quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (fim)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Ao "Chat-Qui-Pelote"
Dedicado a mlle. Marie de Montheau

(Parte 7)




Um dia, pois, a tímida Augustina, armando-se de coragem sobrenatural, tomou a carruagem, às duas horas da tarde, para tentar penetrar na alcova da célebre coquete, que nunca era visível antes dessa hora. A sra. de Sommervieux ainda não conhecia os veneráveis e suntuosos palácios do faubourg Saint-Germain. Quando percorreu aqueles vestíbulos majestosos, aquelas régias escadarias, os imensos salões enfeitados de flores, não obstante os rigores do inverno, e decorados com o gosto próprio das mulheres nascidas na opulência ou com os hábitos distintos da aristocracia, Augustina sentiu horrível aperto de coração. Invejou os segredos daquela elegância, da qual jamais suspeitara. Respirou uma atmosfera de grandeza que lhe explicou a atração que aquele solar exercia sobre o marido. Quando chegou aos pequenos aposentos da duquesa, sentiu ciúme e uma espécie de desespero, ao admirar a voluptuosa disposição dos móveis, das tapeçarias e dos estofos das paredes. Ali a desordem era graciosa, o luxo afetava uma espécie de desdém pela riqueza. Os perfumes espalhados por aquela suave atmosfera deliciavam o olfato, sem ofendê-lo. Os acessórios do apartamento harmonizavam-se com a vista proporcionada, através de finas vidraças, pelos gramados de um jardim plantado de árvores verdes. Tudo era sedução, e não se sentia o cálculo. O espírito da dona da casa evidenciava-se todo no salão onde Augustina esperava. Procurou adivinhar o caráter da rival pelo aspecto dos objetos esparsos; mas havia ali algo de impenetrável na desordem, tanto como na simetria, e para a simplicidade de Augustina aquilo foi como um livro fechado. Tudo o que pôde ver foi que a duquesa, como mulher, era uma mulher superior. Teve então um pensamento doloroso. “Ai de mim! será verdade”, pensou, “que um coração amante e simples não baste para um artista e que para equilibrar o peso dessas almas fortes seja preciso uni-las às almas femininas cuja potencialidade se equipare à sua? Se eu tivesse sido educada como essa sereia, pelo menos nossas almas, no momento da luta, teriam sido iguais.” 

— Mas eu não estou em casa! 

Essas palavras secas e cortantes, conquanto pronunciadas em voz baixa na alcova contígua, foram ouvidas por Augustina, cujo coração palpitou.

— Essa senhora está aqui — replicou a criada de quarto. 

— Você está louca, mande entrar! — respondeu a duquesa, cuja voz, que se tornara suave, tinha tomado a inflexão afetuosa da polidez. 

Era evidente que agora queria ser ouvida. 

Augustina adiantou-se, tímida. No fundo daquela alcova elegante viu a duquesa voluptuosamente recostada numa otomana de veludo verde, colocada numa espécie de semicírculo desenhado pelas pregas macias de uma musselina estendida sobre um fundo amarelo. Ornamentos de bronze dourado, dispostos com refinado gosto, realçavam ainda mais a espécie de dossel sob o qual a duquesa estava pousada como uma estátua antiga. A cor escura do veludo não lhe deixava perder nenhum dos seus meios de sedução. Uma penumbra, amiga de sua beleza, parecia antes um reflexo que uma luz. Algumas flores raras erguiam suas corolas embalsamadas por sobre riquíssimos vasos de Sèvres. No momento em que esse quadro se ofereceu aos olhos de Augustina, admirada, esta caminhara tão suavemente que pôde surpreender um olhar da feiticeira. Esse olhar parecia dizer a alguém que a mulher do pintor não pôde ver de chegada: “Fique, vai ver uma linda mulher e tornará esta visita menos aborrecida”. 

Ao ver Augustina, a duquesa levantou-se e fê-la sentar a seu lado. 

— A que devo o prazer desta visita, senhora? — disse com o mais gracioso sorriso. 

“Por que tanta falsidade?”, pensou Augustina, que respondeu apenas com uma inclinação de cabeça. 

Esse silêncio era imposto. A jovem senhora via diante de si uma testemunha a mais para aquela cena. Essa personagem era o mais jovem de todos os coronéis do exército, bem como o mais elegante e o mais benfeito de corpo. O traje semiburguês ressaltava-lhe as seduções do físico. O semblante, cheio de vida, de mocidade, e já muito expressivo, era ainda animado por um pequeno bigode erguido nas pontas e negro como azeviche, por uma pera basta e suíças cuidadosamente penteadas, além de uma floresta de cabelos negros, bastante revoltos. Brincava com uma fina bengala flexível, demonstrando um desembaraço e uma despreocupação que muito assentavam ao ar satisfeito de sua fisionomia, assim como ao requinte de seu vestuário. As fitas presas à lapela estavam amarradas desleixadamente, e mostrava mais vaidade do seu lindo porte que da sua coragem. Augustina fitou a duquesa de Carigliano, indicando-lhe o coronel com um olhar que encerrava todas as súplicas.

— Pois bem! Sr. d’Aiglemont, adeus. Tornaremos a ver-nos no Bois de Boulogne. 

Essas palavras foram proferidas pela sereia como se fossem o resultado de um convênio anterior à chegada de Augustina; acompanhou-as de um olhar ameaçador, que o oficial talvez merecesse pela admiração que manifestara ao contemplar a modesta flor que tanto contrastava com a orgulhosa duquesa. O jovem fátuo inclinou-se em silêncio, girou sobre os tacões e lançou-se graciosamente para fora da alcova. Nesse momento, Augustina, observando a rival, que parecia seguir o brilhante oficial com os olhos, surpreendeu naquele olhar um sentimento cujas fugitivas expressões são conhecidas por todas as mulheres. Compreendeu com a mais profunda dor que sua visita ia ser inútil; aquela artificiosa duquesa era demasiadamente ávida de homenagens para não ter o coração impiedoso. 

— Senhora — disse Augustina com voz embargada —, o passo que estou dando, neste momento, junto à senhora, vai parecer-lhe bastante singular, mas o desespero tem sua loucura e deve fazer desculpar tudo. Explico-me agora perfeitamente bem por que Teodoro prefere esta casa a qualquer outra, e por que o seu espírito exerce tão grande domínio sobre ele. Ai de mim! Basta recolher-me para achar razões mais do que suficientes. Mas adoro meu marido, senhora. Dois anos de lágrimas não bastaram para apagar sua imagem do meu coração, embora o dele eu tenha perdido. Em minha loucura atrevi-me a conceber a ideia de lutar contra a senhora, e venho vê-la para pedir-lhe que me ensine por que meios poderei triunfar. Oh! Senhora — exclamou a moça, segurando ardorosamente a mão da rival, que a abandonou —, jamais pedirei a Deus por minha própria felicidade com tanto fervor como o implorarei pela sua, se a senhora me auxiliar a reconquistar, não direi o amor, mas a ternura de Sommervieux! Não tenho mais esperança, a não ser na senhora. Ah! Diga-me como lhe pôde agradar e fazer que ele esquecesse os primeiros dias de... 

A estas palavras, Augustina, sufocada por soluços mal contidos, foi obrigada a deter-se. Envergonhada de sua fraqueza, escondeu o rosto num lenço, que empapou de lágrimas. 

— Como é criança, minha linda menina! — disse a duquesa, que, seduzida pela novidade da cena e enternecida, contra a vontade, ao receber a homenagem que lhe prestava a mais perfeita virtude que talvez existisse em Paris, tomou o lenço da jovem dama e pôs-se ela mesma a enxugar-lhe os olhos, confortando-a com alguns monossílabos murmurados com graciosa piedade. 

Depois de um momento de silêncio, a coquete, apertando as lindas mãos da pobre Augustina nas suas, que tinham raras características de nobre beleza e de poder, disse-lhe com voz meiga e afetuosa: 

— Em primeiro lugar, aconselho-a que não chore assim, porque as lágrimas enfeiam. É preciso saber conformar-se com as tristezas; essas fazem adoecer, e o amor não fica muito tempo junto a um leito de dor. A melancolia dá, é verdade, no começo, um certo encanto que agrada, mas acaba por desmerecer as feições e emurchecer o rosto mais sedutor. Além disso, nossos tiranos têm o amor-próprio de querer que suas escravas estejam sempre alegres. 

— Ah! Senhora, não depende de mim não sentir! Como é possível, sem sofrer mil mortes, ver alheado, descorado, indiferente, um semblante que em outros tempos irradiava amor e alegria? Não sei dominar meu coração. 

— Tanto pior, minha bela; mas creio que já sei toda a sua história. Antes de mais nada, saiba que, se seu marido lhe foi infiel, não sou cúmplice dele. Se desejei tê-lo em meus salões, foi, confesso-o, por amor-próprio; ele era célebre e não ia a parte alguma. Já a estimo demasiado para que lhe diga todas as loucuras que ele fez por mim. Só lhe revelarei uma, porque, talvez, ela nos sirva para que ele volte para a senhora e também para puni-lo da audácia que ele emprega no seu procedimento para comigo. Acabaria por comprometer-me. Conheço demais a sociedade, querida, para querer pôr-me à discrição de um homem muito superior. Saiba que é preciso deixar-se cortejar por eles, mas desposá-los é um erro! Nós, mulheres, devemos admirar os homens de gênio, gozá-los como um espetáculo, mas viver com eles, nunca! Deus nos livre! Seria o mesmo que preferir ver as máquinas da ópera, em vez de ficar num camarote e aí saborear suas brilhantes ilusões. Mas consigo, minha pobre filha, o mal já está feito, não é? Pois bem, é preciso armar-se contra a tirania. 

— Ah! Senhora, antes de entrar aqui, ao vê-la, já percebi alguns artifícios de que eu não suspeitava. 

— Pois bem! Venha ver-me algumas vezes e não demorará muito a adquirir a ciência dessas ninharias, aliás muito importantes. As coisas exteriores são, para os tolos, metade da vida; e, para isso, mais de um homem de talento não passa de um tolo, apesar de todo o seu espírito. Mas sou capaz de apostar que nunca recusou coisa nenhuma a Teodoro. 

— Como é possível, senhora, recusar qualquer coisa ao homem a quem amamos?

— Pobre inocente! Eu a adoraria pela sua ingenuidade. Saiba, pois, que, quanto mais amamos, menos devemos deixar que o homem perceba, principalmente o marido, a extensão de nossa paixão. Aquele que mais ama é o mais tiranizado e, o que é pior, é abandonado mais dia, menos dia. Quem quiser reinar, deve... 

— Como, senhora! Será preciso então dissimular, calcular, tornar-se falsa, forjar um caráter artificial, e para sempre? Oh! Como é possível viver assim? Pode a senhora.... 

Hesitou; a duquesa sorriu. 

— Minha querida — disse a grande dama com voz grave —, a felicidade conjugal foi sempre uma especulação, um assunto que exige atenção particular. Se continua a falar em paixão quando lhe falo em casamento, em breve não nos entenderemos mais. Ouça-me — continuou, tomando um tom de confidência: — Tive oportunidade de ver alguns homens superiores de nossa época. Os que se casaram, com poucas exceções, desposaram mulheres nulas. Pois bem! Essas mulheres os governavam como o imperador nos governa e eram, se não amadas, pelo menos respeitadas por eles. Gosto bastante de segredos, sobretudo dos que nos dizem respeito, razão pela qual me diverti procurando a chave do enigma. Pois bem, meu anjo! Essas boas mulheres tinham o talento de analisar o caráter do marido. Sem se apavorarem, como a senhora, das suas superioridades, tinham habilmente notado as qualidades que a eles faltavam. Ou fosse porque essas mulheres possuíssem tais qualidades, ou por fingirem tê-las, achavam meios de fazer tamanha exibição das mesmas aos olhos dos maridos, que acabavam por se impor. Enfim, saiba ainda que essas almas que parecem tão grandes têm, todas elas, um grão de loucura que deveremos saber explorar. Tomando a firme resolução de dominá-los, nunca se afastando desse objetivo, referindo a ele todas as nossas ações, nossas ideias, nossas faceirices, subjugamos esses espíritos eminentemente caprichosos que, pela própria mobilidade de seus pensamentos, nos fornecem os meios para influenciá-los. 

— Céus! — exclamou a jovem senhora, apavorada. — E é isso a vida! Um combate... 

— No qual sempre é preciso ameaçar — replicou a duquesa, a rir. — Nosso poder é inteiramente factício. Por isso não nos devemos deixar jamais desprezar por um homem; de semelhante queda não nos podemos levantar senão por manobras odiosas. Venha — acrescentou. — Vou dar-lhe um meio de acorrentar seu marido. 

Levantou-se para guiar, sorrindo, a jovem e inocente aprendiz das manhas matrimoniais, através do dédalo de seu pequeno palácio. Chegaram as duas a uma escada disfarçada que comunicava com os salões de recepção. Quando a duquesa moveu o segredo da porta, deteve-se e olhou para Augustina com um ar de uma graciosidade e sutileza inimitáveis: 

— Veja, o duque de Carigliano adora-me; pois bem! Ele não se atreve a entrar por esta porta sem minha licença. E é um homem habituado a comandar milhares de soldados. Sabe afrontar baterias, mas diante de mim tem medo! 

Augustina suspirou. Chegaram a uma suntuosa galeria, aonde a mulher do pintor foi levada pela duquesa diante do retrato que Teodoro fizera da srta. Guillaume. Vendo-o, Augustina deu um grito. 

— Eu sabia que ele não estava mais em minha casa, mas... aqui! 

— Querida, só o exigi para ver que grau de tolice pode atingir um homem de gênio. Cedo ou tarde, ele lhe teria sido restituído por mim; mas eu não esperava ter o prazer de ver aqui o original ante a cópia. Enquanto acabamos nossa conversa, eu o mandarei levar ao seu carro. Se, armada com esse talismã, não se tornar senhora de seu marido durante cem anos, é que não é uma mulher e merecerá sua sorte! 

Augustina beijou a mão da duquesa, que a estreitou ao coração e a beijou com uma ternura tanto mais intensa quanto devia ser esquecida no dia seguinte. Essa cena teria talvez arruinado para sempre o candor e a pureza de uma mulher menos virtuosa do que Augustina, a quem os segredos revelados pela duquesa podiam ser igualmente salutares ou funestos. A política astuciosa das altas esferas sociais não convinha mais a Augustina do que a estreita razão de José Lebas, ou a tola moral da sra. Guillaume. Estranho efeito das falsas posições em que nos lançam os menores contrassensos cometidos na vida! Augustina assemelhava-se então a um pastor dos Alpes surpreendido por uma avalancha: se hesita ou se quer ouvir os gritos dos companheiros, muitas vezes perece. Nessas grandes crises, o coração ou se esfacela ou enrijece. 

A sra. de Sommervieux voltou para casa numa agitação que seria difícil descrever. A conversa com a duquesa de Carigliano despertava-lhe no espírito uma multidão de ideias contraditórias. Como os carneiros da fábula, estava cheia de coragem durante a ausência do lobo. Fazia preleções a si mesma e traçava para seu uso admiráveis planos de ação; imaginava mil estratagemas de coqueteria; chegava a falar ao marido, achando, longe deste, todos os recursos dessa verdadeira eloquência que as mulheres nunca perdem; depois, ao pensar no claro e fixo olhar de Teodoro, começava a tremer. Quando perguntou se o senhor estava nos seus aposentos, faltou-lhe a voz. Ao saber que ele não viria jantar, sentiu uma alegria inexplicável. Tal como ao criminoso que interpõe apelação da sentença de morte, um prazo, por pequeno que fosse, lhe parecia toda uma vida. Colocou o retrato no quarto e esperou o marido, entregando-se a todas as angústias da esperança. Pressentia perfeitamente que aquela tentativa ia decidir de todo o seu futuro, motivo pelo qual estremecia a qualquer ruído, até ao murmúrio do seu relógio, que parecia agravar seus terrores, medindo-os. Procurou matar o tempo por meio de mil artifícios. Lembrou-se de se vestir de modo que ficasse igual em tudo ao retrato. Depois, como conhecia o temperamento inquieto do marido, fez iluminar seu aposento de maneira desusada, na certeza de que a curiosidade, quando ele chegasse, o faria dirigir-se aonde ela estava. Deu meia-noite quando, ao grito do criado, a porta do palacete se abriu. O carro do pintor rodou silenciosamente sobre as lajes do pátio. 

— Que significa esta iluminação? — perguntou Teodoro com voz alegre, ao entrar no quarto da mulher. 

Augustina, aproveitando habilmente uma oportunidade tão favorável, enlaçou-se ao pescoço do marido e mostrou-lhe o retrato. O artista quedou-se imóvel como um rochedo. Seus olhos iam alternadamente do semblante de Augustina à sua tela acusadora. A tímida esposa, semimorta, perscrutava a fronte mutável, a fronte terrível do marido. Viu nela as rugas expressivas acumularem-se gradativamente, como nuvens; depois teve a impressão de que o sangue se lhe gelava nas veias, quando, com um olhar chamejante e uma voz profundamente surda, ele a interrogou: 

— Onde achou esse quadro? 

— A duquesa de Carigliano me restituiu. 

— Você pediu a ela? 

— Não sabia que estava em casa dela. 

A doçura, ou melhor dito, a melodia encantadora da voz daquele anjo, teria enternecido um canibal, mas não um artista tomado das torturas da vaidade ferida. 

— Isto é bem digno dela — exclamou ele com voz atroadora. — Hei de vingar-me! — disse, caminhando pela peça a largos passos. — Ela morrerá de vergonha. Vou pintá-la, sim! Mas a representarei sob as feições de Messalina, saindo à noite do palácio de Cláudio.

— Teodoro! — disse uma voz expirante. 

— Matá-la-ei! 

— Meu amigo! 

— Ela ama aquele coronelzinho de cavalaria, porque ele sabe montar bem a cavalo. 

— Teodoro! 

— Deixa-me — disse o pintor à esposa, com uma voz que mais parecia um rugido. 

Seria odioso descrever toda a cena, no fim da qual a embriaguez da cólera sugeriu ao artista palavras e atos que uma mulher menos jovem do que Augustina teria atribuído à demência. 

Às oito horas da manhã do dia seguinte, a sra. Guillaume surpreendeu a filha pálida, com os olhos vermelhos, o penteado desfeito, segurando um lenço embebido de pranto, a contemplar por terra os fragmentos esparsos de uma tela rasgada e uma grande moldura dourada feita em pedaços. Augustina, a quem a dor tornara quase insensível, mostrou aqueles restos com um gesto cheio de desespero. 

— Eis aí talvez uma grande perda — exclamou a velha gerente do “Chat-quipelote”. — Não há dúvida de que era parecido; mas eu soube que há no bulevar um sujeito que faz retratos encantadores por cinquenta escudos. 

— Ah! Minha mãe! 

— Pobrezinha, tens muita razão! — disse a sra. Guillaume, que não compreendeu a expressão do olhar da filha. — Sim, minha filha, a gente nunca é tão ternamente amada como pela própria mãe. Adivinho tudo, minha mimosa. Mas mesmo assim vem confiar-me tuas penas, que eu te consolarei. Eu já não te disse que esse homem era um louco? Tua criada de quarto contou-me boas coisas... Mas é um verdadeiro monstro! 

Augustina pôs um dedo sobre os lábios pálidos, como para implorar à mãe um momento de silêncio. Durante aquela terrível noite, a desgraça fizera com que ela encontrasse a paciente resignação que, nas mães e nas mulheres que amam, sobrepuja, em seus efeitos, a energia humana e revela, talvez, no coração das mulheres, a existência de certas cordas que Deus recusou aos homens. 

Uma inscrição gravada em um cipó do cemitério Montmartre dizia que a sra. de Sommervieux morrera aos vinte e sete anos. Um poeta, amigo daquela tímida criatura, via nas singelas linhas de seu epitáfio a última cena do drama. Todos os anos, no solene dia 2 de novembro, nunca passava por aquele recente mármore sem perguntar a si mesmo se não eram necessárias mulheres mais fortes do que Augustina para os poderosos amplexos do gênio. 

“As humildes e modestas flores, desabrochadas nos vales, morrem talvez”, dizia ele de si para si, “quando são transplantadas para muito perto do céu, na região onde se formam as tormentas, onde o sol é escaldante.”

Maffliers, outubro de 1829





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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (01)



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