baitasar
discurso pé-d’água sem nenhum planejamento, completo improviso, correndo os riscos da falta de clareza, confusão nas ideias e dificuldade de entendimento para a turma – os docentes, razão de existir da escola, e no caso da vila, razão de existir e resistir... a Escola Pública com qualidade e amorosidade, libertem-se e me libertem, crianças! –, provocando mal-entendidos, incompreensões didáticas
Professor, eu já fui no zoológico.
Com quem, Caroline?
Com meu pai e a minha mãe...
E você gostou?
Eu fiquei com pena deles, são tão tristes.
a beleza e a sensibilidade das respostas das crianças, não serve para nada uma escola que não se deixa levar pela observação das suas crianças
É... eu entendo, Caroline. A ideia do zoológico, mesmo sendo bem-intencionada, nunca vai ser suficiente para copiar a liberdade na natureza.
É como estar preso no zoológico, né professor?
é isso, os zoológicos mesmo com boas intenções de conservação e educação, realmente nunca poderão substituir a liberdade que os animais têm na natureza, eles podem proporcionar segurança e proteção contra ameaças humanas, mas não substituem o ambiente natural, a complexidade dos ecossistemas ou a liberdade de explorar e viver de acordo com seus instintos, a verdadeira liberdade para eles
Eu também já fui no zoológico e os animais vivem soltos. Não estão amarrados.
Muito bem, estou gostando dessa nossa conversa. Como é o teu nome, querida?
Ana...
Então, Ana. O que a Caroline disse é que os animais do zoológico vivem soltos como você disse, mas não podem sair de um lugar para outro. Não podem visitar outros animais diferentes deles. Não é como se estivessem livres na natureza.
enquanto conversamos, faço uma varredura com o olhar pela sala, a maioria das crianças em silêncio, percebo que escutam com respeito às opiniões e emoções que estão surgindo, quero acreditar que estão construindo seu entendimento do mundo, percebem seus colegas mais falantes se sentindo valorizados e confiantes
Eu nunca fui no zoológico.
Nem eu...
Eu tenho pena...
É, eu sei, Ana. Mas é um refúgio seguro para os animais ameaçados.
Mas eles vivem presos.
Sim. É verdade, mas alguns foram tão caçados e maltratados pelos homens maus que colocamos esses animais no zoológico para não serem mortos.
Professor, em vez dos animais deveriam colocar no zoológicos esses homens maus.
Professor...
Fala, Graziela.
O meu pai também tá preso, perco minha naturalidade, nenhuma preparação prévia, o pensamento rápido congela, Também sinto pena dele. Meu pai diz que sente muita saudade. Os animais sentem saudade, também?, fico em silêncio, ela continua, não percebe meu embaraço, minha incapacidade de me reinventar, ela continua, Acho que devem sentir saudade.
não estou preparado para sustentar essa conversa, nenhum discurso ou gesto me ocorre para lidar com esse momento de maneira saudável, preciso reconhecer meu limite, respiro fundo e silenciosamente, é isso, nenhum prática pedagógica é neutra, todas estão apoiadas no modo de perceber o mundo e interferir no mundo, a diferença entre escrever e desenhar letras
Voltei! Demorei, professor?
o Felipe entra feito uma ventania, a pausa que eu preciso, ele me socorre sem saber, sinto vontade de abençoá-lo com um elogio – afinal, elogio de professor é sempre uma benção bem-vinda, né? –, mas não é o que faço, recorro aos velhos hábitos repetitivos, Já estava indo ver onde o moço estava. Vai pro teu lugar.
olha direto para mim, abre a boca e desiste de dizer o que quer que fosse, comum e profundamente humano esse receio de se expressar por completo, ensaio sutil e inaudível, existe um pensamento ou uma emoção deixada de lado, guardada na desistência, motivada pelo medo de não ser compreendido, causar conflito – acho que não é o caso, estou sendo cínico, né? –, ou parecer delicado e frágil, ou simplesmente por achar que não vale a pena, seja lá o que for
claro que esse silêncio não significa que o que seria dito perdeu o valor, mas permanece o peso cumulativo da frustração que amontoa, provoca mal-entendidos ou uma solidão emocional, não encontra espaço seguro para se abrir, dizer o que está sentindo e ser escutado com interesse
ensaiar e calar, que palavras interessantes foram deixadas de serem ditas se não tivesse ficado no deixa pra lá
Professor, o que é veterinário?
Tem girafa no circo?
aprendia longe das bolas, jogos e brincadeiras sobre o acúmulo silencioso das inquietações internas, dúvidas, dilemas, sentimentos não resolvidos, agora, na sala de aula, como se houvesse um espaço dentro de cada ser humano, jovem ou velho, imberbe ou longevo, onde perguntas se acumulam, esperando por atenção, compreensão ou coragem para serem enfrentadas
entre tantas tarefas é preciso ficar atento na essência do silêncio, na tempestade das conversas, buscar a verdade da nossa eternidade, guiar estrelas a brilhar, revelar destinos desenfeitados e embelezá-los, vigilantes de si mesmos, atentos ao coração, desvendando sonhos e emoções, a jornada do existir é um aprendizado coletivo e solidário, um caminho sagrado, contagiante, festivo, seja na dor ou na alegria, atentos ao que nos move, nossos sentimentos, a luz que mora em cada pessoa, a verdade que nos conduz às perguntas sobre o sentido da vida, decisões passadas, futuro, sobre quem somos ou o que sentimos, não existem respostas fáceis
no deixa pra lá, tudo se avoluma dando uma ideia de peso, pressão interna, mais perguntas, mais ansiedade, confusão, paralisia ou gritos – Chega! Silêncio! –, adiando sem esquecer, latentes, perguntas pedindo escuta e reflexão
estamos constrangidos a ensinar no automático e desistir de educar, uma função mecânica focada apenas na transmissão de informações e habilidades superficiais, sem espaço ou disposição para enfrentar e sofrer com questões mais profundas, é um salve-se quem puder, uma rotina vazia que não alimenta o outro nem a nós mesmos, uma conexão que não vai além do conteúdo, evita os desafios mais profundos do viver
parece que nestes dias de fast food, basta mastigar e engolir, rápido e funcional, não estamos interessados no aroma, textura e sabor, estamos nos consumindo sem reflexão, desistimos – ou fomos nos deixando convencer – do aroma e paladar de viver momentos, emoções, detalhes, a profundidade de existir, estamos distantes da essência, o aprendizado pela contemplação, a reflexão sobre o valor do tempo, que o significado ganhe espaço com autenticidade
português e matemática não nos sustentam nem preenchem – adoro português, matemática nem tanto, mas reconheço e aprecio seus valores entre outros tantos que foram deixados de lado –, são usados para nos manterem sem vigor e arrumação para lidarmos com nossas questões mais profundas, ignorar perguntas não as apaga, apenas adia o convite para pararmos, ouvirmos e refletirmos
Professor...
Calma, crianças!
estou diante de um desafio real, preciso organizar meus pensamentos e meu material – não tenho material, apenas a gravura de uma girafa, eventualmente, poderei usar bolas, cordas e jogos –, preciso estabelecer prioridades, focando no que é mais importante no momento – a girafa! –, evitar a multitarefa, uma coisa de cada vez, vinte e cinco crianças juntas, e ao mesmo tempo, continuar atento às perguntas, ao silêncio, evitar minhas distrações – como se fosse possível
O que faço com essa girafa?
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