Pois, meu Deus, quanta variedade de cores e matizes não existia na sociedade do renomado instituto que o Conselheiro Dr. Behrens, com sua facúncia poliglota, dirigia como médico! Recentemente chegara até uma princesa egípcia – a mesma que em outra ocasião oferecera ao conselheiro aquele notável aparelho de café e os cigarros adornados com uma esfinge; era uma personagem sensacional, com os dedos amarelos de nicotina e enfeitados de anéis, que usava o cabelo curto e, exceção feita às refeições principais em que ostentava toaletes de Paris, trajava paletó e calças bem frisadas. De resto não se interessava pelo mundo masculino e concedia seus favores mesclados de displicência e de paixão, com exclusividade, a uma judia rumena, que se chamava simplesmente Landauer; isso embora o Promotor Paravant tivesse abandonado as matemáticas, para dedicar-se a Sua Alteza, e se conduzisse feito um idiota de tanto amor. Mas, como se a presença da princesa não fosse suficiente, achava-se no seu séquito um eunuco negro, homem doente e débil, que, não obstante seu defeito básico, do qual Karoline Stöhr gostava de zombar, parecia amar a vida mais do que ninguém e se mostrava inconsolável em face da imagem que a radiografia exibia do seu interior, depois de ter lançado luz sobre a sua negrura...
     Comparado com tais figuras, Mynheer Peeperkorn poderia aparecer como que desprovido de cores. E posto que essa parte da nossa narração pudesse, tal e qual outra, anterior, ser intitulada “Mais alguém”, não há motivos para recear que entre em cena uma nova fonte de perturbações espirituais e pedagógicas. Não, Mynheer Peeperkorn absolutamente não era talhado para criar no mundo confusões lógicas. Como veremos, era homem muito diferente. Que, apesar disso, a sua pessoa tenha perturbado gravemente o nosso herói, explica-se pelo que se segue.
     Mynheer Peeperkorn chegou à estação da “aldeia” no mesmo trem noturno que trouxe Mme. Chauchat, e dirigiu-se no mesmo trenó que ela ao Sanatório Berghof, em cujo restaurante jantaram juntos. Tratava-se, em suma, não somente de uma chegada simultânea, mas também de uma chegada em comum, e esse caráter comum, que continuava manifestando-se, por exemplo, no fato de Mynheer receber um lugar à mesa dos “russos distintos”, ao lado da recém-vinda, em frente ao lugar do médico, ali onde outrora o Professor Popov se conduzira daquele modo desenfreado e equívoco – esse caráter comum deixava perplexo o bom Hans Castorp, que não previra pudessem os acontecimentos tomar esse rumo. O conselheiro anunciara-lhe à sua maneira o dia e a hora do regresso de Clávdia: – Pois então, Castorp, meu velho, a fidelidade na espera será recompensada. Depois de amanhã, à noite, a gatinha estará de volta. Recebi um telegrama. – Mas nas suas palavras nada transparecera de que Mme. Chauchat não chegaria sozinha, talvez porque o próprio Behrens ignorasse que ela e Peeperkorn viriam juntos e formavam um par. Pelo menos fingiu-se surpreendido, quando Hans Castorp, no dia seguinte à chegada em comum, pediu-lhe, por assim dizer, satisfações. 

– Eu também não sei dizer onde ela arranjou este – declarou. – Devem ter-se conhecido na viagem, lá nos Pireneus, suponho eu. Pois é, meu pobre e desiludido Celadon, por enquanto o senhor terá de se conformar com ele. Não há remédio. São amicíssimos; compreende? Parece que até existe comunhão de bens. O homem é imensamente rico, segundo ouvi dizer. Um rei do café, aposentado, sabe? Tem criado malaio. Estilo de vida opulento. Não veio, aliás, para se divertir. Além de um forte catarro com base alcoólica, sofre evidentemente de uma febre maligna que contraiu nos trópicos. Uma febre intermitente, compreende? Doença mal tratada e pertinaz. É necessário que o senhor se arme de paciência. 
– Pois não – disse Hans Castorp, condescendentemente. “E tu?”, acrescentou de si para si. “Como te sentes? Afinal de contas não estás completamente desinteressado. Se não me engano muito, houve lá qualquer coisa no passado, com um viúvo de faces azuladas, que sabia pintar convincentemente a óleo. Acho que tuas palavras revelam certa alegria maliciosa, e contudo somos, em certo sentido, companheiros de infortúnio no que se refere a Peeperkorn.” – Um tipo curioso e decididamente uma personalidade original – prosseguiu em voz alta, com um gesto displicente. – É robusto e delicado, eis a impressão que se tem dele, ou pelo menos a que eu tive hoje, quando tomamos o café da manhã. Robusto e ao mesmo tempo delicado. São esses os adjetivos que o caracterizam, segundo a minha opinião, se bem que normalmente sejam considerados contraditórios. Ele é alto e espadaúdo, isso sim, e gosta de ficar de pé, com as pernas abertas e as mãos enterradas nos bolsos da calça, que são verticais... Achei necessário mencionar que nas calças dele os bolsos afundam verticalmente e não se encontram aos lados, como nas minhas, nas do senhor e nas da maioria das pessoas pertencentes às classes superiores da sociedade... E quando ele se mantém nessa posição e fala guturalmente, à maneira dos holandeses, não há como negar que tem aspecto robusto. Mas seu cavanhaque é ralo; embora comprido, é tão ralo que bem se poderia contar-lhe os fios. Também os olhos são pequenos, apagados e quase sem cor. Que se pode fazer? Não lhe adianta arregalá-los constantemente; com isso só cria rugas pronunciadas na testa, que lhe sobem pelas têmporas e atravessam em sentido horizontal a fronte, essa fronte alta e vermelha, emoldurada por cabelos brancos, que são igualmente compridos e ralos. Mesmo que os arregale assim, os olhos continuam pequenos e apagados. E o colete de peito alto lhe imprime um cunho de clérigo, apesar da sobrecasaca xadrez. Bem, é essa a impressão que tive hoje de manha. 
– Estou vendo que o senhor o examinou atentamente – respondeu Behrens. – Estudou o homem em todas as suas particularidades, o que me parece muito acertado, uma vez que o senhor terá de habituar-se à sua existência. 
– Pois é, devemos habituar-nos – disse Hans Castorp.

     Deixamos a seu cargo a descrição aproximada da figura do novo e inesperado hóspede, e ele não se desincumbiu mal da sua tarefa. Nós mesmos, provavelmente, não teríamos obtido melhor resultado. Verdade é que seu posto de observação era sumamente favorável. Como sabemos, Hans Castorp avizinhara-se, durante a ausência de Clávdia, da mesa dos “russos distintos”; visto a sua ficar paralela à outra, que apenas avançava um pouco mais em direção à porta do avarandado, e visto Hans Castorp tanto como Peeperkorn ocuparem as pontas dirigidas para o interior da sala, achavam-se, por assim dizer, colocados lado a lado, o nosso herói um pouco atrás do holandês, o que facilitava uma inspeção discreta, enquanto enxergava obliquamente diante de si o rosto de Mme. Chauchat a três quartos. Para completar o talentoso esboço de Hans Castorp, poderíamos acrescentar que Peeperkorn tinha o bigode raspado, o nariz grande e carnudo, e a boca igualmente grande, com os lábios irregulares, como que gretados. Apesar de as mãos serem bastante largas, as unhas eram compridas e pontudas. Quando Peeperkorn falava – o que fazia quase sem cessar, embora Hans Castorp não conseguisse entender claramente o conteúdo das suas palavras –, servia-se dessas mãos para gestos elegantes, que mantinham os ouvintes em suspenso, esses gestos delicadamente matizados, esmerados, precisos e nítidos que revelam a cultura de um diretor de orquestra; curvava então o dedo indicador, para que formasse um círculo com o polegar, ou estendia a mão espalmada – larga, mas de unhas pontudas – num movimento protetor, tranquilizante, que exigia atenção. Contudo, a atenção sorridente que ele conquistava era logo transformada em decepção pela vagueza das exposições tão intensamente preparadas. Ou melhor: não era transformada em decepção, mas em uma alegre surpresa, pois o vigor, a fineza, a ênfase dos preparativos não somente substituíam com perfeição, e ainda posteriormente, aquilo que faltava, mas eram em si satisfatórios, interessantes e mesmo preciosos. Às vezes nem sequer chegava a pronunciar palavras. Acontecia lhe pôr suavemente a mão sobre o antebraço de seu vizinho da esquerda, um jovem sábio búlgaro, ou de Mme. Chauchat, à sua direita; depois erguia a mesma mão obliquamente, reclamando silêncio e curiosidade para o que desejava dizer; franzia então as sobrancelhas a tal ponto que as rugas que desciam em ângulo reto da testa para as comissuras exteriores dos olhos se aprofundavam como numa máscara, e baixava o olhar sobre a toalha, ao lado da pessoa assim agarrada, enquanto os lábios grandes e gretados pareciam dispostos a formular qualquer coisa altamente importante. Alguns instantes após, porém, afrouxava a respiração e renunciava a falar, dando, por assim dizer, o comando “Descansar armas!” Sem ter proferido palavra alguma, tornava a ocupar-se com o seu café, que mandava fazer especialmente forte, e que lhe serviam na sua própria cafeteira. Depois de ter bebido, procedia da seguinte maneira: com um gesto de mão coibia a conversa, obtendo silêncio, assim como um regente faz calar a confusão dos instrumentos que estão sendo afinados e procura, por meio de um mando imperioso, concentrar a orquestra, a fim de começar uma peça. Sua cabeça grande, rodeada de labaredas de cabelos brancos, com os olhos sem cor definida, as poderosas rugas da fronte, o comprido cavanhaque e a boca desnuda e dolorida, eram indiscutivelmente impressionantes, de modo que todos costumavam obedecer-lhe ao gesto. Os comensais emudeciam, olhavam-no sorrindo, esperando, e aqui ou ali havia quem lhe desse um sinal alentador. E Peeperkorn dizia numa voz bastante abafada: 

– Senhoras e senhores. Muito bem. Tudo vai bem. Queiram, no entanto, observar e não perder de vista em nenhum momento, que... Nada mais sobre este ponto... O que me cumpre declarar não é aquilo, mas principal e exclusivamente o seguinte: temos o dever... É de uma forma inelutável... Repito e faço questão de usar essa expressão: é de uma forma inelutável que se reivindica de nós... Não, senhoras e senhores, não! Esse não é o sentido... Não me interpretem como se eu... Que erro grave não seria pensar que... Basta, senhoras e senhores! Basta amplamente! Sei que estamos de acordo sobre todas essas questões, e por isso entremos no assunto!

     Não dissera nada, mas a majestade da sua cabeça parecia tão indiscutível, o jogo de fisionomia e a gesticulação eram de tal modo enérgicos, imponentes, expressivos, que todos, inclusive Hans Castorp, empenhado em escutar, criam ter ouvido algo de grande peso, ou, se é que se davam conta de que o discurso carecia por completo de conteúdo e de coerência, não se ressentiam dessa falta. Seria interessante saber qual teria sido a reação de um surdo. Talvez ele se afligisse, porque a apresentação o faria tirar conclusões erradas quanto à alocução apresentada, e porque imaginaria perder, devido à surdez, uma informação valiosa. Tal gente é propensa à desconfiança e à amargura. Mas havia à outra extremidade da mesa um jovem chinês, que ainda não chegara a adquirir bons conhecimentos de alemão. Em certa ocasião, esse moço acabava de ver e de ouvir um desses discursos, sem compreendê-lo, e manifestou alegre satisfação exclamando “Very well!” e batendo palmas.
     E Mynheer Peeperkorn “entrou no assunto”. Empertigou-se, dilatou o largo peito, abotoou a sobrecasaca xadrez por cima do colete de gola alta. Sua cabeça branca, nesse momento, lembrava um rei. Com um aceno chamou uma criada – era a anã – e esta, embora atarefadíssima, atendeu imediatamente ao sinal peremptório. Com o jarro de leite e o bule de café nas mãos, colocou-se ao lado da sua cadeira. Também ela não pôde deixar de fazer um gesto alentador, enquanto no rosto grande de velhota lhe aflorava um sorriso. Parecia toda atenção, como que imobilizada pelo olhar apagado que Peeperkorn lhe lançava de sob as poderosas rugas da testa, e por sua mão erguida, cujo indicador se reunia com o polegar, para formar um círculo, ao passo que os três outros dedos se esticavam para o alto, dominados pelas pontas de lança das unhas. 

– Minha filha! – disse ele. – Bem. Por enquanto tudo vai bem. Você é pequena. Não há de ser nada. Pelo contrário. Vejo nisso uma vantagem e dou graças a Deus por você ser assim como é, e devido à sua baixa altura que é tão característica... Pois então! O que desejo da sua parte também é pequeno, pequenino, e característico. Antes de tudo, como se chama?

     Ela atrapalhou-se, sempre sorrindo, e disse por fim que seu nome era Emerentia. 

– Ótimo! – exclamou Peeperkorn, recostando-se à cadeira e estendendo o braço em direção à anã. Dera à exclamação um tom de quem pretende dizer: “Por que se preocupa? Tudo vai às mil maravilhas”. – Minha filha – prosseguiu então, seriamente e quase com severidade. – Isso ultrapassa todas as minhas expectativas. Emerentia... Você pronunciou este nome com modéstia, mas ele, unido à sua pessoa... Numa palavra, isso abre as mais belas perspectivas. Vale a pena deter-se e concentrar tudo quanto o peito contém de sentimento, para que... Acho que você me entende, minha filha... Na forma familiar e abreviada pode-se dizer Rentia, mas também Emezinha soa simpático. No momento não hesito em escolher Emezinha. Muito bem, Emezinha, minha filha, preste atenção: quero um pouco de pão, minha querida. Pare! Não se afaste! Que não se insinue na nossa conversa nenhum mal-entendido! Percebo na sua cara relativamente grande que esse perigo... Pão, Rentinha, mas não pão assado. Este se acha aqui em abundância, e dos mais diversos tipos. Desejo o pão de Deus, meu anjo, pão destilado, pão transparente, minha pequena forma carinhosa, a fim de me regalar com ele. Não tenho certeza se o sentido dessa palavra lhe... Estou disposto a substituí-la por “tônico do coração”, não surgisse com isso o novo perigo de me ver interpretado com a leviandade habitual... Basta, Rentia, Basta! Liquidado! Prefiro, consciente dos nossos deveres e das nossas obrigações sagradas... Inclusive, por exemplo, o dever moral de me regozijar cordialmente da sua característica estatura... Uma genebrinha, querida! Regozijar-me, era isso que eu queria dizer. Genebra de Schiedam, Emerentinha! Apresse-se e me traga uma. 

– Uma genebra genuína – repetiu a anã e deu meia-volta, na intenção de se desembaraçar do bule e do jarro. Finalmente depositou-os na mesa de Hans Castorp, ao lado do seu talher, evidentemente para não incomodar o Sr. Peeperkorn. Foi-se correndo, e sem demora o hóspede recebeu a bebida desejada. O cálice estava tão cheio que o “pão” se derramava por todos os lados e molhava o prato. O holandês pegou-o entre o polegar e o dedo médio e ergueu-o contra a luz. – Feito isso – declarou –, Pieter Peeperkorn vai se regalar com uma cachacinha. – E engoliu o trigo destilado, depois de o mastigar rapidamente. – E agora – acrescentou – contemplo todo o mundo com os olhos reconfortados. – Em seguida pegou da mão de Mme. Chauchat, que estava na mesa, levou-a aos lábios e recolocou-a sobre a toalha, mantendo-a ainda durante alguns instantes na sua.

     Um homem singular, uma personalidade vigorosa, se bem que pouco clara. A sociedade do Berghof interessava-se vivamente por ele. Diziam que acabava de retirar-se dos negócios coloniais, depois de ter enriquecido bastante. Falavam da sua esplêndida casa em Haia e da sua vila em Scheveningue. A Srª. Stöhr qualificou-o de “magnete de dinheiro” – a infeliz queria dizer “magnata” – e aludiu a um colar de pérolas que Mme. Chauchat, desde a sua volta, usava com o vestido de gala, e que, segundo a opinião de Dona Karoline, dificilmente podia ser considerado como sinal da galanteria de um marido caucasiano, senão que devia ter a sua origem na “comunhão de bens”. Ao dizer isso, piscou um olho e fez um gesto na direção do seu vizinho Hans Castorp, baixando os cantos da boca, numa paródia de pesar. Nem a enfermidade nem o sofrimento haviam contribuído para refinar a Srª. Stöhr, de modo que ela se aproveitou da situação incômoda do nosso herói para seus escárnios brutais. Hans Castorp não perdeu a linha. Corrigiu-lhe até com certa graça o lapso a que a induzira a ignorância. Ela acabava de confundir duas palavras – explicou –, queria dizer “magnata de dinheiro”. Mas o termo “magnete” também não estava mal escolhido, uma vez que Peeperkorn, evidentemente, possuía grande força de atração. Também respondeu com bem fingida indiferença à professora, Srta. Engelhart, quando esta, com um sorriso amarelo e sem o encarar, perguntou-lhe que tal ele achava o novo hóspede. Mynheer Peeperkorn, replicou, era uma personalidade esfumada. Personalidade, sem dúvida, mas esfumada. E essa classificação precisa documentava a sua objetividade tanto como a calma do seu espírito e desconcertava por completo a professora. E quanto a Ferdinand Wehsal e à sua indireta relativa às circunstâncias inesperadas em que voltara Mme. Chauchat, Hans Castorp demonstrou lhe que existem olhares cuja clareza inequívoca nada fica devendo às palavras mais nitidamente articuladas. “Miserável!”, dizia o olhar com que mediu de alto a baixo o homem de Mannheim; dizia-o, excluindo qualquer interpretação levissimamente ambígua, e Wehsal compreendeu esse olhar, engoliu-o e até o aprovou, meneando a. cabeça e exibindo os dentes cariados. Mas, a partir desse incidente, desistiu de carregar o sobretudo de Hans Castorp nos passeios que faziam em companhia de Naphta, Settembrini e Ferge.
     “Vá lá que seja!”, pensou Hans Castorp. “Posso carregá-lo sozinho. Até prefiro fazê-lo, e era pura amabilidade minha entregá-lo de vez em quando a esse coitado.” Mas ninguém de nós pode enganar-se quanto ao fato de Hans Castorp sentir-se ferido por aquelas circunstâncias totalmente imprevistas, que aniquilavam todos os preparativos íntimos que fizera para a ocasião do reencontro com o objeto das suas aventuras carnavalescas. Ou melhor: que os tornavam supérfluos, e era isso o que mais o humilhava.
     Seus propósitos haviam sido os mais delicados e sensatos. Longe dele pensar num procedimento precipitado ou importuno. Nunca tivera a intenção de ir esperar Clávdia na estação. Ainda bem que jamais tivesse ventilado tal idéia! Em todo caso ficara na dúvida se essa mulher, à qual a doença outorgava tamanha liberdade, julgaria verdadeiros os fantásticos acontecimentos de uma remota noite de carnaval, cheia de sonhos, de máscaras e de conversas em língua estrangeira, ou, ainda, se ela desejaria que isso fosse recordado de um modo direto. Não, nada de petulâncias, nada de reivindicações impertinentes. E mesmo admitindo que as suas relações com a enferma dos olhos oblíquos houvessem ultrapassado, pela sua natureza, os limites traçados pela razão e pelas convenções ocidentais, cumpria observar, quanto às formas, a mais perfeita civilidade e, por enquanto, até a ficção do esquecimento. Um cumprimento cortês de uma mesa para a outra, e nada mais, no momento!. Mais tarde aproveitaria uma oportunidade para se aproximar com toda a discrição e para perguntar, incidentalmente, como a viajante tinha passado desde aquele dia... O verdadeiro reencontro poderia produzir-se numa ocasião oportuna e trazer consigo a recompensa dessa coibição cavalheiresca.
     Mas, como já dissemos, toda essa delicadeza parecia vã nesse instante, já que deixara de ser o resultado de uma escolha livre e por isso não tinha méritos. A presença de Mynheer Peeperkorn excluía de uma forma mais que completa a possibilidade de uma tática que não consistisse em extrema reserva. Na noite da chegada, Hans Castorp tinha observado, da sacada, como o trenó subira em marcha lenta pela curva da rampa. Na boleia achava-se o criado malaio, um homenzinho amarelado com um chapéu-coco e com uma gola de peles no sobretudo. No assento de trás, ao lado de Clávdia, instalara-se o homem estranho, com o chapéu puxado sobre os olhos. Naquela noite, Hans Castorp dormira muito pouco. No outro dia, não tivera grande dificuldade em saber o nome desse desconcertante companheiro de viagem, e como brinde lhe haviam dado a notícia de que ambos acabavam de ocupar uns aposentos luxuosos e vizinhos no primeiro andar. Viera então o café da manhã. Hans Castorp encaminhara-se bem cedo ao seu lugar e, muito pálido, esperara pelo momento em que a porta envidraçada se fechasse com estrondo. Mas isso não se realizara. A entrada de Clávdia decorrera sem ruído nenhum, pois atrás dela Mynheer Peeperkorn tinha fechado a porta. Alto, espadaúdo, com a fronte ampla e com as labaredas brancas em torno do crânio imponente, ia seguindo os passos da companheira de viagem, que, no seu costumeiro andar felino, avançando a cabeça, se aproximava da sua mesa. Sim, era ela; não mudara em nada! Contra os seus propósitos, esquecido de tudo, Hans Castorp devorava-a com os olhos tresnoitados. Reencontrava o cabelo ruivo, penteado sem muita arte e enrolado, numa trança simples, em volta da cabeça; revia os “olhos de lobo de estepe”, a curva da nuca, os lábios que pareciam mais cheios do que eram em realidade, devido àquelas maçãs acentuadas que produziam uma graciosa concavidade das próprias faces... “Clávdia!”, pensou Hans Castorp estremecendo, e fitou o desconhecido, com a cabeça atirada para trás, num gesto de desafio e de mofa em face da grandiosidade teatral do seu aspecto; fê-lo exortando o próprio coração a que não levasse a sério o poderio de uma posse cuja segurança era posta em dúvida por certos fatos do passado; e tratava-se de fatos reais, não de coisas vagas, obscuras, acontecidas no terreno da pintura diletante, como aquelas que outrora haviam sido capazes de inquietá-lo... Mme. Chauchat também conservara aquele hábito de exibir-se sorrindo a toda a sala, antes de se sentar, como para apresentar-se à sociedade, e Peeperkorn secundava-a, deixando que Clávdia celebrasse a pequena cerimônia, enquanto ele se mantinha de pé atrás dela, antes de se instalar, a seu lado, à extremidade da mesa.
     Não houvera oportunidade para um cumprimento cortês de uma mesa para a outra. Quando da “cerimônia de apresentação”, os olhos de Clávdia tinham vagueado para além da pessoa de Hans Castorp e da parte da sala onde ele se achava, em busca de regiões mais distantes. O encontro seguinte no refeitório dera-se da mesma forma, e quanto mais refeições se realizavam, sem que os seus olhares se cruzassem de outro modo a não ser num resvalo cego e indiferente da parte de Mme. Chauchat, tanto menos indicado parecia aquele cumprimento cortês. Durante a breve reunião noturna, os companheiros de viagem mantinham-se na saleta. Juntos ocupavam o sofá, rodeados pelos comensais. Peeperkorn, cujo rosto majestoso, intensamente avermelhado, se destacava do alto dos cabelos e do cavanhaque, esvaziava a garrafa de vinho tinto que lhe fora servida no jantar. Pois em cada refeição principal emborcava uma garrafa, às vezes até uma e meia ou duas, sem falar do “pão” que já vinha acompanhando o café da manhã. Evidentemente, o homem majestoso tinha extraordinária necessidade de se regalar. Para o mesmo fim usava várias vezes por dia um café extremamente forte, que tomava numa xícara grande, não somente de manhã, mas também por ocasião do almoço, e não depois da refeição, senão durante a mesma e ao mesmo tempo que o vinho. Ambas essas coisas – conforme Hans Castorp ouviu o holandês explicar – eram boas contra a febre, além do seu efeito regalador; um remédio muito bom para a febre intermitente que contraíra nos trópicos, e que já no segundo dia da sua estadia o reteve na cama durante algumas horas. O conselheiro qualificava a de quarta, visto acometer o holandês de quatro em quatro dias; no começo o fazia bater os dentes, depois lhe causava um violento ardor e por fim abundante transpiração. Ao que dizia o médico, a enfermidade originara também uma congestão do baço.

continua pág 363...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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