quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XVIII

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 








GLORIOSA 
                A Araújo Figueredo


Pomba! dos céus me dizes que vieste, 
Toda c’roada de astros e de rosas, 
Mas há regiões mais que essas luminosas. 
Não, tu não vens da região celeste

Há um outro esplendor em tua veste, 
Uma outra luz nas tranças primorosas, 
Outra harmonia em teu olhar – maviosas 
Cousas em ti que tu nunca tiveste.

Não, tu não vens das célicas planuras, 
Do Éden que ri e canta nas alturas 
Como essa voz que dos teus lábios tomba.

Vens de mais longe, vens doutras paragens, 
Vens doutros céus de místicas celagens, 
Sim, vens de sóis e das auroras, pomba.





O CHALÉ


É um chalé luzido e aristocrático, 
De fulgurantes, ricos arabescos, 
Janelas livres para os ares frescos, 
Galante, raro, encantador, simpático.

O sol que vibra em rubro tom prismático, 
No resplendor dos luxos principescos, 
Dá-lhe uns alegres tiques romanescos, 
Um colorido ideal silforimático.

Há um jardim de rosas singulares, 
Lírios joviais e rosas não vulgares, 
Brancas e azuis e roxas e purpúreas.

E a luz do luar caindo em brilhos vagos, 
Na placidez de adormecidos lagos 
Abre esquisitas radiações sulfúreas.





DELÍRIO DO SOM


O Boabdil mais doce que um carinho, 
O teu piano ebúrneo soluçava, 
E cada nota, amor, que ele vibrava, 
Era-me n’alma um sol desfeito em vinho.

Me parecia a música do arminho, 
O perfume do lírio que cantava, 
A estrela-d’alva que nos céus entoava 
Uma canção dulcíssima baixinho.

Incomparável, teu piano – e eu cria 
Ver-te no espaço, em fluidos de harmonia, 
Bela, serena, vaporosa e nua;

Como as visões olímpicas do Reno, 
Cantando ao ar um delicioso treno 
Vago e dolente, com uns tons de lua.




___________________________


De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



______________________

Leia também:



Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XVII

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XIX


Nenhum comentário:

Postar um comentário