sexta-feira, 1 de junho de 2018

Gente Pobre - 27. Que será de nós? - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


27.




11 de agosto



Bárbara Alexeievna, meu amor: 


Estou perdido, estamos ambos irremediavelmente perdidos... A minha reputação, a minha honra — a única fortuna que possuía — tudo se foi! E o causador da sua perdição fui eu! Todos me desprezam e escarnecem, e agora a minha patroa insulta-me em altos gritos e diante de toda a gente. Hoje discutiu comigo e dirigiu-me as piores injúrias, como se eu fosse um Zé-Ninguém! À tarde, um dos componentes da tertúlia de Ratazaiev pôs-se a ler em voz alta uma carta destinada a si e que eu não tinha terminado. Decerto caíra-me do bolso, onde a metera. O que eles se riram à custa dessa carta, meu amor! O que aqueles malandros troçaram de nós! Ao ver aquilo, não me contive; fui direito a eles e acusei Ratazaiev de desleal e de falso. Ele tornou-me que falso era eu e que me dedicava só a conquistas. Segundo Ratazaiev, eu é que os decepcionei, porquanto, ao fim e ao cabo, não passava de um Don Juan; e é por este nome que agora sou conhecido em toda a parte! Estão ao corrente de tudo o que se relaciona conosco, imagine, meu anjo! Tanto do que se refere a si como do que a mim diz respeito. Até o próprio Faldoni comunga nos mesmos princípios. Quis hoje mandá-lo à loja buscar um bocado de chouriço e ele recusou-se, declarando que não podia ir porque tinha muito que fazer.

— Contudo — disse-lhe —, tens obrigação de me obedecer.

— Ora, ora... Obrigação! — murmurou. — O senhor não paga à minha ama, por isso não sou obrigado a prestar-lhe nenhum serviço.

Eu, que não posso suportar tais ofensas vindas de um indivíduo estúpido e insolente como aquele, apostrofei-o:

— Seu animal!

E ele replicou-me, muito calmo:

— Olhe a grande coisa! Isso é o que toda a gente me chama cá na casa!

A princípio, lembrou-me que teria bebido uma pinguita a mais e dei-lhe a entender, perguntando:

— Estás bêbedo?

Ao que ele me tornou:

— Foi decerto com o dinheiro que o senhor me deu! Não tem para mandar vir um copo para si! — E resmungou a seguir: — Que grande personagem!

Já vê, querida Bárbara, a que ponto as coisas chegaram! Até sinto vergonha de viver, meu amor! Estou perdido, esta é que é a verdade! Irremediavelmente perdido!

M. D.











13 de agosto





Meu querido Makar Alexeievitch;



A desgraça persegue-nos de tal modo, que já não sei o que havemos de fazer. Que será de nós? Nem mesmo com o meu trabalho posso contar! Hoje queimei-me, com o ferro de brunir, na mão esquerda; deixei-o cair, estraguei o trabalho e queimei-me, tudo ao mesmo tempo. Por isso não posso trabalhar, e a Fédora encontra-se doente há três dias. Estou numa ansiedade verdadeiramente torturante!


Mando-lhe trinta kopeks, que representam quase toda a nossa fortuna. Só Deus sabe quanto eu gostaria de lhe valer em tão aflitiva conjuntura. Sinto-me tão triste que me apetece chorar!

Adeus, querido amigo! Se pudesse vir hoje visitar-nos, dar-me ia uma grande consolação.

B. D.






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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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