A Montanha Mágica
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn
..
Mynheer Peeperkorn, um holandês de certa idade, esteve durante algum tempo
hospedado no Sanatório Berghof, que com muita razão usava no seu prospecto o epíteto
“internacional”. Pieter Peeperkorn – era este o seu nome, e assim falava de si próprio dizendo,
por exemplo: “E agora Pieter Peeperkorn vai se regalar com uma cachacinha” – era um holandês
colonial, nascido em Java, um plantador de café. Sua nacionalidade um tanto desbotada mal
bastaria por si só para nos decidir a introduzi-lo à última hora na nossa história. Pois, meu Deus,
quanta variedade de cores e matizes não existia na sociedade do renomado instituto que o
Conselheiro Dr. Behrens, com sua facúncia poliglota, dirigia como médico! Recentemente
chegara até uma princesa egípcia – a mesma que em outra ocasião oferecera ao conselheiro aquele
notável aparelho de café e os cigarros adornados com uma esfinge; era uma personagem
sensacional, com os dedos amarelos de nicotina e enfeitados de anéis, que usava o cabelo curto e,
exceção feita às refeições principais em que ostentava toaletes de Paris, trajava paletó e calças
bem frisadas. De resto não se interessava pelo mundo masculino e concedia seus favores
mesclados de displicência e de paixão, com exclusividade, a uma judia rumena, que se chamava
simplesmente Landauer; isso embora o Promotor Paravant tivesse abandonado as matemáticas,
para dedicar-se a Sua Alteza, e se conduzisse feito um idiota de tanto amor. Mas, como se a
presença da princesa não fosse suficiente, achava-se no seu séquito um eunuco negro, homem
doente e débil, que, não obstante seu defeito básico, do qual Karoline Stöhr gostava de zombar,
parecia amar a vida mais do que ninguém e se mostrava inconsolável em face da imagem que a
radiografia exibia do seu interior, depois de ter lançado luz sobre a sua negrura...
Comparado com tais figuras, Mynheer Peeperkorn poderia aparecer como que
desprovido de cores. E posto que essa parte da nossa narração pudesse, tal e qual outra, anterior,
ser intitulada “Mais alguém”, não há motivos para recear que entre em cena uma nova fonte de
perturbações espirituais e pedagógicas. Não, Mynheer Peeperkorn absolutamente não era talhado
para criar no mundo confusões lógicas. Como veremos, era homem muito diferente. Que, apesar
disso, a sua pessoa tenha perturbado gravemente o nosso herói, explica-se pelo que se segue.
Mynheer Peeperkorn chegou à estação da “aldeia” no mesmo trem noturno que trouxe
Mme. Chauchat, e dirigiu-se no mesmo trenó que ela ao Sanatório Berghof, em cujo restaurante
jantaram juntos. Tratava-se, em suma, não somente de uma chegada simultânea, mas também de
uma chegada em comum, e esse caráter comum, que continuava manifestando-se, por exemplo,
no fato de Mynheer receber um lugar à mesa dos “russos distintos”, ao lado da recém-vinda, em
frente ao lugar do médico, ali onde outrora o Professor Popov se conduzira daquele modo
desenfreado e equívoco – esse caráter comum deixava perplexo o bom Hans Castorp, que não
previra pudessem os acontecimentos tomar esse rumo. O conselheiro anunciara-lhe à sua
maneira o dia e a hora do regresso de Clávdia: – Pois então, Castorp, meu velho, a fidelidade na
espera será recompensada. Depois de amanhã, à noite, a gatinha estará de volta. Recebi um
telegrama. – Mas nas suas palavras nada transparecera de que Mme. Chauchat não chegaria
sozinha, talvez porque o próprio Behrens ignorasse que ela e Peeperkorn viriam juntos e
formavam um par. Pelo menos fingiu-se surpreendido, quando Hans Castorp, no dia seguinte à
chegada em comum, pediu-lhe, por assim dizer, satisfações.
– Eu também não sei dizer onde ela arranjou este – declarou. – Devem ter-se conhecido
na viagem, lá nos Pireneus, suponho eu. Pois é, meu pobre e desiludido Celadon, por enquanto o
senhor terá de se conformar com ele. Não há remédio. São amicíssimos; compreende? Parece que
até existe comunhão de bens. O homem é imensamente rico, segundo ouvi dizer. Um rei do café,
aposentado, sabe? Tem criado malaio. Estilo de vida opulento. Não veio, aliás, para se divertir.
Além de um forte catarro com base alcoólica, sofre evidentemente de uma febre maligna que
contraiu nos trópicos. Uma febre intermitente, compreende? Doença mal tratada e pertinaz. É
necessário que o senhor se arme de paciência.
– Pois não – disse Hans Castorp, condescendentemente. “E tu?”, acrescentou de si para
si. “Como te sentes? Afinal de contas não estás completamente desinteressado. Se não me
engano muito, houve lá qualquer coisa no passado, com um viúvo de faces azuladas, que sabia
pintar convincentemente a óleo. Acho que tuas palavras revelam certa alegria maliciosa, e
contudo somos, em certo sentido, companheiros de infortúnio no que se refere a Peeperkorn.” –
Um tipo curioso e decididamente uma personalidade original – prosseguiu em voz alta, com um
gesto displicente. – É robusto e delicado, eis a impressão que se tem dele, ou pelo menos a que
eu tive hoje, quando tomamos o café da manhã. Robusto e ao mesmo tempo delicado. São esses
os adjetivos que o caracterizam, segundo a minha opinião, se bem que normalmente sejam
considerados contraditórios. Ele é alto e espadaúdo, isso sim, e gosta de ficar de pé, com as
pernas abertas e as mãos enterradas nos bolsos da calça, que são verticais... Achei necessário
mencionar que nas calças dele os bolsos afundam verticalmente e não se encontram aos lados,
como nas minhas, nas do senhor e nas da maioria das pessoas pertencentes às classes superiores
da sociedade... E quando ele se mantém nessa posição e fala guturalmente, à maneira dos
holandeses, não há como negar que tem aspecto robusto. Mas seu cavanhaque é ralo; embora
comprido, é tão ralo que bem se poderia contar-lhe os fios. Também os olhos são pequenos,
apagados e quase sem cor. Que se pode fazer? Não lhe adianta arregalá-los constantemente; com
isso só cria rugas pronunciadas na testa, que lhe sobem pelas têmporas e atravessam em sentido
horizontal a fronte, essa fronte alta e vermelha, emoldurada por cabelos brancos, que são
igualmente compridos e ralos. Mesmo que os arregale assim, os olhos continuam pequenos e
apagados. E o colete de peito alto lhe imprime um cunho de clérigo, apesar da sobrecasaca
xadrez. Bem, é essa a impressão que tive hoje de manha.
– Estou vendo que o senhor o examinou atentamente – respondeu Behrens. – Estudou o
homem em todas as suas particularidades, o que me parece muito acertado, uma vez que o
senhor terá de habituar-se à sua existência.
– Pois é, devemos habituar-nos – disse Hans Castorp.
Deixamos a seu cargo a descrição aproximada da figura do novo e inesperado hóspede, e
ele não se desincumbiu mal da sua tarefa. Nós mesmos, provavelmente, não teríamos obtido
melhor resultado. Verdade é que seu posto de observação era sumamente favorável. Como
sabemos, Hans Castorp avizinhara-se, durante a ausência de Clávdia, da mesa dos “russos
distintos”; visto a sua ficar paralela à outra, que apenas avançava um pouco mais em direção à
porta do avarandado, e visto Hans Castorp tanto como Peeperkorn ocuparem as pontas dirigidas
para o interior da sala, achavam-se, por assim dizer, colocados lado a lado, o nosso herói um
pouco atrás do holandês, o que facilitava uma inspeção discreta, enquanto enxergava
obliquamente diante de si o rosto de Mme. Chauchat a três quartos. Para completar o talentoso
esboço de Hans Castorp, poderíamos acrescentar que Peeperkorn tinha o bigode raspado, o nariz
grande e carnudo, e a boca igualmente grande, com os lábios irregulares, como que gretados.
Apesar de as mãos serem bastante largas, as unhas eram compridas e pontudas. Quando
Peeperkorn falava – o que fazia quase sem cessar, embora Hans Castorp não conseguisse
entender claramente o conteúdo das suas palavras –, servia-se dessas mãos para gestos elegantes,
que mantinham os ouvintes em suspenso, esses gestos delicadamente matizados, esmerados,
precisos e nítidos que revelam a cultura de um diretor de orquestra; curvava então o dedo
indicador, para que formasse um círculo com o polegar, ou estendia a mão espalmada – larga,
mas de unhas pontudas – num movimento protetor, tranquilizante, que exigia atenção. Contudo,
a atenção sorridente que ele conquistava era logo transformada em decepção pela vagueza das
exposições tão intensamente preparadas. Ou melhor: não era transformada em decepção, mas em
uma alegre surpresa, pois o vigor, a fineza, a ênfase dos preparativos não somente substituíam
com perfeição, e ainda posteriormente, aquilo que faltava, mas eram em si satisfatórios,
interessantes e mesmo preciosos. Às vezes nem sequer chegava a pronunciar palavras. Acontecia
lhe pôr suavemente a mão sobre o antebraço de seu vizinho da esquerda, um jovem sábio
búlgaro, ou de Mme. Chauchat, à sua direita; depois erguia a mesma mão obliquamente,
reclamando silêncio e curiosidade para o que desejava dizer; franzia então as sobrancelhas a tal
ponto que as rugas que desciam em ângulo reto da testa para as comissuras exteriores dos olhos
se aprofundavam como numa máscara, e baixava o olhar sobre a toalha, ao lado da pessoa assim
agarrada, enquanto os lábios grandes e gretados pareciam dispostos a formular qualquer coisa
altamente importante. Alguns instantes após, porém, afrouxava a respiração e renunciava a falar,
dando, por assim dizer, o comando “Descansar armas!” Sem ter proferido palavra alguma,
tornava a ocupar-se com o seu café, que mandava fazer especialmente forte, e que lhe serviam na
sua própria cafeteira. Depois de ter bebido, procedia da seguinte maneira: com um gesto de mão
coibia a conversa, obtendo silêncio, assim como um regente faz calar a confusão dos
instrumentos que estão sendo afinados e procura, por meio de um mando imperioso, concentrar
a orquestra, a fim de começar uma peça. Sua cabeça grande, rodeada de labaredas de cabelos
brancos, com os olhos sem cor definida, as poderosas rugas da fronte, o comprido cavanhaque e
a boca desnuda e dolorida, eram indiscutivelmente impressionantes, de modo que todos
costumavam obedecer-lhe ao gesto. Os comensais emudeciam, olhavam-no sorrindo, esperando,
e aqui ou ali havia quem lhe desse um sinal alentador. E Peeperkorn dizia numa voz bastante
abafada:
– Senhoras e senhores. Muito bem. Tudo vai bem. Queiram, no entanto, observar e não
perder de vista em nenhum momento, que... Nada mais sobre este ponto... O que me cumpre
declarar não é aquilo, mas principal e exclusivamente o seguinte: temos o dever... É de uma
forma inelutável... Repito e faço questão de usar essa expressão: é de uma forma inelutável que se
reivindica de nós... Não, senhoras e senhores, não! Esse não é o sentido... Não me interpretem
como se eu... Que erro grave não seria pensar que... Basta, senhoras e senhores! Basta
amplamente! Sei que estamos de acordo sobre todas essas questões, e por isso entremos no
assunto!
Não dissera nada, mas a majestade da sua cabeça parecia tão indiscutível, o jogo de
fisionomia e a gesticulação eram de tal modo enérgicos, imponentes, expressivos, que todos,
inclusive Hans Castorp, empenhado em escutar, criam ter ouvido algo de grande peso, ou, se é
que se davam conta de que o discurso carecia por completo de conteúdo e de coerência, não se
ressentiam dessa falta. Seria interessante saber qual teria sido a reação de um surdo. Talvez ele se
afligisse, porque a apresentação o faria tirar conclusões erradas quanto à alocução apresentada, e
porque imaginaria perder, devido à surdez, uma informação valiosa. Tal gente é propensa à
desconfiança e à amargura. Mas havia à outra extremidade da mesa um jovem chinês, que ainda
não chegara a adquirir bons conhecimentos de alemão. Em certa ocasião, esse moço acabava de
ver e de ouvir um desses discursos, sem compreendê-lo, e manifestou alegre satisfação
exclamando “Very well!” e batendo palmas.
E Mynheer Peeperkorn “entrou no assunto”. Empertigou-se, dilatou o largo peito,
abotoou a sobrecasaca xadrez por cima do colete de gola alta. Sua cabeça branca, nesse
momento, lembrava um rei. Com um aceno chamou uma criada – era a anã – e esta, embora
atarefadíssima, atendeu imediatamente ao sinal peremptório. Com o jarro de leite e o bule de café
nas mãos, colocou-se ao lado da sua cadeira. Também ela não pôde deixar de fazer um gesto
alentador, enquanto no rosto grande de velhota lhe aflorava um sorriso. Parecia toda atenção,
como que imobilizada pelo olhar apagado que Peeperkorn lhe lançava de sob as poderosas rugas
da testa, e por sua mão erguida, cujo indicador se reunia com o polegar, para formar um círculo,
ao passo que os três outros dedos se esticavam para o alto, dominados pelas pontas de lança das
unhas.
– Minha filha! – disse ele. – Bem. Por enquanto tudo vai bem. Você é pequena. Não há
de ser nada. Pelo contrário. Vejo nisso uma vantagem e dou graças a Deus por você ser assim
como é, e devido à sua baixa altura que é tão característica... Pois então! O que desejo da sua
parte também é pequeno, pequenino, e característico. Antes de tudo, como se chama?
– Ótimo! – exclamou Peeperkorn, recostando-se à cadeira e estendendo o braço em
direção à anã. Dera à exclamação um tom de quem pretende dizer: “Por que se preocupa? Tudo
vai às mil maravilhas”. – Minha filha – prosseguiu então, seriamente e quase com severidade. –
Isso ultrapassa todas as minhas expectativas. Emerentia... Você pronunciou este nome com
modéstia, mas ele, unido à sua pessoa... Numa palavra, isso abre as mais belas perspectivas. Vale a
pena deter-se e concentrar tudo quanto o peito contém de sentimento, para que... Acho que você
me entende, minha filha... Na forma familiar e abreviada pode-se dizer Rentia, mas também
Emezinha soa simpático. No momento não hesito em escolher Emezinha. Muito bem,
Emezinha, minha filha, preste atenção: quero um pouco de pão, minha querida. Pare! Não se
afaste! Que não se insinue na nossa conversa nenhum mal-entendido! Percebo na sua cara
relativamente grande que esse perigo... Pão, Rentinha, mas não pão assado. Este se acha aqui em
abundância, e dos mais diversos tipos. Desejo o pão de Deus, meu anjo, pão destilado, pão
transparente, minha pequena forma carinhosa, a fim de me regalar com ele. Não tenho certeza se
o sentido dessa palavra lhe... Estou disposto a substituí-la por “tônico do coração”, não surgisse
com isso o novo perigo de me ver interpretado com a leviandade habitual... Basta, Rentia, Basta!
Liquidado! Prefiro, consciente dos nossos deveres e das nossas obrigações sagradas... Inclusive,
por exemplo, o dever moral de me regozijar cordialmente da sua característica estatura... Uma
genebrinha, querida! Regozijar-me, era isso que eu queria dizer. Genebra de Schiedam,
Emerentinha! Apresse-se e me traga uma.
– Uma genebra genuína – repetiu a anã e deu meia-volta, na intenção de se desembaraçar
do bule e do jarro. Finalmente depositou-os na mesa de Hans Castorp, ao lado do seu talher,
evidentemente para não incomodar o Sr. Peeperkorn. Foi-se correndo, e sem demora o hóspede
recebeu a bebida desejada. O cálice estava tão cheio que o “pão” se derramava por todos os lados
e molhava o prato. O holandês pegou-o entre o polegar e o dedo médio e ergueu-o contra a luz. – Feito isso – declarou –, Pieter Peeperkorn vai se regalar com uma cachacinha. – E engoliu o
trigo destilado, depois de o mastigar rapidamente. – E agora – acrescentou – contemplo todo o
mundo com os olhos reconfortados. – Em seguida pegou da mão de Mme. Chauchat, que estava
na mesa, levou-a aos lábios e recolocou-a sobre a toalha, mantendo-a ainda durante alguns
instantes na sua.
Um homem singular, uma personalidade vigorosa, se bem que pouco clara. A sociedade
do Berghof interessava-se vivamente por ele. Diziam que acabava de retirar-se dos negócios
coloniais, depois de ter enriquecido bastante. Falavam da sua esplêndida casa em Haia e da sua
vila em Scheveningue. A Srª. Stöhr qualificou-o de “magnete de dinheiro” – a infeliz queria dizer
“magnata” – e aludiu a um colar de pérolas que Mme. Chauchat, desde a sua volta, usava com o
vestido de gala, e que, segundo a opinião de Dona Karoline, dificilmente podia ser considerado
como sinal da galanteria de um marido caucasiano, senão que devia ter a sua origem na
“comunhão de bens”. Ao dizer isso, piscou um olho e fez um gesto na direção do seu vizinho
Hans Castorp, baixando os cantos da boca, numa paródia de pesar. Nem a enfermidade nem o
sofrimento haviam contribuído para refinar a Srª. Stöhr, de modo que ela se aproveitou da
situação incômoda do nosso herói para seus escárnios brutais. Hans Castorp não perdeu a linha.
Corrigiu-lhe até com certa graça o lapso a que a induzira a ignorância. Ela acabava de confundir
duas palavras – explicou –, queria dizer “magnata de dinheiro”. Mas o termo “magnete” também
não estava mal escolhido, uma vez que Peeperkorn, evidentemente, possuía grande força de
atração. Também respondeu com bem fingida indiferença à professora, Srta. Engelhart, quando
esta, com um sorriso amarelo e sem o encarar, perguntou-lhe que tal ele achava o novo hóspede.
Mynheer Peeperkorn, replicou, era uma personalidade esfumada. Personalidade, sem dúvida, mas
esfumada. E essa classificação precisa documentava a sua objetividade tanto como a calma do seu
espírito e desconcertava por completo a professora. E quanto a Ferdinand Wehsal e à sua indireta
relativa às circunstâncias inesperadas em que voltara Mme. Chauchat, Hans Castorp demonstrou
lhe que existem olhares cuja clareza inequívoca nada fica devendo às palavras mais nitidamente
articuladas. “Miserável!”, dizia o olhar com que mediu de alto a baixo o homem de Mannheim;
dizia-o, excluindo qualquer interpretação levissimamente ambígua, e Wehsal compreendeu esse
olhar, engoliu-o e até o aprovou, meneando a. cabeça e exibindo os dentes cariados. Mas, a partir
desse incidente, desistiu de carregar o sobretudo de Hans Castorp nos passeios que faziam em
companhia de Naphta, Settembrini e Ferge.
“Vá lá que seja!”, pensou Hans Castorp. “Posso carregá-lo sozinho. Até prefiro fazê-lo, e
era pura amabilidade minha entregá-lo de vez em quando a esse coitado.” Mas ninguém de nós
pode enganar-se quanto ao fato de Hans Castorp sentir-se ferido por aquelas circunstâncias
totalmente imprevistas, que aniquilavam todos os preparativos íntimos que fizera para a ocasião
do reencontro com o objeto das suas aventuras carnavalescas. Ou melhor: que os tornavam
supérfluos, e era isso o que mais o humilhava.
Seus propósitos haviam sido os mais delicados e sensatos. Longe dele pensar num
procedimento precipitado ou importuno. Nunca tivera a intenção de ir esperar Clávdia na
estação. Ainda bem que jamais tivesse ventilado tal idéia! Em todo caso ficara na dúvida se essa
mulher, à qual a doença outorgava tamanha liberdade, julgaria verdadeiros os fantásticos
acontecimentos de uma remota noite de carnaval, cheia de sonhos, de máscaras e de conversas
em língua estrangeira, ou, ainda, se ela desejaria que isso fosse recordado de um modo direto.
Não, nada de petulâncias, nada de reivindicações impertinentes. E mesmo admitindo que as suas
relações com a enferma dos olhos oblíquos houvessem ultrapassado, pela sua natureza, os limites
traçados pela razão e pelas convenções ocidentais, cumpria observar, quanto às formas, a mais
perfeita civilidade e, por enquanto, até a ficção do esquecimento. Um cumprimento cortês de
uma mesa para a outra, e nada mais, no momento!. Mais tarde aproveitaria uma oportunidade
para se aproximar com toda a discrição e para perguntar, incidentalmente, como a viajante tinha
passado desde aquele dia... O verdadeiro reencontro poderia produzir-se numa ocasião oportuna
e trazer consigo a recompensa dessa coibição cavalheiresca.
Mas, como já dissemos, toda essa delicadeza parecia vã nesse instante, já que deixara de
ser o resultado de uma escolha livre e por isso não tinha méritos. A presença de Mynheer
Peeperkorn excluía de uma forma mais que completa a possibilidade de uma tática que não
consistisse em extrema reserva. Na noite da chegada, Hans Castorp tinha observado, da sacada,
como o trenó subira em marcha lenta pela curva da rampa. Na boleia achava-se o criado malaio,
um homenzinho amarelado com um chapéu-coco e com uma gola de peles no sobretudo. No
assento de trás, ao lado de Clávdia, instalara-se o homem estranho, com o chapéu puxado sobre
os olhos. Naquela noite, Hans Castorp dormira muito pouco. No outro dia, não tivera grande
dificuldade em saber o nome desse desconcertante companheiro de viagem, e como brinde lhe
haviam dado a notícia de que ambos acabavam de ocupar uns aposentos luxuosos e vizinhos no
primeiro andar. Viera então o café da manhã. Hans Castorp encaminhara-se bem cedo ao seu
lugar e, muito pálido, esperara pelo momento em que a porta envidraçada se fechasse com
estrondo. Mas isso não se realizara. A entrada de Clávdia decorrera sem ruído nenhum, pois atrás
dela Mynheer Peeperkorn tinha fechado a porta. Alto, espadaúdo, com a fronte ampla e com as
labaredas brancas em torno do crânio imponente, ia seguindo os passos da companheira de
viagem, que, no seu costumeiro andar felino, avançando a cabeça, se aproximava da sua mesa.
Sim, era ela; não mudara em nada! Contra os seus propósitos, esquecido de tudo, Hans Castorp
devorava-a com os olhos tresnoitados. Reencontrava o cabelo ruivo, penteado sem muita arte e
enrolado, numa trança simples, em volta da cabeça; revia os “olhos de lobo de estepe”, a curva da
nuca, os lábios que pareciam mais cheios do que eram em realidade, devido àquelas maçãs
acentuadas que produziam uma graciosa concavidade das próprias faces... “Clávdia!”, pensou
Hans Castorp estremecendo, e fitou o desconhecido, com a cabeça atirada para trás, num gesto
de desafio e de mofa em face da grandiosidade teatral do seu aspecto; fê-lo exortando o próprio
coração a que não levasse a sério o poderio de uma posse cuja segurança era posta em dúvida por
certos fatos do passado; e tratava-se de fatos reais, não de coisas vagas, obscuras, acontecidas no
terreno da pintura diletante, como aquelas que outrora haviam sido capazes de inquietá-lo...
Mme. Chauchat também conservara aquele hábito de exibir-se sorrindo a toda a sala, antes de se
sentar, como para apresentar-se à sociedade, e Peeperkorn secundava-a, deixando que Clávdia
celebrasse a pequena cerimônia, enquanto ele se mantinha de pé atrás dela, antes de se instalar, a
seu lado, à extremidade da mesa.
Não houvera oportunidade para um cumprimento cortês de uma mesa para a outra.
Quando da “cerimônia de apresentação”, os olhos de Clávdia tinham vagueado para além da
pessoa de Hans Castorp e da parte da sala onde ele se achava, em busca de regiões mais distantes.
O encontro seguinte no refeitório dera-se da mesma forma, e quanto mais refeições se
realizavam, sem que os seus olhares se cruzassem de outro modo a não ser num resvalo cego e
indiferente da parte de Mme. Chauchat, tanto menos indicado parecia aquele cumprimento
cortês. Durante a breve reunião noturna, os companheiros de viagem mantinham-se na saleta.
Juntos ocupavam o sofá, rodeados pelos comensais. Peeperkorn, cujo rosto majestoso,
intensamente avermelhado, se destacava do alto dos cabelos e do cavanhaque, esvaziava a garrafa
de vinho tinto que lhe fora servida no jantar. Pois em cada refeição principal emborcava uma
garrafa, às vezes até uma e meia ou duas, sem falar do “pão” que já vinha acompanhando o café
da manhã. Evidentemente, o homem majestoso tinha extraordinária necessidade de se regalar.
Para o mesmo fim usava várias vezes por dia um café extremamente forte, que tomava numa
xícara grande, não somente de manhã, mas também por ocasião do almoço, e não depois da
refeição, senão durante a mesma e ao mesmo tempo que o vinho. Ambas essas coisas –
conforme Hans Castorp ouviu o holandês explicar – eram boas contra a febre, além do seu efeito
regalador; um remédio muito bom para a febre intermitente que contraíra nos trópicos, e que já
no segundo dia da sua estadia o reteve na cama durante algumas horas. O conselheiro qualificava
a de quarta, visto acometer o holandês de quatro em quatro dias; no começo o fazia bater os
dentes, depois lhe causava um violento ardor e por fim abundante transpiração. Ao que dizia o
médico, a enfermidade originara também uma congestão do baço.
continua pág 363...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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