domingo, 19 de agosto de 2018

Gente Pobre - 29. com as lágrimas nos olhos - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


29.




21 de agosto



Minha querida e boa Bárbara Alexeievna:


Sinto que sou culpado e que tem muito que me perdoar; mas quanto a mim, o facto de eu reconhecer as minhas culpas, meu amor, não interessa. Há já muito que eu reconhecia tudo isso perante a minha consciência, embora só agora visse bem a minha culpa. 

Meu amor, meu anjo, não sou cruel nem mau; para dilacerar o seu coraçãozinho seria preciso ser um tigre sedento de sangue, e eu possuo um coração de cordeiro e, como deve saber, não tenho queda nenhuma para armar em animal feroz. Por isso, a bem dizer, meu anjo, não me sinto verdadeiramente culpado, e não o são também o meu coração e os meus pensamentos. Assim, nem eu sei também a quem cabe, de fato, a culpa. É um assunto muito complexo, querida Bárbara! 

Mandou-me, da primeira vez, vinte kopeks, e agora trinta, e o meu coração confrangia-se ao pensar que este dinheiro me vinha das mãos de uma órfã. Queimou a mãozinha, sentia dores, e daqui a pouco terá fome! Apesar disso, dizia-me na sua carta que comprasse tabaco com esta importância! Mas diga-me: qual seria o caminho a seguir? Simplesmente, como um bandido e sem remorsos de consciência, havia de a sugar, pobre órfã? 

Não tive coragem de o fazer, meu amor. A princípio, cheguei a convencer-me de que não sirvo para coisa alguma e que, ao fim e ao cabo, sou pouco melhor do que a sola das minhas botas. Comecei a cismar nisto e persuadi-me de que era um absurdo aspirar a ser alguém; melhor dizendo: que devia considerar-me desgraçado e indigno. Quando um homem chega ao ponto de perder a estima de si próprio e abdicar das suas melhores qualidades e da dignidade humana, perdeu tudo, a sua ruína é inevitável! Mas não me cabe a culpa. É o destino. Naquela tarde saí de casa com o simples propósito de tomar ar, e deu-se então toda essa série de circunstâncias: o tempo estava frio e chuvoso, a natureza associava-se ao meu estado de espírito. Sucedeu então encontrar-me com Emelia no caminho. Este tinha gasto tudo o que possuía e, quando se encontrou comigo, havia já dois dias que não provava uma côdea de pão. Por isso estava resolvido a empenhar umas coisas de tão pouco valor que, se as quisesse vender, ninguém lhes pegava. Então, querida Bárbara, acedi a acompanhá-lo, mais por compaixão do que propriamente por vontade. E foi este o meu crime, meu amor. Falou-me de si e eu confundi as minhas lágrimas com as dele. Sim, é um excelente homem, todo bondade e dotado de um coração muito sensível. Eu compreendia tudo isso, minha querida, e precisamente porque o compreendia foi que me sucederam todas aquelas coisas. 

Bem sei os favores que lhe devo, minha boa amiga! Desde que travei conhecimento consigo, melhor me fui conhecendo a mim próprio, e assim nasceu este amor. Até então, meu anjo, vivera sempre só, levara uma existência obscura, afastado da maldade do mundo. Os meus conhecidos costumavam dizer que eu tinha aspecto de mau e envergonhavam-se de me acompanhar. Isso causou-me tal impressão que acabei por me julgar mau e por sentir vergonha de mim mesmo. Garantiam que eu era curto de inteligência, e eu pensava que o era realmente. Mas, depois que a Bárbara apareceu na minha vida, varreu-se de vez a escuridão que me envolvia, fez-se luz na minha alma e no meu coração. Pude, então, saborear as delícias da paz interior e compreender que os outros não me eram superiores. Reconheço que, embora destituído de elegância, de esplendor e de maneiras delicadas — o que é verdade —, sou, contudo, um homem completo pelo coração e pelo pensamento! Pois bem: agora, ao ver-me perseguido pela pouca sorte, esqueci de todo a minha própria dignidade, deixei-me vencer pelo peso do infortúnio, demonstrando assim que perdera a coragem, o que seria a maior desgraça. 

Agora que sabe tudo, meu amor, rogo-lhe, com as lágrimas nos olhos, que não me pergunte mais nada acerca desse incidente, nem me fale mais nele, pois tenho o coração destroçado e a vida já me é bem dura e atroz. 

Apresento-lhe os meus respeitos, minha querida, e fico seu sincero amigo de sempre

Makar Dievuchkin







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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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