quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O Segundo Sexo - 23. Fatos e Mitos: a Eva pecadora, a Mãe do Redentor

Simone de Beauvoir



23. Fatos e Mitos


Segunda Parte
História

CAPITULO I


IV



a Eva pecadora, a Mãe do Redentor




A EVOLUÇÃO DA CONDIÇÃO FEMININA não prosseguiu de maneira contínua. Com as grandes invasões, toda a civilizações foi posta em causa. O próprio direito romano sofreu a influência de uma ideologia nova: o cristianismo. E, nos séculos que se seguem, os bárbaros fazem que suas leis triunfem. A situação econômica, social e política é transtornada: e isto repercute na situação da mulher. 

A ideologia cristã não contribuiu pouco para a opressão da mulher. Há, sem dúvida, no Evangelho um sopro de caridade que se estende tanto às mulheres como aos leprosos; são os pequenos, os escravos e as mulheres que se apegam mais apaixonadamente à nova lei. E logo no início do cristianismo, eram as mulheres, quando se submetiam ao jugo da Igreja, relativamente honradas; testemunhavam como mártires ao lado dos homens; não podiam, entretanto, tomar parte no culto senão a título secundário; as "diaconisas" só eram autorizadas a realizar tarefas laicas: cuidados aos doentes, socorros aos indigentes. E se o casamento é encarado como uma instituição que exige fidelidade recíproca, parece evidente que a esposa deve ser totalmente subordinada ao esposo: com São Paulo afirma-se a tradição judaica ferozmente antifeminista. São Paulo exige das mulheres discrição e modéstia; baseia, no Antigo e no Novo Testamento, o princípio da subordinação da mulher ao homem. "O homem não foi tirado da mulher e sim a mulher do homem; e o homem não foi criado para a mulher e sim esta para o homem." E alhures: "Assim como a Igreja é submetida a Cristo, em todas as coisas submetam-se as mulheres a seus maridos". Numa religião em que a carne é maldita, a mulher se apresenta como a mais temível tentação do demônio. Tertuliano escreve: "Mulher, és a porta do diabo. Persuadiste aquele que o diabo não ousava atacar de frente. É por tua causa que o filho de Deus teve de morrer; deverias andar sempre vestida de luto e de andrajos". E Santo Ambrósio: "Adão foi induzido ao pecado por Eva e não Eva por Adão, É justo que a mulher aceite como soberano aquele que ela conduziu ao pecado". E São João Crisóstomo: "Em meio a todos os animais selvagens não se encontra nenhum mais nocivo do que a mulher". Quando se constitui o direito canônico no século IV, o casamento surge como uma concessão às fraquezas humanas, é incompatível com a perfeição cristã. "Empunhemos o machado e cortemos pelas raízes a árvore estéril do casamento", escreve São Jerônimo. A partir de Gregório VI, quando o celibato é imposto aos padres, o caráter perigoso da mulher é severamente sublinhado: todos os Padres da Igreja lhe proclamam a abjeção. Santo Tomás será fiel a essa tradição ao declarar que a mulher é um ser "ocasional"  e incompleto, uma espécie de homem falhado. "O homem é a cabeça da mulher, assim como Cristo é a cabeça do homem", escreve. "É indubitável que a mulher se destina a viver sob o domínio do homem e não tem por si mesma nenhuma autoridade". Destarte, o direito canônico só admite como regime matrimonial o regime dotal que torna a mulher incapaz e impotente. Não somente os ofícios viris lhe são proibidos, como ainda se lhe veda depor nos tribunais e não se dá nenhum valor a seu testemunho. Os imperadores sofrem a influência dos Padres da Igreja de modo mitigado; a legislação de Justiniano honra a mulher como esposa e mãe, mas escraviza-a a essas funções; não é de seu sexo e sim de sua situação no seio da família que decorre sua incapacidade. O divórcio é proibido e exige-se que o casamento seja um acontecimento público; a mãe tem sobre os filhos uma autoridade igual à do pai, e o mesmo direito à herança. Morrendo o marido, torna-se ela a tutora legal. O senatus-consulto veleiano é modificado: doravante ela poderá obrigar-se em benefício de terceiros; mas não pode contratar por seu marido; o dote torna-se inalienável; é o patrimônio dos filhos e ela não pode dispor dele.


A essas leis justapõem-se, nos territórios ocupados pelos bárbaros, as tradições germânicas. Os costumes dos germanos eram singulares. Só admitiam chefes durante as guerras; em tempo de paz, a família era uma sociedade autônoma; parece ter sido intermediária entre os clãs fundados na filiação uterina e a gens patriarcal; o irmão da mãe tinha o mesmo poder que o pai e ambos, mãe e irmão, tinham sobre a filha e sobrinha uma autoridade igual à do marido. Numa sociedade em que toda capacidade encontra sua fonte na força brutal, a mulher era de fato inteiramente impotente; mas reconheciam-lhe direitos que a dualidade dos poderes domésticos de que ela dependia lhe assegurava; escravizada, era contudo respeitada; o marido comprava-a, mas o preço da compra constituía uma renda de que ela era proprietária; além disso, seu pai dotava-a; recebia sua parte da herança paterna, e, em caso de assassínio dos pais, uma parte lhe era paga pelo assassino. A família era monógama, o adultério severamente punido e o casamento respeitado. A mulher permanecia sempre sob tutela, mas era estreitamente associada ao esposo. "Na paz como na guerra, ela partilha a sorte dele; com ele vive, com ele morre", escreve Tácito. Assistia aos combates, fornecendo a comida aos guerreiros e animando-os com sua presença. Viúva, parte do poder de seu defunto marido lhe era transmitida. Por ter raízes em sua fraqueza física, sua incapacidade não era encarada como exprimindo uma inferioridade moral. Havia mulheres sacerdotisas, profetisas, o que leva a supor que tinham uma instrução superior à dos homens. Nas sucessões, entre os objetos que cabiam às mulheres, contaram-se mais tarde as joias e os livros.

É essa tradição que se perpetua durante a Idade Média. A mulher acha-se na absoluta dependência do pai e do marido: no tempo de Clóvis o mundium pesa sobre ela durante toda a vida; mas os francos renunciaram à castidade germânica; na época dos merovíngios e dos carolíngios reina a poligamia; a mulher é casada sem seu consentimento, repudiada segundo os caprichos do marido que tem sobre ela direito de vida e de morte; tratam-na como uma serva. E protegida pelas leis, mas na qualidade de propriedade do homem e mãe de seus filhos. Tratá-la de prostituta sem o provar, é uma injúria que se paga quinze vezes mais caro do que qualquer insulto a um homem; o rapto de uma mulher casada equivale ao assassínio de um homem livre; apertar a mão ou o braço de uma mulher casada acarreta uma multa de quinze a trinta e cinco soldos; o aborto é proibido sob pena de multa de cem soldos; o assassínio de uma mulher grávida custa quatro vezes o de um homem livre; uma mulher que deu provas de fecundidade vale três vezes um homem livre, mas perde seu valor quando não pode mais ser mãe; se desposa um escravo é posta fora da lei e os pais são autorizados a matá-la. Ela não tem nenhum direito como pessoa; entretanto, quando o Estado se torna poderoso, esboça-se a evolução que vimos desenrolar-se em Roma: a tutela dos incapazes, crianças e mulheres, deixa de ser um direito de família para tornar-se um encargo público; a partir de Carlos Magno o mundium que pesa sobre a mulher pertencerá ao rei; a princípio, ele só intervém nos casos em que a mulher é privada de seus tutores naturais; mais tarde, ele açambarca, pouco a pouco, os poderes familiais; mas essa mudança não acarreta a emancipação da mulher franca. O mundium torna-se uma obrigação onerosa para o tutor; ele tem o dever de proteger sua pupila e essa proteção redunda para esta na mesma escravidão de antes.

Quando, ao fim das convulsões da alta Idade Média, o feudalismo se organiza, a condição da mulher apresenta-se muito incerta. O que caracteriza o direito feudal é a confusão entre soberania e propriedade, entre direitos públicos e direitos privados. É o que explica que a mulher se encontre ora rebaixada ora elevada pelo regime. A princípio, vê-se desprovida de todos os direitos privados porque não tem nenhuma capacidade política. Efetivamente, até o século XI a ordem baseia-se unicamente na força, a propriedade no poder das armas. Um feudo, dizem os juristas, é "uma terra que se mantém em troca de serviço militar". A mulher não poderia pretender um domínio feudal, uma vez que seria incapaz de defendê-lo. Sua situação muda quando os feudos se tornam hereditários e patrimoniais. Viu-se que havia no direito germânico sobrevivências do direito materno: na ausência de herdeiros, a filha podia herdar. Daí admitir também o feudalismo, por volta do século XI, a sucessão feminina. Entretanto, o serviço militar é sempre exigido dos vassalos e a sorte da mulher não melhora pelo fato de se tornar herdeira; ela precisa de um tutor masculino; é o marido que desempenha esse papel; ele é que recebe a investidura, que usa o título e tem o usufruto dos bens. Tal qual a epiclera grega, a mulher é o instrumento através do qual a propriedade se transmite e não sua possuidora; não se emancipa com isso, é, em suma, absorvida pelo feudo, faz parte dos bens imóveis. A propriedade não é mais a coisa de família como no tempo da gens romana, pertence ao suserano e a mulher também. Ele é quem lhe escolhe um esposo. Quando ela tem filhos, é antes a ele do que ao marido que os dá; serão vassalos que defenderão seus bens. Ela é, portanto, escrava da propriedade e do senhor dessa propriedade através da "proteção" de um marido que lhe é imposto; há poucas épocas em que sua sorte tenha sido mais dura. Uma herdeira é uma terra e um castelo: os pretendentes disputam a presa e, às vezes, a jovem não tem ainda doze anos quando o pai ou o senhor a dão de presente a algum barão. Multiplicar os casamentos é para um homem multiplicar suas propriedades; por isso mesmo os repúdios são numerosos; a Igreja autoriza-os hipocritamente; sendo proibido o casamento entre parentes até o sétimo grau, e definindo-se o parentesco pelos laços espirituais como os de padrinho e madrinha tanto quanto pelos laços de sangue, encontra-se sempre algum pretexto para anulação. Contam-se no século XI numerosas mulheres repudiadas quatro ou cinco vezes. Viúva, deve a mulher aceitar de imediato um segundo senhor. Nas canções de gesta vê-se Carlos Magno casar, novamente, em bloco, todas as viúvas de seus barões mortos na Espanha; em Girard de Vienne, a Duquesa de Borgonha vem em pessoa reclamar do rei um novo esposo. "Meu marido acaba de morrer, mas para que serve o luto?. .. Descobri-me um marido que seja poderoso, pois dele tenho muita necessidade para defender minha terra." Inúmeras epopeias mostram-nos o rei ou o suserano dispondo tiranicamente das jovens e das viúvas. Vê-se por elas também que o esposo tratava sem nenhuma consideração a mulher que recebera de presente; maltratava-a, esbofeteava-a, arrastava-a pelos cabelos, batia-lhe; tudo o que pedia Beaumanoir aos costumes de Beauvaisis era que o marido "castigasse razoavelmente" a esposa. Essa civilização guerreira não tinha senão desprezo pela mulher. O cavaleiro não se interessava por elas; seu cavalo parece-lhe um tesouro de bem maior valor; nas canções de gesta, são sempre as jovens que procuram os jovens; casadas, exigi-se delas uma fidelidade sem reciprocidade; o homem não se associa a sua vida. "Maldito seja o cavaleiro que vai pedir conselho a sua dama quando deve ir para o torneio." E, em Renaud de Montauban, lê-se esta apóstrofe: "Retornai a vossos apartamentos pintados e dourados, sentai-vos à sombra, bebei, comei, bordai, tingi a seda, mas não vos ocupeis de nossos negócios. Nossa função é lutar com o gládio e o aço. Silêncio!" A mulher partilha, por vezes, a vida rude dos homens. Jovem, é treinada em todos os exercícios do corpo, monta a cavalo, caça com falcão; não recebe quase nenhuma instrução e é educada sem pudor; ela é quem recebe os hóspedes do castelo, quem cuida de suas refeições, de seus banhos, quem os "acaricia" para ajudá-los a adormecer; embora mulher, ocorre-lhe caçar animais ferozes, realizar longas e difíceis peregrinações; quando o marido se acha ausente, ela é quem defende a terra senhorial.

Admiram-se essas castelãs que chamam "virago" porque se conduzem exatamente como homens: são cúpidas, pérfidas, cruéis, oprimem seus vassalos. A história e a lenda deixaram-nos a recordação de muitas delas: a castelã Aubie, tendo mandado construir uma torre mais alta do que todos os torreões, ordenou logo após que se cortasse a cabeça do arquiteto a fim de que o segredo ficasse bem guardado; expulsou o marido de sua propriedade, mas ele voltou escondido e matou-a. Mabille, mulher de Rogério de Montgomerri, comprazia-se em transformar em mendigos os nobres de seu feudo: eles se vingaram, decapitando-a. Juliana, filha bastarda de Henrique I da Inglaterra, defendeu o castelo de Breteuil contra o pai e fê-lo cair numa armadilha, pelo que ele a castigou duramente. Entretanto, tais fatos são excepcionais. Habitualmente a castelã passa os dias fiando, rezando, esperando o esposo e se aborrecendo.

Pretendeu-se muitas vezes que o amor cortês que nasce no Sul mediterrânico, por volta do século XII, teria acarretado uma melhoria na sorte da mulher. Acerca dessas origens, diversas teses se defrontam: segundo uns, a "cortesia" decorre das relações da suserana com seus jovens vassalos; segundo outros, ela estaria ligada às heresias cátaras e ao culto da Virgem; outros, enfim, fazem derivar o amor profano do amor a Deus em geral. Não se tem muita certeza de que as cortes de amor tenham realmente existido. O certo é que, ante a Eva pecadora, a Igreja foi levada a exaltar a Mãe do Redentor. Seu culto tornou-se tão importante que se pôde dizer que no século XIII Deus se fizera mulher; uma mística da mulher desenvolve-se, portanto, no plano religioso. Por outro lado, os lazeres da vida de castelo permitem às mulheres nobres fazer florescer em volta delas o luxo da conversação, da cortesia, da poesia; mulheres letradas, como Béatrice de Valentinois, Aliénor d'Aquitaine e sua filha Marie de France, Blanche de Navarre e muitas outras, atraem e sustentam os poetas. Observa-se no sul primeiramente e, em seguida, no norte, um amadurecimento cultural que beneficia as mulheres e lhes dá um novo prestígio. O amor cortês foi descrito, amiúde, como platônico; Chrestian de Troyes, sem dúvida para agradar sua protetora, exclui o adultério de seus romances; não pinta outros amores culposos senão os de Lançarote e de Guenièvre; mas na realidade, sendo o esposo feudal um tutor e um tirano, a mulher buscava um amante fora do casamento. O amor cortês era uma compensação à barbárie dos costumes oficiais. "O amor, no sentido moderno da palavra, só ocorre na Antiguidade fora da sociedade oficial, observa Engels. O ponto exato em que a Antiguidade se detém nas suas tendências para o amor sexual é aquele de que parte a Idade Aíédia: o adultério". E é com efeito essa forma que revestirá o amor enquanto a instituição do casamento perpetuar-se.






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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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