Fiódor Dostoiévski
30.
3 de setembro
Não cheguei a terminar a minha última carta, Makar Alexeievitch, porque me custava muito escrever. Há ocasiões em que o meu gosto é estar, só, para poder, livremente, abandonar-me aos meus sofrimentos, e saborear sozinha a minha tortura, tais estados de espírito são cada vez mais frequentes. Perdura qualquer coisa de misterioso nas minhas recordações, que me prende sem que eu oponha a mínima resistência; e são tão fortes os laços dessa coisa inexplicável, que passe horas e horas alheia a tudo o que me cerca e esquecida por completo do presente, de todo o presente. Sim. Na minha vida atual não há impressão alguma, seja de que gênero for, que não me faça recordar um fato semelhante do meu passado, sobretudo da minha infância, da minha feliz infância! Mas após estes momentos evocadores, mergulho sempre numa horrível melancolia. Perco de todo as forças, esgotada pelos meus sonhos, e cada vez sinto a saúde mais abalada.
Porém, esta manhã outonal, tão fresca, luminosa e brilhante, como agora já vão sendo raras, comunicou-me nova vida e trouxe à minha alma uma alegria indizível. Oh! Como eu gostava do outono no campo! É certo que nesse tempo eu era uma criança, mas sentia e apreendia tudo com grande intensidade. Na verdade, gostava mais das tardes de outono do que das manhãs. Ainda me lembro. A meia dúzia de passos de minha casa, junto da montanha, ficava o lago. Esse lago... Parece-me mesmo que o estou a ver... Era claro e puro como cristal! Naquelas tardes serenas, tudo se refletia nas suas águas. Não se agitava uma folha nas árvores que o marginavam; o lago, cristalino e imóvel, parecia um espelho. Puro e frio! O orvalho tremeluzia na relva. Numa cabana, ao longe, fumegava uma fogueira pastoril, e os pastores tangiam o rebanho... Eu fugia, às escondidas, de casa e ia para junto do lago; olhava-o e tornava a olhá-lo, e esquecia-me de tudo, até de mim própria. Na margem os pescadores aqueciam-se a uma fogueira de ramos, e o fogo iluminava grande superfície da água, na minha direção. O céu mostrava-se de um azul pálido e frio, e ao Poente, no horizonte, estendiam-se manchas de um vermelho ígneo, que, pouco a pouco, se iam tornando mais pálidas, até, finalmente, perderem toda a cor. Surgia a lua. A atmosfera tornava-se tão diáfana, tão serena e calma! De repente, um pássaro levantava voo, ou ouvia-se o leve sussurrar do junco agitado brandamente pela aragem... Distinguia-se tudo claramente, até o mais ligeiro rumor. Sobre a água azul começava a formar-se, lentamente, uma branca neblina, leve e transparente. Ao longe começava a escurecer, dir-se-ia que a névoa envolvera tudo; mas, de perto, que bem se via! A embarcação, a margem, a ilha…
Um tonel, que para ali ficara esquecido na água, deixava ouvir o seu gorgolejar; um ramo de salgueiro, com as folhas secas, via-se, não muito longe, sobre o junco; uma gaivota retardatária esvoaçava, tocava na água e tornava a levantar voo, acabando por desaparecer por trás do nevoeiro... E eu para ali me deixava estar, olhando e escutando tudo aquilo, tão maravilhoso! Contudo, nesse tempo eu era uma criança!...
Encantava-me o outono em especial no seu fim, quando o trigo já fora ceifado, as grandes fainas do campo terminadas e os lavradores se metem nas suas cabanas e se começam a preparar para o inverno. Os dias então são mais escuros, e o céu cobre-se de nuvens, os bosques apresentam um tom amarelo, as árvores perdem as suas folhas, ficando despidas e negras, em especial ao entardecer, quando se forma uma bruma ainda mais húmida, e depois dão o aspecto de gigantes escuros e informes, que parecem pavorosos espectros. E se por acaso retardamos o nosso passeio e ficamos para trás das outras pessoas, que pressa nós temos de as alcançar e que horrível medo nós experimentámos! Trememos como varas verdes. Sabe-se lá se... atrás daquele tronco de árvore não estará escondido um monstro que, à nossa passagem, nos atacará! Entretanto, o vento atravessa o bosque, ruge, assobia, e às vezes parece-nos ouvir vozes que uivam e soltam gemidos, e as folhas revoluteiam pelos ares e são levadas pelo vento; de súbito, um bando de aves de rapina fere a atmosfera com os seus estridentes guinchos. O medo é cada vez maior e parece-nos escutar a voz estranha de alguém, que murmura: «Corre, corre, pobre criança; não te demores, porque de um momento para o outro este lugar será terrível; corre, meu filho...» A estas palavras que julgamos ouvir, o terror apossa-se do nosso coração e corremos, corremos sempre, até entrarmos em casa, desolados. Em casa, contudo, espera-nos a vida e a alegria; enquanto crianças, mandam-nos escolher ervilhas ou descascar semente de papoula. Na lareira arde o lume; a mãe contempla com um sorriso o alegre trabalho das crianças, e a velha ama Iliana conta-nos pavorosas histórias de bruxas e salteadores. E nós, ainda crianças, chegamo-nos bem umas às outras; mas o riso não nos sai dos lábios. De um momento para outro, tudo mergulha no silêncio... «Ouve: parece que estão a bater à porta!...» Mas não! É o ruído da roca da tia Frolovna. E desatamos todos a rir! Depois vamos para a cama, mas o medo não nos deixa dormir, pavorosas visões e pesadelos afugentam o sono. Acordamos e não nos atrevemos a mexer-nos, e assim ficamos, despertos e a tremer, até raiar a aurora, sempre com a cabeça debaixo da roupa. Quando o sol entra no quarto, levantamo-nos, desembaraçados e alegres. Espreitamos então com curiosidade pela janela, e vemos campos de restolho, em que brilham argênteas gotas outonais, e todas as árvores e arbustos cobertos de orvalho. O gelo formou como que um ténue disco cristalino na superfície do lago e os passarinhos deixam ouvir os seus alegres gorjeios. E o sol, por toda a parte, trespassa, com os seus quentes raios, o fino gelo, como se fora cristal. Como tudo é claro, reluzente, delicioso!
Na lareira arde outra vez o lume; sentamo-nos à mesa onde já ferve o samovar , e através de uma janela olha para nós o negro cão Polkan, agitando a cauda. Nisto passa junto da casa um lavrador que se dirige para o bosque, à procura de lenha. E todos se sentem contentes e bem-dispostos! Nos celeiros erguem-se grandes montões de trigo e o cocuruto de palha das medas de feno brilha ao sol, despedindo cintilações de amarelo-ouro... É tão agradável contemplar tudo isso!... Todos se sentem contentes, irradiam felicidade; reconhecem a bênção de Deus que lhes concedeu a colheita; todos sabem que no inverno não passarão necessidade, e poderão dar aos seus filhos pão com fartura. E esta atmosfera de bem-estar reflete-se nas canções das moças que, às tardes, sorridentes, dançam em roda. Aos domingos toda a gente vai à igreja agradecer a Deus, com suas orações, os benefícios que se dignou conceder-lhe... Ah, como foi bela, que maravilhosa a minha infância...
Ao recordar assim o meu passado, as lágrimas brotam-me, abundantes, dos olhos, como se eu fosse uma criança. Revejo esses bons tempos com tanta nitidez, essa época da minha vida revive de tal modo no meu espírito, que agora o presente se me afigura ainda mais triste e desolador... Que fim terá tudo isto? Que será de nós? Sabe? Pressinto, ou melhor, estou convencida de que vou morrer neste outono. Sinto-me doente, muito doente. A cada passo penso na morte; mas, na verdade, não me apetecia morrer assim... Não queria que o meu corpo fosse sepultado em S. Petersburgo. Creio que vou recolher à cama outra vez, como sucedeu na primavera, pois não cheguei a restabelecer-me completamente daquela doença.
A Fédora saiu e só voltará à noite, de modo que estou sozinha em casa. Ultimamente até sinto receio de me ver só; tenho a impressão de que se encontra alguém na minha companhia, em especial quando me abandono a estes devaneios em que me mergulham as recordações, fazendo-me esquecer a realidade. De repente, desperto e olho à minha volta, parecendo-me então sentir que algo de sinistro se encontra escondido dentro de casa. É por isso que lhe escrevo uma carta tão extensa, sabe? É que quando escrevo, esqueço-me de tudo.
Adeus, meu bom amigo. Fez muito bem em dar dois rublos à sua patroa; assim, ela deixá-lo-á sossegado por algum tempo... Mas veja se, de qualquer modo, consegue arranjar um fato mais decente. Com isto, não escrevo mais, que estou cansada... Não compreendo a razão desta minha fraqueza. O mais pequeno esforço me fatiga. Se a Fédora me trouxer trabalho, como poderei fazê-lo? É isto o que me desanima.
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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