sábado, 29 de setembro de 2018

Edgar Allan Poe - Contos: O Rei Peste (fim)

Edgar Allan Poe - Contos




O Rei Peste 
Título original: King Pest 
Publicado em 1835



continuando...




À vista daquela assembleia extraordinária, do seu aparato ainda mais extraordinário, os nossos dois marujos não se portaram com o decoro que se teria podido esperar deles. Legs, encostando-se à parede mais próxima, deixou cair o queixo ainda mais do que o costume e desenrolou os vastos olhos em toda a sua extensão, ao passo que Hugh Tarpaulin, baixando-se a ponto de quase pôr o nariz em cima da mesa e batendo com as mãos nos joelhos, despediu uma gargalhada estridente, ou seja, um rugido longo, ruidoso e atroador. 

Contudo, sem se escandalizar com uma conduta tão prodigiosamente grosseira, o presidente sorriu muito agradavelmente aos dois intrusos, cumprimentou-os com um movimento de cabeça cheio de dignidade, levantou-se, deu o braço a cada um e conduziu-os para os cavaletes que as outras pessoas da sociedade acabavam de instalar em sua honra. Legs não fez a mínima resistência e sentou-se onde o mandaram, mas o galante Hugh transportou o seu cavalete para o outro lado da mesa, colocou-o na vizinhança da pequena tísica da mortalha, sentou-se ao lado dela e, despejando um crânio de vinho, bebeu-o em honra de relações mais íntimas. A semelhante atrevimento, o inteiriçado gentleman do esquife pareceu imensamente furioso e isso teria podido dar lugar a sérias consequências se o presidente, batendo com o seu cetro em cima da mesa, não tivesse chamado a atenção dos presentes para o discurso seguinte: 

— A feliz ocasião que se apresenta obriga-nos... 

— Cala-te lá! — interrompeu Legs com grande seriedade. — Cala-te lá com isso e diz-nos antes quem diabo são vocês todos e o que fazem aqui equipados como os demónios no inferno, a beber desta maneira a boa pinga do nosso honrado camarada Will Wimble, o gato pingado! 

Àquela imperdoável amostra de má educação, toda a sociedade se agitou, entoando rapidamente um coro de gritos diabólicos semelhantes aos que tinham primeiro atraído a atenção dos marujos. O presidente, todavia, não tardou a recobrar o sangue frio e, voltando-se para Legs com toda a dignidade, respondeu: 

— É com a melhor das vontades que satisfazemos a curiosidade de hóspedes tão ilustres, embora não tenham sido convidados. Sabei pois que sou o monarca deste império, onde reino absolutamente sob o título de Rei Peste I. Esta sala, que supondes muito injuriosamente ser a loja de Will Wimble, contratador de enterros (homem que não conhecemos e cujo nome plebeu não havia nunca até aqui ressoado aos nossos reais ouvidos), esta sala, digo, é a sala do trono do nosso palácio, consagrada aos conselhos do reino e a outros destinos de uma ordem sagrada e superior. A nobre dama sentada defronte de nós é a Rainha Peste, nossa Sereníssima esposa. Os outros personagens ilustres que vedes são todos da nossa família; todos têm nos nomes respetivos a prova da origem real: Sua Graça o Arquiduque Peste-Ífero; Sua Graça o Duque Peste-Ilencial; Sua Graça o Duque Tem-Pestuoso; e Sua Alteza Sereníssima a Arquiduquesa Anna Peste. Quanto à vossa pergunta — acrescentou — relativamente aos negócios que tratamos aqui em conselho, é inútil dizer que esse assunto, pertencendo unicamente ao nosso interesse real, não tem importância senão para nós. Entretanto, em consideração pelas atenções que vos são devidas como hóspedes e como forasteiros, dignar-nos-emos ainda explicar-vos que estamos aqui, esta noite (preparados por profundas e cuidadosas investigações), para examinar, analisar e determinar peremptoriamente o espírito indefinível, as incompreensíveis qualidades e a natureza dos incomparáveis tesouros da boca: vinhos, cervejas e licores desta excelente metrópole. Procedemos assim não somente por interesse pessoal, mas também para aumentar a prosperidade do soberano que não é deste mundo, que reina sobre nós todos, cujos domínios não tem limites e cujo nome é a Morte! 

— Cujo nome é Davy Jones! — exclamou Tarpaulin, oferecendo à sua vizinha um crânio cheio de licor e despejando outro para si. 

— Profano atrevido! — diz o presidente, voltando-se para o digno Hugh —, profano e execrável patife! Acabámos de dizer que em consideração por direitos que queríamos respeitar, mesmo nas vossas desprezíveis pessoas, íamos responder às perguntas tão grosseiras como intempestivas que tivestes o atrevimento de nos dirigir. Contudo, visto a tua intrusão profana nos nossos conselhos, é do nosso dever condenar-vos, a ti e ao teu companheiro, a beber cada qual um galão de blackstrop à prosperidade deste reino. Tereis de bebê-lo de joelhos e de um só trago. Depois, se quiserdes, podereis continuar o vosso caminho ou ficar aqui e partilhar os privilégios da nossa mesa, conforme vos aprouver. 

— Isso seria absolutamente impossível — replicou Legs, a quem os grandes ares e a dignidade do rei Peste haviam evidentemente inspirado alguns sentimentos de respeito e que se levantara enquanto este falava. — Isso seria, digne-se Vossa Majestade refletir, uma coisa absolutamente impossível, arrumar no meu porão somente a quarta parte do licor que Vossa Majestade acaba de dizer. Não falando de todas as mercadorias que carregámos esta manhã a nosso bordo e sem mencionar as diversas cervejas e licores que embarcámos esta noite nos diferentes portos, trazemos um forte carregamento de humming stuff comprado na taverna do Alegre Lobo do Mar. Vossa Majestade far-nos-á pois a mercê de aceitar a boa vontade pela ação, porque não posso, nem quero de modo algum engolir mais uma gota que seja, muito menos uma gota dessa vil mixórdia que dá pelo nome de blackstrop

— Amarra isso! — interrompeu Tarpaulin, tão espantado com o tamanho do discurso como com a recusa do companheiro. — Amarra isso, marinheiro de água doce! Não digas nem mais uma palavra. O meu casco está ainda suficientemente leve para acolher a minha e a tua parte do carregamento. Se não podes arrecadar nem mais um grão, eu acharei lugar para ele a meu bordo, mas... 

— Esse contrato — interrompeu o presidente — está em completo desacordo com os termos da sentença, que por sua natureza é módica, incomutável e não passível de apelação. O castigo que impusemos há de ser executado à letra e sem um minuto de hesitação. Aliás, decretamos que sejais ligados um ao outro, pela cabeça e pelos pés, e afogados como rebeldes naquela pipa de cerveja! 

— Ora aí está uma sentença! Que sentença! Equitativa, judiciosa sentença! É um decreto glorioso! Digna, irrepreensível e santa condenação! — gritaram ao mesmo tempo todos os membros da família Peste. O rei franziu a fronte em pregas inumeráveis. O velhito gotoso soprou como um fole; a senhora da mortalha ondulou graciosamente o nariz, da esquerda para a direita e vice-versa; o gentleman do calção branco arrebitou convulsivamente as orelhas; a senhora do sudário abriu a goela como um peixe agonizante; e o homem do caixão de mogno entesou-se ainda mais e arregalou os olhos para o teto. 

— Ah! ah! — disse Tarpaulin, desatando a rir no meio da agitação geral. — Ah! ah! ah! Saiba o senhor Rei Peste que dois ou três galões de blackstrop são uma bagatela para um barco vasto e sólido como eu, mas quando a beber à saúde do Diabo (que Deus lhe perdoe) e a pôr-me de joelhos diante de Sua Reles Majestade (que tão certo como ser eu um pecador não é mais de que Tim Hurlygurly, o palhaço!), oh!... Bem, isso é um negócio que ultrapassa absolutamente as minhas posses e a minha inteligência. 

Não o deixaram acabar tranquilamente o discurso. Ao nome do Tim Hurlygurly, todos os convivas pularam nas suas cadeiras. 

— Traição! — bramiu Sua Majestade o Rei Peste I. 

— Traição! — exclamou o velhito gotoso. 

— Traição! — latiu a Arquiduquesa Anna-Peste. 

— Traição! — resmungou o gentleman de queixos atados. 

— Traição!— rosnou o homem do esquife. 

— Traição! traição! — gritou Sua Majestade a mulher da goela; e agarrando o desgraçado Tarpaulin pela parte posterior das calças, levantou-o ao ar e deixou-o cair, sem cerimônia, no vasto tonel da cerveja. 

Tarpaulin boiou ainda durante alguns segundos e finalmente desapareceu no turbilhão de espuma que os seus esforços haviam levantado no líquido, já de si muito espumoso. 

O marujo grande não viu com resignação a derrota do seu camarada. Atirando o rei Peste para dentro do alçapão aberto e tapando-o violentamente, o valente Legs proferiu uma praga medonha e correu para o meio da sala. Depois, puxou o esqueleto suspenso por cima da mesa com tamanha força e boa vontade que o arrancou, deixando a sala completamente às escuras e quebrando, ao mesmo tempo, a cabeça do velhito gotoso. Precipitou-se então, com toda a sua força, sobre a pipa cheia de cerveja e de Hugh Tarpaulin, e despejou-a no meio do chão, produzindo um dilúvio de cerveja tão abundante, tão impetuoso e tão invasor que a sala foi inundada de uma parede à outra, a mesa deitada por terra com tudo o que tinha em cima, os cavaletes atirados uns para cima dos outros, o vaso do punch lançado contra a chaminé. As senhoras desmaiaram, pilhas de artigos fúnebres flutuavam por aqui e por ali; os vasos, as bilhas, os frascos e as garrafas confundiam-se numa misturada horrorosa, destruindo-se uns aos outros. O homem dos tremeliques foi afogado imediatamente; o gentleman paralítico navegada ao largo dentro do seu esquife e o vitorioso Legs, agarrando pela cintura a volumosa dama do sudário, precipitou-se com ela para a rua e aproou imediatamente na direção de Free and Easy, rebocando o temível Tarpaulin, que tendo espirrado três ou quatro vezes, ofegava e bafejava atrás dele arrastando consigo a Arquiduquesa Anna-Peste.





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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense.[1][2] Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica.[3] Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 






Edgar Allan Poe - Contos: O Rei Peste

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (01)


2 comentários:

  1. quais são os personagens deste conto, e qual o foco narrtivo dele?

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  2. Quais as simbologias e época em que este conto foi contado?

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