domingo, 23 de setembro de 2018

Gente Pobre - 31. os lamentos dos esfomeados - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


31.




5 de setembro



Minha querida Bárbara:

Hoje, meu anjo, experimentei várias impressões. Doeu-me a cabeça durante todo o dia, e ao cair da tarde resolvi ir tomar um pouco de ar fresco junto do canal de Fontanka, a ver se melhorava. O tempo estava húmido e cinzento. Como sabe, agora, por volta das seis horas é noite. Não chovia, mas caía um frio orvalho que é ainda mais desagradável do que propriamente a chuva, e as nuvens formavam no firmamento compridas e largas manchas. Andava muita gente pelo cais, mas só distingui rostos claros, horríveis, caras capazes de pôr triste uma pessoa: mujiques bêbedos; finlandesas de narizes encarnados, com botas de homem e o cabelo despenteado; operários e cocheiros — gente de todas as idades —, aprendizes de serralheiro de blusa com nódoas, entre eles um rapazito magrinho e pálido, moreno e besuntado de óleo, levando na mão uma fechadura; um soldado reformado, de elevada estatura, que oferecia aos transeuntes navalhas e anéis de cobre, por baixo preço..., etc., etc. A tal hora não podia encontrar-se outro género de passeantes por aquele local? 

O Fontanka é um canal largo e com grande profundidade, que permite a navegação, e veem-se ali barcos em tal número, que parece impossível caberem lá tantos... Pois, ao fim e ao cabo, não passa de um canal, não é um rio. Ao longo do cais encontravam-se mulheres sentadas, velhas e sujas, que vendiam bolos molhados e maçãs quase podres. Resumindo, o Fontanka é um local muito triste para passeio. O pavimento, de granito, está húmido. Assim, por baixo, os pés enterram-se na neblina, e sobre a cabeça cai neblina também. As casas são altas e escuras... Que triste e aborrecida decorreu esta tarde! 

Ao chegar à rua de Gorochovaya era noite fechada e já se encontravam acesas as luzes. Havia muito tempo que não passava por ali, e melhor fora que não tivesse lá posto boje os pés. Que rua larga e populosa! Tantas lojas, tantas montras!.. Tudo muito iluminado e brilhante... Tecidos e vestidos de seda de mistura com flores e cristais... Que bonitos chapéus com fitas e laços! Dá a impressão de que tudo aquilo foi ali colocado para embelezar a rua; mas não, há homens que compram essas coisas para oferecer às suas mulheres. Esplêndida rua, não há dúvida! É ali que se situam as padarias de vários alemães... Deve tratar-se de gente de grossos cabedais. O movimento de carros é tão intenso que não sei como o pavimento pode resistir! E então é cada trem! As janelas deles parecem espelhos e são interiormente forrados a cetim e seda; e os cocheiros e lacaios, todos empertigados, envergam brilhantes uniformes agaloados! Eu olhava para todos aqueles carros ao passar, e via sempre neles senhoras sentadas, muito luxuosas e elegantes, talvez princesas ou condessas que àquela hora iam certamente a algum baile, jantar ou serão. Ainda gostava de ver, ao pé, uma dessas grandes damas da alta sociedade. Sim, deve ser uma coisa muito agradável. Nunca tive esse prazer; contento-me com vê-las através dos vidros e de passagem, como agora sucedeu. O que me lembrei hoje de si, querida Bárbara! Minha pomba, meu anjo, valerá porventura menos do que elas? Não; a Bárbara é boa, bonita e instruída! Porque a persegue tanto o infortúnio? Que triste quinhão lhe reservou a sorte! Porque será que o homem de bem tem de viver pobre e miserável, enquanto a felicidade vai ter com os outros sem que a procurem? Bem sei, bem sei, meu amor, que não devo pensar assim; isso chama-se livre-pensamento. Mas a verdade é que — isto falando com sinceridade e franqueza —, ao cabo de muito refletir sobre a justiça das coisas, não chego a compreender como é que uns ainda no ventre da mãe estão destinados a serem felizes por toda a vida, ao passo que outros são atirados para a Roda e só conhecem tribulações durante todo o tempo que se demoram por este mundo de Cristo! E, entretanto, a vida é isto, e às vezes até qualquer imbecil Ivanuchka é protegido pela sorte. 

«Tu, imbecil Ivanuchka — diz o Destino —, tira quanto puderes do bolso de teu pai; come, bebe e diverte-te. Mas tu, e tu, e tu, fazei boca, que não fostes julgados merecedores de melhor sorte!» 

É pecado, meu amor, bem sei que é pecado pensar assim; mas à força de tanto refletir, os pecados invadem-nos a alma, involuntariamente. Com efeito, meu anjo, porque não havemos de passear também de carruagem? Tenho a certeza, de que até generais e altos funcionários do Estado disputariam a graça de um olhar dos seus… não dos meus. Em vez desse vestido velho de algodão, envergaria um de seda, e no seu corpo brilhariam pedras preciosas. Não estaria, certamente, tão magra e pálida como agora, antes se apresentaria fresca, rosada e gorda como uma boneca. Poder, então, ver da rua as suas janelas iluminadas e distinguir de vez em quando a sua sombra já seria para mim verdadeira felicidade. Só de a imaginar assim feliz e contente, minha pomba, me sinto também invadido de felicidade e contentamento. Mas, agora, como se não bastasse que a maldade humana a tivesse desgraçado, surge ainda um grosseiro a insultá-la! E porque esse canalha enverga um fato de corte impecável e pode vê-la através de umas lentes de aros de ouro, apenas por isso, é-lhe permitido tudo o que lhe apetecer, enquanto a Bárbara se vê obrigada a escutar com paciência as suas palavras insolentes. Onde está, pois, a justiça? 

Sabe porque sucede isto? Porque a Bárbara é órfã; porque não tem quem a defenda; porque não tem um amigo poderoso que a ampare e a proteja. 

Mas que homem é esse, que homens são esses que não têm o menor pejo em ofender uma órfã? Nem homens são; são uns vadios, uns rufiões, seres desprezíveis que só juntos é que valem alguma coisa, mas sem a entreajuda da classe nada representam... Sei muito bem que é assim. Aí tem o que é essa gente. Em minha opinião, querida Bárbara, o mendigo que vi hoje na Gorochovaya é mais digno da estima dos homens do que esse canalha. Esse pobre arrastava-se por ali penosamente, a ver se arranjava meia dúzia de kopeks para prover ao seu sustento; mas, no fundo, é senhor de si mesmo e só tem de procurar que comer. Não pede, propriamente, esmola, sem mais nem menos; toca realejo sem cessar, como uma máquina a que deram corda para distrair o povo. Quer dizer, é útil à sociedade, na medida das suas posses. Sim, é um pobre mendigo, e há de sê-lo sempre, mas é, por isso mesmo, um homem honrado; está alquebrado e decrépito e passa um frio horrível, no entanto trabalha, e embora o seu trabalho não seja igual ao dos outros, o certo é que trabalha. E como este há muitos homens honrados, meu amor, muitos que, apesar de ganharem uma insignificância em relação à atividade que exercem, não precisam de se inclinar diante de ninguém, nem de saudar humildemente o próximo, nem mesmo pedir a quem quer que seja um bocado de pão por caridade. Eu sou como esse mendigo, se bem que, por natureza, totalmente diferente. Pareço-me com ele neste aspeto: também faço o que as minhas forças me permitem. Não será muito, mas é, com certeza, mais do que nada. 

Se lhe falei tanto daquele mendigo, querida Bárbara, foi porque, devido ao seu encontro, experimentei ainda maior infortúnio. Cruzaram-me pelo cérebro estranhos pensamentos que me deixaram como que entontecido, e para ver se os afugentava, parei então com os olhos postos no músico ambulante. A ouvi-lo pararam também uns cocheiros, depois uma mocinha e mais tarde uma criança muito suja. O mendigo instalara-se ao pé da janela de uma casa. Entre os circunstantes, despertou a minha atenção um rapazito de uns dez anos, que seria lindo se não fosse o aspecto doentio e faminto do seu rosto. Vestia uma simples camisita e uma espécie de calças muito finas. Naquele preparo, e para mais descalço, ali estava de boca aberta a ouvir a música. As crianças são sempre as mesmas! Tinha, segundo parecia, toda a sua atenção concentrada, com infantil assombro, nas marionetes que dançavam sobre o realejo do mendigo, enquanto, com as mãozitas e os pés arroxeados pelo frio, tremia todo e mordia a manga com os dentes... Segurava na mão um bocado de papel. Passou um senhor e atirou uma moeda ao tocador, a qual foi cair precisamente sobre a tábua onde dançavam as marionetes. Mal o pequenito ouviu o retinir, da moeda, saiu da sua abstração; olhou timidamente em redor e, julgando que fora eu quem atirara o dinheiro, aproximou-se de mim, a tiritar, estendeu-me o papel e, com voz mal segura, disse-me: «Uma esmolinha, cavalheiro!» 

Peguei no papel, desdobrei-o e li-o... Tinha os dizeres já conhecidos: «Almas caridosas, sou uma pobre mãe doente, com três criancinhas com fome... Tende compaixão de nós! Não me esquecerei dos meus benfeitores nas minhas orações, e quando for chamada à Divina Presença, pedirei a Deus por aqueles que não esqueceram os meus queridos filhos.» 

Não há que pensar, a coisa é clara e vulgar. Mas que havia eu de lhe dar? Não lhe dei nada. E contudo inspirou-me tanta compaixão! O pobre pequeno estava roxo de frio e com a cara de esfomeado; apesar disso, ninguém o socorria! 

Eu bem sei o que é isto! o que indigna é essas mães não poderem sustentar os filhos e mandarem-nos para a rua mendigar, quase nus e com um frio destes. A mãe daquele rapazito deve ser uma imbecil, que não sabe cumprir o seu dever; talvez ninguém a ajude, e ela deixa-se estar em casa sentada, sem fazer nada. Mas é possível também que esteja doente! Sim; mas, de qualquer modo, o que ela tinha a fazer era dirigir-se a uma instituição de beneficência, ou então apresentar-se à polícia, que é o que em tais casos se deve fazer. Pode, porém, tratar-se simplesmente de uma embusteira que manda para a rua uma criança esfomeada e doente para enganar o público, até que o pobre pequeno piore e acabe por ir desta para melhor. E que é que o infeliz aprende nesta vida de mendicidade? O seu coração tornar-se-á duro e cruel. Leva o dia, de manhã à noite, de um lado para outro, a pedir. Passa por ele muita gente, mas ninguém repara na sua infelicidade. Só têm para ele palavras duras e cruéis. 

«Põe-te a andar, desaparece, vadio!» — é o que ele ouve. E o coração daquela criança confrange-se, o pobre tirita, assustado, cheio de frio. Incham-lhe os pés e as mãos. Passado tempo, começa a tossir. A doença, como um verme porco e horrendo, vai-lhe roendo o peito; o insensivelmente, a morte lançar-lhe-á as suas garras e o pobrezinho cairá mortalmente ferido em qualquer cubículo imundo, sem tratamento ou assistência E assim terminará a vida! Sim, querida Bárbara, é o que sucede a muitos seres humanos. Como é doloroso, meu amor, ouvirmos estas palavras: «Pelo amor de Deus», e termos de prosseguir o nosso caminho sem darmos nada, dizendo apenas: «Deus o ajude!» 

Verdade seja que muitos «Por amor de Deus» não são motivo para compaixão. É que há várias espécies de «Por amor de Deus», querida Bárbara! Uns são de pedinchão rotineiro, em tom arrastado, salmodiante, indiferente. Esse é o mendigo de profissão, que se defende bem, graças à prática que tem da mendicidade. Se passarmos junto deste e não lhe dermos nada, não haverá nisso grande mal. Há outros, porém, que imploram a caridade em voz rude, torturada, terrível. Ao ouvirmos o apelo destes infelizes, sentimos como que um calafrio percorrer-nos as costas e as pernas... Foi precisamente o que me sucedeu hoje com o pequeno do papel. Encontrava-se junto da parede sem dizer palavra, até que, finalmente, se dirigiu a mim: «Uma esmolinha, cavalheiro, pelo amor de Deus!» — me disse ele com uma voz tão hesitante e cava que, involuntariamente, estremeci de terror. E não lhe dei a esmola porque não tinha nada que lhe dar. Há ricos que não querem ouvir os pobres queixarem-se do seu infortúnio. «São a vergonha da sociedade e uns importunos» — dizem. Dar-se-á o caso de os lamentos dos esfomeados não deixarem dormir os que estão fartos?




Continua...



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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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