domingo, 14 de junho de 2020

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.2) - Quando os ciganos voltaram...

Cem Anos de Solidão



Gabriel Garcia Márquez


(1.2)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío



continuando...



Quando os ciganos voltaram, Úrsula já havia predisposto toda a população contra eles. Mas a curiosidade pôde mais que o temor, porque daquela vez os ciganos percorreram a aldeia fazendo um barulho ensurdecedor com todo tipo de instrumentos musicais, enquanto o pregoeiro anunciava a exibição da mais fabulosa descoberta dos nasciancenos. De modo que todo mundo foi à tenda, e com o pagamento de um centavo viu um Melquíades juvenil, refeito, desenrugado, com uma dentadura nova e radiante. Os que recordavam as suas gengivas destruídas pelo escorbuto, as suas bochechas flácidas e os seus lábios murchos, estremeceram de pavor diante daquela prova decisiva dos poderes sobrenaturais do cigano. O pavor se converteu em pânico quando Melquíades tirou os dentes, intactos, engastados nas gengivas, e mostrou-os ao público por um instante — um instante fugaz em que voltou a ser o mesmo homem decrépito dos anos anteriores — e botou-os outra vez e sorriu de novo com um domínio pleno da sua juventude restaurada. Até o próprio José Arcádio Buendía considerou que os conhecimentos de Melquíades tinham chegado a extremos intoleráveis, mas experimentou um saudável alvoroço quando o cigano lhe explicou a sós o mecanismo da sua dentadura postiça. Aquilo lhe pareceu ao mesmo tempo tao simples e prodigioso, que da noite para o dia perdeu todo o interesse pelas pesquisas de alquimia; sofreu uma nova crise de mau humor, não voltou a comer de maneira regular e passava o dia dando voltas pela casa. “Estão ocorrendo coisas incríveis pelo mundo”, dizia a Úrsula. “Aí mesmo, do outro lado do rio, existe todo tipo de aparelho mágico, enquanto nós continuamos vivendo como os burros.” Os que o conheciam desde os tempos da fundação de Macondo se assombravam do quanto ele havia mudado sob a influencia de Melquíades. 

No princípio, José Arcadio Buendía era uma espécie de patriarca juvenil, que dava instruções para o plantio e conselhos para a criação de filhos e animais, e colaborava com todos, mesmo no trabalho físico, para o bom andamento da comunidade. Posto que a sua casa fosse desde o primeiro momento a melhor da aldeia, as outras foram arranjadas à sua imagem e semelhança. Tinha uma saleta ampla e bem iluminada, uma sala de jantar em forma de terraço com flores de cores alegres, dois quartos, um quintal com um castanheiro gigantesco, um jardim bem plantado e um curral onde viviam em comunidade pacífica os cabritos, os porcos e as galinhas. Os únicos animais proibidos não só em casa, mas também em todo o povoado, eram os galos de briga.

A diligência de Úrsula andava de braços com a de seu marido. Ativa, miúda, severa, aquela mulher de nervos inquebrantáveis, a quem em nenhum momento da vida se ouviu cantar, parecia estar em todas as partes desde o amanhecer até a noite já bem avançada, sempre perseguida pelo suave sussurro das suas anáguas de cambraia. Graças a ela, o chão de terra batida, os muros de barro sem caiação, os rústicos móveis de madeira construídos por eles mesmos estavam sempre limpos, e as velhas arcas onde se guardava a roupa exalavam um cheiro tênue de manjericão. José Arcadio Buendía, que era o homem mais empreendedor que se poderia ver na aldeia, determinara de tal modo a posição das casas que a partir de cada uma se podia chegar ao rio e se abastecer de água com o mesmo esforço; e traçara as ruas com tanta habilidade que nenhuma casa recebia mais sol que a outra na hora do calor. Dentro de poucos anos, Macondo se tornou uma aldeia mais organizada e laboriosa que qualquer das conhecidas até então pelos seus 300 habitantes. Era na verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e onde ningué m ainda havia morrido.

Desde os tempos da fundação, José Arcadio Buendía construíra alçapões e gaiolas. Em pouco tempo, encheu de corrupiões, canários, azulões e pintassilgos não só a própria casa, mas todas as da aldeia. O concerto de tantos pássaros diferentes chegou a ser tão aturdidor que Úrsula tapou os ouvidos com cera de abelha para não perder o senso da realidade. Na primeira vez que chegou a tribo de Melquíades, vendendo bolas de vidro para dor de cabeça, todo mundo se surpreendeu por terem podido encontrar aquela aldeia perdida no marasmo do pântano, e os ciganos confessaram que haviam se orientado pelo canto dos pássaros.

Aquele espírito de iniciativa social desapareceu em pouco tempo, arrastado pela febre dos ímãs, pelos cálculos astronômicos, sonhos de transmutação e ânsias de conhecer as maravilhas do mundo. De empreendedor e limpo, José Arcadio Buendía se converteu num homem de ar vadio, descuidado no vestir, com uma barba selvagem a que Úrsula conseguia dar forma a duras penas, com uma faca de cozinha. Não faltou quem o considerasse vítima de algum estranho sortilégio. Mas até os mais convencidos da sua loucura abandonaram o trabalho e a família para seguilo, quando atirou ao ombro as foices e machados, e pediu a participação de todos para abrir uma picada que pusesse Macondo em contato com os grandes inventos.

José Arcadio Buendía ignorava por completo a geografia da região. Sabia que para o Oriente estava a serra impenetrável, e do outro lado da serra a antiga cidade de Riohacha, onde em épocas passadas — segundo lhe havia contado o primeiro Aureliano Buendía, seu avô — Sir Francis Drake era dado ao esporte de caçar jacarés a tiros de canhão. Os bichos eram depois remendados, recheados de palha e mandados para a Rainha Elizabeth. Na sua juventude, ele e seus homens, com mulheres e crianças e animais e toda espécie de utensílios domésticos, atravessaram a serra procurando uma saída para o mar, e ao fim de vinte e seis meses desistiram da empresa e fundaram Macondo, para não ter que empreender o caminho de volta. Era, pois, uma rota que não lhe interessava, porque só podia conduzi-lo ao passado. Ao Sul estavam os charcos cobertos de uma eterna nata vegetal, e o vasto universo do grande pantanal, que, segundo testemunho dos ciganos, carecia de limites. O grande pantanal se confundia ao Ocidente com uma extensão aquática sem horizontes, onde havia cetáceos de pele delicada, cabeça e torso de mulher, que perdiam os navegantes com o feitiço das suas tetas descomunais. Os ciganos navegavam seis meses por essa rota antes de alcançar a faixa de terra firme por onde passavam as mulas do correio. De acordo com os cálculos de José Arcadio Buendía, a única possibilidade de contato com a civilização era a rota do Norte. De modo que dotou de foices, facões e armas de caça os mesmos homens que o acompanharam na fundação de Macondo; pôs numa mochila os seus instrumentos de orientação e os seus mapas, e empreendeu a temerária aventura. Nos primeiros dias, não encontraram nenhum obstáculo apreciável. Desceram pela pedregosa margem do rio até o lugar onde anos antes haviam achado a armadura do guerreiro e ali penetraram na mata por um caminho de laranjeiras silvestres. Ao fim da primeira semana, mataram e assaram um veado, mas se conformaram em comer a metade e salgar o resto para os próximos dias. Trataram de adiar com essa precaução a necessidade de continuar comendo azaras, cuja carne azul tinha um áspero sabor de almíscar. Em seguida, durante mais de dez dias, não voltaram a ver o sol. O solo tornou-se mole e úmido, como cinza vulcânica, e a vegetação fez-se cada vez mais insidiosa, e ficaram cada vez mais longínquos os gritos dos pássaros e a algazarra dos macacos, e o mundo ficou triste para sempre. Os homens da expedição se sentiram angustiados pelas lembranças mais antigas, naquele paraíso de umidade e silêncio, anterior ao pecado original, onde as botas se afundavam em poças de óleos fumegantes e os facões destroçavam lírios sangrentos e salamandras douradas. Durante uma semana, quase sem falar, avançaram como sonâmbulos por um universo de depressão, iluminados apenas por uma tênue reverberação de insetos luminosos e com os pulmões agoniados por um sufocante cheiro de sangue. Não podiam regressar, porque a picada que iam abrindo em pouco tempo tornava a se fechar com uma vegetação nova que ia crescendo a olhos vistos. “Não tem importância”, dizia José Arcadio Buendía. “O essencial é não perder a orientação.” Sempre de olho na bússola, continuou guiando os seus homens para o Norte invisível, até que conseguiram sair da região encantada. Era uma noite densa, sem estrelas, mas a escuridão estava impregnada de um ar novo e limpo. Esgotados pela prolongada travessia, penduraram as redes e dormiram profundamente pela primeira vez em duas semanas. Quando acordaram, já com o sol alto, ficaram pasmos de fascinação. Diante deles, rodeado de fetos e palmeiras, branco e empoeirado na silenciosa luz da manhã, estava um enorme galeão espanhol. Ligeiramente inclinado para estibordo, de sua mastreação intacta penduravam-se os fiapos esquálidos do velame, entre a enxárcia enfeitada de orquídeas. O casco, coberto por uma lisa couraça de caracas e musgo tenro, estava firmemente encravado num chão de pedras. Toda a estrutura parecia ocupar um âmbito próprio, um espaço de solidão e esquecimento, vedado aos vícios do tempo e aos maus hábitos dos pássaros. No interior, que os expedicionários exploraram com um secreto fervor, não havia nada além de um espesso bosque de flores. O achado do galeão, indício da proximidade do mar, quebrantou o ímpeto de José Arcadio Buendía. Considerava como uma brincadeira do seu destino travesso ter procurado o mar sem encontrá-lo, ao preço de sacrifícios e incômodos sem conta, e tê-lo encontrado agora sem procurá-lo, atravessado no seu caminho como um obstáculo intransponível. Muitos anos depois, o Coronel Aureliano Buendía voltou a atravessar a região, quando já era uma rota regular do correio, e a única coisa que encontrou da nave foi o esqueleto carbonizado no meio de um campo de amapolas. Só então convencido de que aquela história não tinha sido fruto da imaginação de seu pai, perguntou-se como pudera o galeão penetrar até aquele ponto na terra firme. Mas José Arcadio Buendía não levantou esse problema quando encontrou o mar, ao fim de outros quatro dias de viagem, a doze quilômetros de distância do galeão. Seus sonhos terminavam diante desse mar de cor cinza, espumoso e sujo, que não merecia os riscos e sacrifícios da sua aventura.

— Porra! — gritou. — Macondo está cercado de água por todos os lados.

A ideia de um Macondo peninsular prevaleceu durante muito tempo, inspirada no mapa arbitrário que José Arcadio Buendía desenhou ao regressar da sua expedição. Traçou-o com raiva, exagerando de má fé as dificuldades de comunicação, como que para castigar-se a si mesmo da absoluta falta de senso com que escolheu o lugar.

“Nunca chegaremos a parte alguma”, lamentava-se para Úrsula. “Aqui haveremos de apodrecer em vida sem receber os benefícios da ciência.” Essa certeza, ruminada por vários meses no quartinho do laboratório, levou-o a conceber o projeto de trasladar Macondo para um lugar mais propício. Mas desta vez, Úrsula se antecipou aos seus desígnios febris. Num secreto e implacável trabalho de formiga, predispôs as mulheres da aldeia contra a veleidade dos seus homens, que já começavam a se preparar para a mudança. José Arcadio Buendía não soube em que momento, nem em virtude de que forças adversas, seus planos se foram emaranhando numa teia de pretextos, contratempos e evasivas, até se transformarem em pura e simples ilusão. Úrsula observou-o com uma atenção inocente, e até sentiu por ele um pouco de piedade na manhã em que o encontrou no quarto dos fundos comentando entre dentes os seus sonhos de mudança, enquanto colocava nas suas caixas originais as peças do laboratório. Deixou-o terminar. Deixou-o pregar as caixas e pôr as suas iniciais em cima com um pincel cheio de tinta sem lhe fazer nenhuma censura, mas já sabendo que ele (porque o ouviu dizer em seus surdos monólogos) que os homens do povoado não o seguiriam na empresa. Só quando começou a desmontar a porta do quartinho é que Úrsula se atreveu a lhe perguntar por que o fazia, e ele lhe respondeu com certa amargura: “Já que ninguém quer ir embora, nós iremos sozinhos.” Úrsula não se alterou.

— Nós não iremos — disse. — Ficaremos aqui, porque aqui tivemos um filho.

— Ainda não temos um morto — ele disse. — A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele.

Úrsula replicou, com uma suave firmeza:

Se é preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui,eu morro. José Arcadio Buendía não acreditou que fosse tão rígida a vontade de sua mulher. Tratou de seduzi-la com o feitiço da sua fantasia, com a promessa de um mundo prodigioso onde bastava derramar uns líquidos mágicos na terra para que as plantas dessem frutos à vontade do homem, e onde se vendiam a preço de banana toda espécie de aparelhos contra a dor. Mas Úrsula foi insensível à sua clarividência.

— Em vez de andar por aí com essas novidades malucas, você devia era se ocupar dos seus filhos — replicou. — Olhe como estão, abandonados ao deus-dará, como os burros.

José Arcadio Buendía tomou ao pé da letra as palavras da mulher. Olhou pela janela e viu os dois meninos descalços na horta ensolarada, e teve a impressão de que só naquele instante tinham começado a existir, concebidos pelos rogos de Úrsula. Alguma coisa aconteceu então no seu íntimo; alguma coisa misteriosa e definitiva que o desprendeu do tempo atual e o levou à deriva por uma inexplorada região de lembranças. Enquanto Úrsula continuava varrendo a casa que agora estava certa de não abandonar peio resto da vida, ele permaneceu contemplando as crianças com um olhar absorto, até que seus olhos se encheram d’água e ele os enxugou com o dorso da mão, exalando um profundo suspiro de resignação.

— Bem — disse. — Diga-lhes que venham me ajudar a tirar as coisas dos caixotes.

José Arcadio, o mais velho dos meninos, havia completado quatorze anos. Tinha a cabeça quadrada, o cabelo hirsuto e o gênio voluntarioso do pai. Ainda que tivesse o mesmo impulso de crescimento e fortaleza física, já então era evidente que carecia de imaginação. Foi concebido e dado à luz durante a penosa travessia da serra, antes da fundação de Macondo, e seus pais deram graças aos céus ao comprovar que não tinha nenhum órgão de animal. Aureliano, o primeiro ser humano que nasceu em Macondo, ia fazer seis anos em março. Era silencioso e retraído. Tinha chorado no ventre da mãe e nasceu com os olhos abertos. Enquanto lhe cortavam o umbigo movia a cabeça de um lado para o outro, reconhecendo as coisas do quarto, e examinava o rosto das pessoas com uma curiosidade sem assombro. Depois, indiferente aos que vinham conhecê-lo, manteve a atenção concentrada no teto de palmas, que parecia estar quase desabando sob a tremenda pressão da chuva. Úrsula não tornou a se lembrar da intensidade desse olhar até o dia em que o pequeno Aureliano, na idade de três anos, entrou na cozinha no momento em que ela retirava do fogão e punha na mesa uma panela de caldo fervente. O garoto, perplexo na porta, disse: “Vai cair.” A panela estava posta bem no centro da mesa, mas, logo que o menino deu o aviso, iniciou um movimento irrevogável para a borda, como impulsionada por um dinamismo interior, e se espedaçou no chão. Úrsula, alarmada, contou o episódio ao marido, mas este o interpretou como um fenômeno natural. Sempre fora assim, alheio à existência dos filhos, em parte porque considerava a infância como um período de insuficiência mental, e em parte porque estava sempre absorto por demais nas suas próprias especulações quiméricas. Desde a tarde, porém, em que chamou os meninos para. que o ajudassem a desempacotar as coisas do laboratório, dedicou-lhes as suas melhores horas. No quartinho separado, paredes se foram enchendo pouco a pouco de mapas inverossímeis e gráficos fabulosos, ensinou-os a ler e escrever, fazer contas, e falou das maravilhas do mundo, não só até onde chegavam os seus conhecimentos, mas forçando a extremos incríveis os limites da sua imaginação. Foi assim que os meninos acabaram por aprender que no extremo meridional da África havia homens tão inteligentes e pacíficos que único entretenimento era sentar para pensar, e que era possível atravessar a pé o mar Egeu pulando de ilha em ilha porto de Salônica. Aquelas alucinantes sessões ficaram modo impressas na memória dos meninos, que muitos anos mais tarde, um segundo antes de que o oficial dos exércitos regulares desse a ordem de fogo ao pelotão de fuzilamento o Coronel Aureliano Buendía tornou a viver a suave tarde março em que seu pai interrompeu a lição de Física e ficou com a mão no ar e os olhos imóveis, ouvindo a distância os pífaros e tambores e guizos dos ciganos que uma vez chegavam à aldeia, apregoando a última e assombrosa descoberta dos sábios de Mênfis.

Eram ciganos novos. Homens e mulheres jovens que só conheciam a sua própria língua, exemplares formosos de pele e mãos inteligentes, cujas danças e músicas semearam nas ruas um pânico de alvoroçada alegria, com as suas araras de todas as cores que recitavam romanças italianas,a galinha que punha uma centena de ovos de ouro ao som de um pandeiro, e o macaco amestrado que adivinhava o pensamento e a máquina múltipla que servia ao mesmo tempo para pregar botões e baixar a febre, e o aparelho para esquecer más recordações, e o emplastro para perder o tempo, e mil invenções tão engenhosas e insólitas, que José Arcadio Buendía gostaria de inventar a máquina da memória para se lembrar de todas. Num instante transformaram a aldeia. Os habitantes de Macondo se encontraram de repente perdidos nas suas próprias ruas, aturdidos pela feira multitudinária.

Levando um garoto em cada mão, para não perdê-los no tumulto, tropeçando com saltimbancos de dentes encouraçados de ouro e malabaristas de seis braços, sufocado pelo confuso hálito de esterco e sândalo que exalava a multidão, José Arcadio Buendía andava como um louco procurando Melquíades por todas as partes, para que lhe revelasse os infinitos segredos daquele pesadelo fabuloso. Dirigiu-se a vários ciganos que não entenderam a sua língua. Por fim chegou ao lugar onde Melquíades costumava plantar a sua tenda e encontrou um armênio taciturno que anunciava em castelhano um xarope para se fazer invisível. Tinha tomado de um gole uma taça da substância ambarina, quando José Arcadio Buendía abriu passagem aos empurrões por entre o grupo absorto que presenciava o espetáculo e conseguiu fazer a pergunta. O cigano o envolveu no clima atônito do seu olhar, antes de se transformar numa poça de alcatrão fedorento e fumegante sobre a qual ficou boiando a ressonância de sua resposta: “Melquíades morreu.” Aturdido pela notícia, José Arcadio Buendía permaneceu imóvel, tratando de vencer a aflição, até que o grupo se dispersou, reclamando por outros artifícios, e a poça do armênio taciturno se evaporou completamente. Mais tarde, outros ciganos lhe confirmaram que na verdade Melquíades tinha sucumbido às febres, nas dunas de Cingapura, e o seu corpo tinha sido jogado no lugar mais profundo do mar de Java. Os meninos não se interessaram pela notícia. Teimavam para que seu pai os levasse para conhecer a portentosa novidade dos sábios de Mênfis, anunciada na entrada de uma tenda que, segundo diziam, pertenceu ao Rei Salomão. Tanto insistiram que José Arcadio Buendía pagou os trinta reais e os conduziu até o centro da barraca, onde havia um gigante de torso peludo e cabeça raspada, com um anel de cobre no nariz e uma pesada corrente de ferro no tornozelo, vigiando um cofre de pirata. Ao ser destampado pelo gigante, o cofre deixou escapar um hálito glacial. Dentro havia apenas um enorme bloco transparente, com infinitas agulhas internas nas quais se despedaçava em estrelas de cores a claridade do crepúsculo. Desconcertado, sabendo que os meninos esperavam uma explicação imediata, José Arcadio Buendía atreveu-se a murmurar:

— É o maior diamante do mundo.

— Não — corrigiu o cigano. — É gelo.

José Arcadio Buendía, sem entender, estendeu a mão para bloco, mas o gigante afastou-a. “Para pegar, mais cinco”, disse. José Arcadio Buendía pagou, e então pôs a mão sobre o gelo, e a manteve posta por vários minutos, enquanto o coração crescia de medo e de júbilo ao contato do mistério.

Sem saber o que dizer, pagou outros dez reais para que os seus filhos vivessem a prodigiosa experiência. O pequeno José Aurélio negou-se a tocá-lo. Aureliano, em compensação, deu um passo para diante, pôs a mão e retirou-a no ato. “Está fervendo“, exclamou assustado. Mas o pai não lhe prestou atenção. Embriagado pela evidência do prodígio, naquele momento esqueceu da frustração das suas empresas delirantes e do corpo de Melquíades abandonado ao apetite das lulas. Pagou outros cinco reais, e com a mão posta no bloco, como que prestando um juramento sobre o texto sagrado, exclamou:

— Este é o grande invento do nosso tempo.




continua página 17...


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Leia também:

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.1) - Muitos anos depois...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.2) - Quando os ciganos voltaram...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.3) - Quando o pirata Francis Drake assaltou

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Cem anos de solidão (Gabriel García Márquez)
| Tatiana Feltrin






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Prefácio

O colombiano Gabriel García Márquez (1928) é o último grande contador de histórias do século XX — e, até prova em contrário, da própria literatura ocidental. Depois de cem anos marcados por revoluções literárias radicais, não deixa de ser surpreendente que ele tenha conquistado tamanha notoriedade — nem o Nobel lhe falta ganhou-o em 1982 — enquanto tentava apenas imitar o tom com que sua avo materna lhe contava episódios mais fantásticos: sem alterar um só traço do rosto. Em nenhum outro livro García Márquez empenhou-se tanto para alcançar aquele tom como em Cem anos de solidão (1967). Assim, ao mesmo tempo em que a incrível e triste história dos Buendía — a estirpe de solitários para a qual não será dada “uma segunda oportunidade sobre a terra” — pode ser entendida como uma autêntica enciclopédia do imaginário, ela é narrada de modo a parecer sempre que tudo faz parte da mais banal das realidades. Seria ingênuo procurar uma chave que explicasse toda a grandeza deste livro diante do qual o repertório de adjetivos torna-se espantosamente ineficaz. Porém, é razoável atribuir parte do êxito de Cem anos àquela contaminação, pelo real, do universo maravilhoso da fictícia Macondo, onde se passa o romance. Aqui pesou muito a experiência jornalística de García Márquez. E também a sombra do tcheco Franz Kafka (foi depois de ler a primeira frase de A metamorfose que García Márquez decidiu que seria escritor). Mas, para além desses artifícios técnicos e influências literárias, é preciso que se diga que a atordoante sensação de realidade que transborda do livro deve-se ainda ao fato de que ele foi escrito, segundo o autor, para “dar uma saída às experiências que de algum modo me afetaram durante a infância”. Tome-se, por exemplo, a primeira frase de Cem anos. Quando o escritor era pequeno, seu avô, o coronel Márquez, o apresentou mesmo, maravilhado, ao gelo, tal como José Arcadio Buendía faz com o filho Aureliano. Do mesmo modo que José Arcadio, o avô de García Márquez também carregava, na vigília e nos sonhos, o peso de um morto — o homem que havia assassinado. O coronel era marido de Tranquilina, aquela avó que encheu os primeiros anos e o resto da vida do neto Gabriel de histórias bem contadas. García Márquez costuma dizer que todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro. “E qual seria o seu?”, perguntaram-lhe. “O livro da solidão”, foi a resposta. Apesar disso, ele não considera Cem anos sua melhor obra (gosta demais de O outono do patriarca, onde o tema também está presente). O que importa? O certo é que nenhum outro romance resume tão completamente o formidável talento deste contador de histórias de solitários — que se espalham e se espalharão por muito mais de cem anos pelas Macondos de todo o mundo. Rinaldo Gama


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Gabriel García Márquez
CEM ANOS DE SOLIDÃO
Título original: Cien Años de Solead
Tradução de ELIANE ZAGURY
48ª EDIÇÃO EDITORA RECORD
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
© 1967 by Gabriel García Márquez



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