quinta-feira, 25 de junho de 2020

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)

Diante da Dor dos Outros





para David




… aux vaincus!
Baudelaire




A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson







2.


Ser um espectador de calamidades ocorridas em outro país é uma experiência moderna essencial, a dádiva acumulada durante mais de um século e meio graças a esses turistas profissionais e especializados conhecidos pelo nome de jornalistas. Agora, guerras são também imagens e sons na sala de estar. As informações sobre o que se passa longe de casa, chamadas de “notícias”, sublinham conflito e violência — “Se tem sangue, vira manchete”, reza o antigo lema dos jornais populares e dos plantões jornalísticos de chamadas rápidas na tevê — aos quais se reage com compaixão, ou indignação, ou excitação, ou aprovação, à medida que cada desgraça se apresenta.

Já no fim do século XIX, discutia-se a questão de como reagir ao incessante crescimento do fluxo de informações sobre as agonias da guerra. Em 1899, Gustave Moynier, primeiro presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, escreveu:



Sabemos agora o que acontece todo dia, em todo o mundo [...] as informações transmitidas pelos jornalistas diários põem, por assim dizer, aqueles que sofrem nos campos de batalha diante dos olhos dos leitores, em cujos ouvidos seus gritos ressoam [...]


Moynier pensava no crescente número de baixas entre combatentes de todas as partes em conflito, cujos sofrimentos deviam ser minorados pela Cruz Vermelha, de forma imparcial. O poder letal dos exércitos em guerra havia sido elevado a uma nova magnitude em razão das armas introduzidas pouco depois da Guerra da Criméia (1854-56), como o rifle de municiar pela culatra e a metralhadora. Mas, embora as agonias do campo de batalha houvessem se tornado presentes como nunca antes para aqueles que apenas leriam a respeito do assunto na imprensa, era um óbvio exagero afirmar, em 1899, que as pessoas sabiam o que acontecia “todo dia em todo o mundo”. E, embora hoje os sofrimentos vividos em guerras distantes, de fato, tomem de assalto nossos olhos e ouvidos no instante mesmo em que ocorrem, afirmar tal coisa ainda constitui um exagero. Aquilo que em jargão jornalístico se chama de “mundo” — “deem-nos 22 minutos e nós lhes daremos o mundo”, repete uma rede de rádio várias vezes por hora — é (ao contrário do mundo) um lugar muito pequeno, tanto geográfica como tematicamente, e o que se julga digno de conhecer a seu respeito deve ser transmitido de forma compacta e enfática.

A consciência do sofrimento que se acumula em um elenco seleto de guerras travadas em terras distantes é algo construído. Sobretudo na forma como as câmeras registram, o sofrimento explode, é compartilhado por muita gente e depois desaparece de vista. Ao contrário de um relato escrito — que, conforme sua complexidade de pensamento, de referências e de vocabulário, é oferecido a um número maior ou menor de leitores —, uma foto só tem uma língua e se destina potencialmente a todos.

Nas primeiras guerras importantes registradas por fotógrafos, a Guerra da Criméia e a Guerra Civil Americana, bem como em todas as guerras até a Primeira Guerra Mundial, o combate propriamente dito esteve fora do alcance das câmeras. As fotos de guerra publicadas entre 1914 e 1918, quase todas anônimas, eram, em geral — quando de fato transmitiam algo do terror e da devastação —, de estilo épico e, frequentemente, retratos das consequências: os cadáveres espalhados ou a paisagem lunar resultante de uma guerra de trincheiras; as vilas francesas arrasadas que a guerra encontrara em seu caminho. A monitoração fotográfica da guerra tal como a conhecemos teve de esperar mais alguns anos, até ocorrer o drástico aprimoramento do equipamento profissional: câmeras leves, como a Leica, com filmes de 35 milímetros que podiam bater 36 fotos antes de ser preciso recarregar a máquina fotográfica. Agora era possível tirar fotos no calor da batalha, se a censura militar permitisse, e registrar closes bem cuidados das vítimas civis e dos soldados exauridos e enfarruscados. A Guerra Civil Espanhola (1936- 39) foi a primeira guerra testemunhada (“coberta”) no sentido moderno: por um corpo de fotógrafos profissionais nas linhas de frente e nas cidades sob bombardeio, cujo trabalho era imediatamente visto nos jornais e nas revistas da Espanha e do exterior. A guerra que os Estados Unidos travaram no Vietnã, a primeira a ser testemunhada dia-a-dia pelas câmeras de tevê, apresentou à população civil americana a nova tele-intimidade com a morte e a destruição. Desde então, batalhas e massacres filmados no momento em que se desenrolam tornaram-se um ingrediente rotineiro do fluxo incessante de entretenimento televisivo doméstico. Criar, para determinado conflito, um nicho na consciência de espectadores expostos a dramas de toda parte do mundo demanda uma difusão e re-difusão diária de imagens filmadas desse conflito. A compreensão da guerra entre pessoas que não vivenciaram uma guerra é, agora, sobretudo um produto do impacto dessas imagens.


Algo se torna real — para quem está longe, acompanhando o fato em forma de “notícia” — ao ser fotografado. Mas, não raro, uma catástrofe vivenciada se assemelhará, de maneira misteriosa, à sua representação. O atentado ao World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001 foi classificado de “irreal”, “surreal”, “como um filme”, em muitos dos primeiros depoimentos das pessoas que escaparam das torres ou viram o desastre de perto. (Após quatro décadas de caríssimos filmes de catástrofe produzidos em Hollywood, “como um filme” parece haver substituído a maneira pela qual os sobreviventes de uma catástrofe exprimiam o caráter a curto prazo inassimilável daquilo que haviam sofrido: “Foi como um sonho”.)

O fluxo incessante de imagens (televisão, vídeo, cinema) constitui o nosso meio circundante, mas, quando se trata de recordar, a fotografia fere mais fundo. A memória congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de informação, a fotografia oferece um modo rápido de apreender algo e uma forma compacta de memorizá-lo. A foto é como uma citação ou uma máxima ou provérbio. Cada um de nós estoca, na mente, centenas de fotos, que podem ser recuperadas instantaneamente. Mencione a mais famosa foto tirada na Guerra Civil Espanhola, a do soldado republicano “alvejado” pela câmera de Robert Capa no mesmo instante em que é atingido por uma bala inimiga, e quase todos que ouviram falar dessa guerra poderão evocar a imagem granulada em preto-e-branco de um homem de camisa branca, com as mangas arregaçadas, tombando para trás na beira de uma colina, o braço direito lançado para trás enquanto a mão solta o rifle; ele está prestes a cair, morto, sobre a própria sombra.

É uma imagem chocante, e esta é a questão. Recrutadas como parte do jornalismo, contava-se com as imagens para atrair a atenção, o espanto, a surpresa. Como dizia o antigo lema da revista Paris Match, fundada em 1949: “O peso das palavras, o choque das fotos”. A caçada de imagens mais dramáticas (como, muitas vezes, são definidas) orienta o trabalho fotográfico e constitui uma parte da normalidade de uma cultura em que o choque se tornou um estímulo primordial de consumo e uma fonte de valor. “A beleza será convulsiva, ou não será”, proclamou André Breton. Ele chamou esse ideal estético de “surrealista” mas, numa cultura radicalmente renovada pela ascendência de valores mercantis, pedir que as imagens abalem, clamem, despertem parece antes um realismo elementar, além de bom senso para negócios. De que outro modo se pode obter atenção para um produto ou uma obra de arte? De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe uma incessante exposição a imagens e uma excessiva exposição a um punhado de imagens vistas e revistas muitas vezes? A imagem como choque e a imagem como clichê são dois aspectos da mesma presença. Sessenta e cinco anos atrás, todas as fotos eram novidades, em certa medida. (Para Woolf — que, aliás, apareceu na capa da revista Time em 1937 —, seria inconcebível que um dia seu rosto viesse a ser uma imagem muito reproduzida em camisetas, canecas de café, pastas escolares, ímãs de geladeira, mouse pads.) Fotos de atrocidade eram raras no inverno de 1936-37: a representação dos horrores da guerra nas fotos que Woolf evoca em Três guinéus parecia quase um conhecimento clandestino. Nossa situação é completamente distinta. A imagem ultra-familiar, ultra-celebrada — de agonia, de ruína — constitui um elemento inevitável do nosso conhecimento da guerra mediado pela câmera.



continua pág 64...


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Leia também:

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)




"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."



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Susan Sontag - Entrevista completa para a revista Rolling Stone







"... conversar me dá a chance de saber o que penso..."




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