Simone de Beauvoir
25. Fatos e Mitos
Segunda Parte
História
CAPITULO I
IV
"Ei-lo, eis o verdadeiro mártir!"
EM TAIS CONDIÇÕES, vê-se como é raro que uma mulher tenha tido possibilidades de agir ou simplesmente de se manifestar: nas classes trabalhadoras, a opressão econômica anula a desigualdade dos sexos, mas aniquila todas as possibilidades do indivíduo. Entre os nobres e os burgueses a mulher é controlada como sexo, tem apenas uma existência parasitária; é pouco instruída; são necessárias circunstâncias excepcionais para que possa conceber e realizar algum projeto concreto. As rainhas e as regentes têm essa rara honra: sua soberania exalta-as acima de seu sexo. A lei sálica em França proíbe-lhes a sucessão ao trono, mas ao lado do esposo, quando da morte deste, desempenham, por vezes, um grande papel. Assim Santa Clotilde, Santa Redegunda, Branca de Castela. A vida conventual toma a mulher independente do homem: certas abadessas detêm grandes poderes. Heloísa celebrizou-se tanto como abadessa como grande amorosa. Na relação mística, e portanto autônoma, que as prende a Deus, as almas femininas haurem a inspiração e a força de uma alma viril; e o respeito de que gozam na sociedade, permite-lhes realizar difíceis empreendimentos. A aventura de Joana d'Arc participa do milagre: e não passou de uma rápida façanha. Mas a história de Santa Catarina de Siena é significativa; é no seio de uma existência inteiramente normal que ela criou em Siena grande reputação por sua caridade ativa e as visões que manifestam sua intensa vida interior. Ela adquire assim essa autoridade necessária ao êxito, que falta geralmente às mulheres; apela-se para sua influência a fim de exortar os condenados à morte, trazer de volta ao bom caminho os transviados, apaziguar as querelas entre famílias e cidades. Ela é apoiada pela coletividade que nela se reconhece e é assim que pode cumprir sua missão pacificadora, pregando de cidade em cidade a submissão ao papa, mantendo vasta correspondência com bispos e soberanos, e sendo finalmente escolhida por Florença como embaixatriz para ir buscar o papa em Avinhão. As rainhas por direito divino, as santas por suas evidentes virtudes, asseguram-se um apoio na sociedade que lhes permite igualar-se aos homens. Das outras, ao contrário, exige-se uma silenciosa modéstia. O êxito de Christine de Pisan é surpreendente: ainda assim foi preciso que fosse viúva e cheia de filhos para que se decidisse a ganhar a vida com a pena.
No conjunto, a opinião dos homens da Idade Média é, com efeito, pouco favorável à mulher. Sem dúvida, os poetas corteses exaltaram o amor; surgem numerosas Arts d'amour, entre as quais um poema de André de Chapelain e o célebre Roman de la Rose em que Guillaume de Loris incita os jovens a se devotarem às damas. Mas a essa literatura, influenciada pela dos trovadores, opõem-se as obras de inspiração burguesa que atacam as mulheres com maldade: fabulários, farsas, leis censuram-lhes a preguiça, o coquetismo, a luxúria. Seus maiores inimigos são os clérigos. E ao casamento que atacam. A Igreja fez dele um sacramento e, no entanto, proibiu-o à elite cristã: há nisso uma contradição que é o ponto de partida da "Querela das mulheres". Ela é denunciada com especial rigor nas Lamentações de Matheolus, publicadas quinze anos depois da primeira parte do Roman de la Rose, traduzidas em francês cem anos depois e que foram célebres no tempo. Mathieu perdeu sua "clerezia" em se casando, amaldiçoa o seu casamento, as mulheres e o casamento em geral. Por que Deus criou a mulher, se há incompatibilidade entre o casamento e a clerezia? Não pode haver paz no casamento: ele é, portanto, obra do diabo, ou Deus não sabia o que fazia. Mathieu espera que a mulher não ressuscitará no dia do julgamento. Mas Deus responde-lhe que o casamento é um purgatório graças ao qual se alcança o céu; e, transportado em sonho para o céu, Mathieu vê uma legião de maridos que o acolhem aos gritos de "Ei-lo, eis o verdadeiro mártir!" Encontra-se em Jean de Meung, que também é clérigo, inspiração análoga; êle incita os jovens a escapar ao jugo das mulheres. Primeiramente ataca o amor:
O amor é terra odiosa
O amor é ódio amoroso (1)
L'amour ce est haine amoureuse.
Ataca o casamento que reduz o homem à escravidão, que o destina a ser enganado; e dirige violenta diatribe contra a mulher. Os defensores da mulher esforçam-se, em resposta, por demonstrar sua superioridade. Eis alguns dos argumentos em que se apoiarão, até o século XVII, os apologistas do sexo fraco:
(2) "A mulher é superior ao homem porque: Materialmente: Adão foi feito de barro e Eva de uma costela de Adão. Pelo local: Adão foi criado fora do paraíso, Eva dentro do paraíso. Pela concepção: A mulher concebeu Deus, o que o homem não pôde fazer. Pelo aparecimento: Cristo depois da morte apareceu a uma mulher, Madalena. Pela exaltação: Uma mulher foi exaltada acima do coro dos anjos, a bem-aventurada Maria. ..".
A querela prossegue durante o século XV. O autor de Quinze joyes du mariage descreve com complacência os infortúnios dos pobres maridos. Eustache Deschamps escreve sobre o mesmo tema um interminável poema. É nessa época que se inicia a Querelle du roman de la Rose. Pela primeira vez, vê-se uma mulher pegar da pena para defender o seu sexo; Christine de Pisan ataca vivamente os clérigos em L'Êpitre ao Dieu d'amour. Alguns clérigos, imediatamente, se levantam para defender Jean de Meung; mas Gerson, guarda-selos da universidade de Paris, apoia Christine; redige, em francês, seu tratado a fim de alcançar um público mais amplo. Martin le Franc joga no campo de batalha seu indigesto Chaperon des Dames que ainda é lido duzentos anos depois. E Christine intervém de novo. Reclama principalmente que se permita às mulheres instruírem-se: "Se fosse costume pôr as meninas na escola e normalmente se lhes ensinassem as ciências como o fazem com os meninos, elas aprenderiam tão perfeitamente e entenderiam as sutilezas de todas as artes e ciências como eles entendem".
Essa disputa só concerne, em verdade, indiretamente às mulheres. Ninguém pensa em reclamar para elas um papel social diferente do que lhes é concedido. Trata-se, antes, de confrontar a vida do clérigo com a instituição do casamento, isto é, de um problema masculino suscitado pela atitude ambígua da Igreja em relação ao casamento. A esse conflito é que Lutero dará solução recusando o celibato dos padres. A condição da mulher não é influenciada por essa guerra literária. A sátira das farsas e fabulários, conquanto escarneça da sociedade tal qual se constitui, não pretende mudá-la: zomba das mulheres mas nada trama contra elas. A poesia cortês exalta a feminilidade; mas esse culto não implica, ao contrário, a assimilação dos sexos. A "que rela" é um fenômeno secundário em que se reflete a atitude da sociedade mas não a modifica.
***
Foi dito que o estatuto da mulher permanecera mais ou menos idêntico do princípio do século XV ao século XIX; mas nas classes privilegiadas sua condição concreta evolui. O Renascimento italiano é uma época de individualismo que se mostra propício ao desabrochar de todas as fortes personalidades sem distinção de sexo. Encontram-se, então, mulheres que são soberanas poderosas como Joana de Aragão, Joana de Nápoles, Isabel d'Este; outras foram condottiere aventureiras que pegaram em armas contra os homens. Assim é que a mulher de Giralomo Riario luta pela liberdade de Forli; Hipólita Fioramenti comanda as tropas do Duque de Milão e durante o sítio de Pavia conduz às fortificações uma companhia de grandes damas. Para defender sua cidade contra Montluc as sienesas constituíram três exércitos de mil mulheres cada um, comandados por mulheres. Outras italianas se tornaram célebres pela sua cultura e seus talentos: Isara Nogara, Verônica Gambara, Gaspara Stampara, Vitória Colona que foi amiga de Miguel Ângelo e, particularmente, Lucrécia Tornabuoni, mãe de Lourenço e Júlio de Médicis, que escreveu, entre outras coisas, hinos, uma vida de São João Batista e da Virgem. Entre essas mulheres distintas, a maioria é constituída de cortesãs; aliando às liberdades dos costumes as do espírito, assegurando-se, pelo exercício da profissão, uma autonomia econômica, muitas delas eram tratadas pelos homens com deferente admiração; elas protegiam as artes, interessavam-se pela literatura, pela filosofia e não raro escreviam ou pintavam: Isabel de Luna, Catarina di San Celso, Impéria, que era poeta e musicista, reatam a tradição de Aspásia e de Frinéia. Entretanto, para muitas, a liberdade só assume ainda a configuração de licença; as orgias e os crimes das grandes damas e das cortesãs italianas ficaram lendários.
Mas, na realidade, essas possibilidades permanecem muito desiguais; no século XVI as mulheres são ainda pouco instruídas. Ana de Bretanha atrai muitas mulheres para a corte onde antes só se viam homens; esforça-se por formar um cortejo de damas de honra; preocupa-se, porém, mais com a educação delas do que com sua cultura. Entre as mulheres que um pouco mais tarde se distinguirão pelo espírito, pela sua influência intelectual e por seus escritos, a maioria é constituída de grandes damas: a Duquesa de Retz, Mme de Lignerolle, a Duquesa de Rohan e sua filha Anne; as mais célebres são princesas: a Rainha Margot e Margarida de Navarra. Perette de Girillet parece ter sido uma burguesa; mas Louise Labbé foi sem dúvida uma cortesã: gozava, em todo caso, de grande liberdade de costumes.
É essencialmente no terreno intelectual que as mulheres continuam a distinguir-se no século XVII; a vida mundana desenvolve-se e a cultura expande-se; o papel desempenhado pelas mulheres nos salões é considerável; não estando empenhadas na construção do mundo, têm lazeres para se dedicar à conversação, às artes, às letras; sua instrução não é organizada, mas através de reuniões, de leituras, do ensino de professores particulares, chegam a adquirir conhecimentos superiores aos de seus maridos: Mlle de Gournay, Mme de Rambouillet, Mlle de Scudéry, Mme de La Fayette, Mme de Sévigné gozam, na França, de grande reputação; e, fora da França, igual renome liga-se aos nomes da Princesa Elizabeth, da Rainha Cristina, de Mlle de Schurman que trocava correspondência com todo o mundo culto. Graças a essa cultura e ao prestígio que lhes confere, as mulheres conseguem imiscuir-se no universo masculino; da literatura, da casuística amorosa muitas ambiciosas passam às intrigas políticas. Em 1623, o núncio do papa escrevia: "Na França, todos os grandes acontecimentos, todas as intrigas importantes, dependem, o mais das vezes, das mulheres". A Princesa de Conde fomenta a "conspiração das mulheres"; Ana da Áustria é cercada de mulheres cujos conselhos segue de bom grado; Richelieu ouve com boa vontade a Duquesa d'Aiguillon; sabe-se do papel que desempenharam, durante a Fronda, Mme de Montbazon, a Duquesa de Chevreuse, Mme de Montpensier, a Duquesa de Longueville, Anna de Gonzague e outras. Enfim, Mme de Maintenon deu um brilhante exemplo da influência que uma hábil conselheira pode exercer nos negócios de Estado. Animadoras, conselheiras, intrigantes, é de maneira oblíqua que avocam a si o papel mais eficiente: a Princesa des Ursins governa na Espanha com grande autoridade mas sua carreira é curta. Ao lado dessas grandes damas, algumas personalidades afirmam-se no mundo que escapa às imposições burguesas; vê-se surgir uma espécie desconhecida: a atriz. É em 1545 que se assinala, pela primeira vez, a presença de uma mulher no palco; em 1592 só se conhecia uma única ainda; no início do século XVII elas são, em sua maioria, mulheres de atores; mais tarde, conquistam sua independência, tanto em sua carreira como em sua vida privada. Quanto à cortesã, depois de ter sido Frínéia, Impéria, encontra sua mais perfeita encarnação em Ninon de Lenclos; explorando sua feminilidade, ela a supera; vivendo entre os homens, adquire qualidades viris; a independência dos costumes, inclina-a à independência do espírito; Ninon de Lenclos levou a liberdade ao ponto mais extremo que poderia ser então permitido a uma mulher.
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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