domingo, 9 de setembro de 2018

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine IX — O caráter do irmão descrito pela irmã

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo




IX — O caráter do irmão descrito pela irmã 
 

Para dar ideia mais perfeita da vida íntima do bispo de Digne e do modo como as duas mulheres subordinavam os hábitos e intenções do prelado as suas ações, pensamentos e até instintos de mulheres assustadiças, sem que ele vesse sequer o trabalho de falar para as exprimir, nada melhor do que transcrever uma carta escrita por Baptistina à viscondessa de Boischevron, sua amiga de infância. 



Digne, 16 de Dezembro de 18...

Minha querida amiga:

Não se passa um só dia em que não falemos a seu respeito. Isto é um hábito antigo, mas, além disso, há ainda outra razão. Imagine que a Magloire andando a lavar e a limpar os tetos e as paredes da casa, fez uma grande descoberta; agora os nossos quartos forrados de papel antigo e caiado por cima, não fariam má figura num palácio do gênero do seu. Magloire rasgou todo o papel e encontrou por baixo uma infinidade de coisas.

A minha sala, que não tem móveis, e de que nós nos servimos para estender roupa, tem quinze pés de altura e dezoito de largura. Vê-se agora que o teto foi forrado de lona, no tempo em que isto era hospital, antigamente era pintado e dourado e tinha até trabalho de talha, enfim, um teto à antiga. Porém, o que é digno de se ver é o meu quarto. Por baixo de uma camada muito densa de papéis colados, Magloire descobriu várias pinturas, as quais, sem serem boas, são muito suportáveis.

Uma representa Telemaco a ser armado cavaleiro por Minerva; outra representa-o nos jardins não sei de que... onde as damas romanas só iam uma vez. Como lhe hei de dizer tudo? Tenho romanos e romanas (nesta passagem da carta há uma palavra ilegível) e toda a sua comitiva. Magloire limpou e lavou tudo e este Verão, reparadas algumas pequenas avarias, o meu quarto ficou um verdadeiro museu. Encontrou também num canto do sótão, duas consolas muito antigas. Pediram doze francos para as restaurar, mas é preferível dar este dinheiro aos pobres, porque, afinal de contas, são dois objetos muito feios, que eu de boa vontade trocaria por uma mesa redonda de acajú.

Eu continuo a ser muito feliz pela bondade de meu irmão. Dá tudo quanto tem aos pobres e enfermos. Os Invernos aqui são muito rigorosos, de maneira que é indispensável fazer alguma coisa pelos infelizes. Nós vivemos muito apoquentados, mas, graças a Deus, não temos falta de lenha nem de luz. Bem vê que estas coisas não são dadas a todos.

Meu irmão está habituado a certas coisas e diz sempre que um bispo deve ser como ele. Imagine que a porta da nossa casa nunca se fecha a chave. Meu irmão não tem medo de nada, nem mesmo de noite. Segundo ele diz, um sacerdote não deve ter medo.

Não quer que eu nem Magloire nos preocupemos por causa dele. Expõe-se aos maiores perigos e não podemos sequer demonstrar que isso nos assusta. É necessário saber compreendê-lo.

A chuva não o impede nunca de sair, chegando no Inverno a fazer longas jornadas a pé, debaixo de água, sem temer as estradas nem recear qualquer mau encontro.

O ano passado fez uma das suas excursões a um lugar infestado de salteadores e não quis que nós o acompanhássemos, demorando-se por lá quinze dias. Quando chegou a casa, sem que tivesse sofrido o menor incomodo e quando todos já o julgavam morto, disse-me: «Aqui está como me roubaram!». E abriu uma grande mala onde se encontravam todas as joias da catedral de Embrun e que os ladrões lhe tinham dado. Desta vez, mas de modo que ninguém ouvisse, não pude deixar de ralhar com ele.

Ao princípio, assustava-me muito por ver como ele se metia aos perigos sem tomar qualquer medida de precaução, mas depois fui-me habituando. Recomendo sempre a Magloire que o não contrarie e que o deixe proceder como muito bem lhe apraz. Nestas ocasiões, retiro-me para o meu quarto, peço a Deus por ele e durmo descansada. Sinto-me tranquila, porque sei que não resistiria se lhe sucedesse alguma desgraça, iria reunir-me com meu irmão e meu bispo na presença de Deus. Magloire teve mais dificuldade do que eu em habituar-se ao que ela chamava «imprudência do senhor bispo», mas, por fim, também se habituou. Oramos ambas, assustadas às vezes, mas concluídas as nossas orações deitamo-nos e adormecemos. Na nossa casa podia entrar o próprio diabo sem que ninguém se lhe opusesse. Mas no fim de tudo, que podemos nós recear? Temos sempre conosco o mais forte. O diabo pode passar por ela, mas não entrará porque é habitada por Deus!

E é quanto me basta para viver sossegada. Meu irmão agora nem precisa de dizer-me a menor palavra. Sei o que ele quer, e entregamo-nos nas mãos da Providência.

Creio que não devo proceder de outro modo com um homem de inteligência tão sublime.


Obtive de meu irmão as informações que a minha amiga pretendia relativamente à família de Faux, porque bem sabe que ele ainda não perdeu os bons sentimentos realistas que sempre teve, lembrando-se ainda de tudo. Efetivamente, é uma antiquíssima família da Bretanha. Há quinhentos anos, já existiam um Raul de Faux, um Jean de Faux e um Thomaz de Faux, todos fidalgos e um deles senhor de Rochefort. O último foi Guy Estêvão Alexandre, mestre de campo e não sei o quê na cavalaria ligeira da Bretanha. Sua filha, Maria Luísa, casou com Adriano Carlos de Gramont, filho do duque de Gramont, par de França, coronel das guardas francesas e tenente-general do exército. O nome desta família tem aparecido escrito de três modos: Faux, Fauq e Faouq.

Minha boa amiga, peço-lhe que nos recomende nas orações do seu santo parente o senhor cardeal. Quanto à sua querida Silvana, tem feito muito bem em não perder os curtos momentos que passa na sua companhia, para me escrever. Uma vez que ela tem saúde, trabalha segundo os desejos da minha amiga e me conserva a antiga afeição, é quanto desejo. Eu não passo mal, todavia, não sei porquê, estou cada vez mais magra.

Adeus. Está a acabar o papel, e por isso concluo, desejando-lhe todas as venturas. Baptistina


P. S. — O seu sobrinho está lindo como os anjos. Sabe que em breve vai fazer cinco anos? Ontem, vendo passar um cavalo com umas Coelheiras, perguntou: «O que tem aquele cavalo nos joelhos?». É uma criança muito interessante. O irmão mais novo, passa horas seguidas a brincar, arrastando um cestinho velho, a que chama a sua carruagem.


Como se vê por esta carta, as duas mulheres sabiam afeiçoar-se ao modo de viver do bispo, com o talento particular da mulher que melhor compreende o homem do que ele próprio se compreende a si. O bispo de Digne sob o seu ar prazenteiro e cândido, que nada era capaz de alterar, praticava às vezes coisas sublimes, arrojadas e magníficas, com o modo mais natural e simples. As duas mulheres tremiam de susto, mas não lhe opunham resistência. Magloire arriscava às vezes uma observação, mas antes ou depois, nunca na mesma ocasião. Nunca o perturbavam na prática de qualquer ação por uma palavra ou sequer por um gesto. Em certos momentos, sem lhe ser necessário a ele dizê-lo nem se lembrar talvez de o fazer, tão completa era a sua simplicidade, conheciam elas vagamente que ele procedia como bispo e então eram apenas como que duas sombras, divagando pela casa. Serviam-no passivamente e, se para obedecer fosse necessário desaparecer, desapareciam. Por uma admirável delicadeza de instinto, conheciam que há solicitudes que incomodam. Assim, ainda que o supusessem em perigo, compreendiam-lhe, se não a intenção, pelo menos o gênio, a ponto de não exercerem a menor vigilância sobre ele. Deixavam-no entregue a Deus. 

Contudo, como acaba de ler-se, Baptistina dizia que a morte do irmão seria a morte dela, e Magloire, posto não o dissesse, também o sabia.





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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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