sábado, 6 de junho de 2020

Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória da Galinha e do Ovo... A estória da galinha (01)

Luaanda... Estória da Galinha e do Ovo


Luandino Vieira





Para Amorim e sua ngoma:
sonoros corações da nossa terra.



A estória da galinha e do ovo. Estes casos passaram na musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda. 

Foi na hora das quatro horas.

Assim como, às vezes, dos lados onde o sol fimba∗ no mar, uma pequena e gorda nuvem negra aparece para correr no céu azul e, na corrida, começa a ficar grande, a estender braços para todos os lados, esses braços a ficarem outros braços e esses ainda outros mais finos, já não tão negros, e todo esse apressado caminhar da nuvem no céu parece os ramos de muitas folhas de uma mulemba velha, com barbas e tudo, as folhas de muitas cores, algumas secas com o colorido que o sol lhes põe e, no fim mesmo, já ninguém que sabe como nasceram, onde começaram, onde acabam essas malucas filhas da nuvem correndo sobre a cidade, largando água pesada e quente que traziam, rindo compridos e tortos relâmpagos, falando a voz grossa de seus trovões, assim, nessa tarde calma, começou a confusão.

Sô Zé da quitanda tinha visto passar nga Zefa rebocando miúdo Beto e avisando para não adiantar falar mentira, senão ia-lhe pôr mesmo jindungo na língua. Mas o monandengue refilava, repetia:

— Juro, sangue de Cristo! Vi-lhe bem, mamã, é a Cabíri!...

Falava verdade como todas as vizinhas viram bem, uma gorda galinha de pequenas penas brancas e pretas, mirando toda a gente, desconfiada, debaixo do cesto ao contrário onde estava presa. Era essa a razão dos insultos que nga Zefa tinha posto cm Bina, chamando-lhe ladrona, feiticeira, queria lhe roubar ainda a galinha e mesmo que a barriga da vizinha já se via, com o mona lá dentro, adiantaram pelejar.

Miúdo Xico é que descobriu, andava na brincadeira com Beto, seu mais novo, fazendo essas partidas vavô Petelu tinha-lhes ensinado, de imitar as falas dos animais e baralhar-lhes e quando vieram no quintal de mamã Bina pararam admirados. A senhora não tinha criação, como é ouvia-se a voz dela, pi, pi, pi, chamar galinha, o barulho do milho a cair no chão varrido? Mas Beto lembrou os casos já antigos, as palavras da mãe queixando no pai quando, sete horas, estava voltar do serviço:

— Rebento-lhe as fuças, João! Está ensinar a galinha a pôr lá!

Miguel João desculpava sempre, dizia a senhora andava assim de barriga, você sabe, às vezes é só essas manias as mulheres têm, não adianta fazer confusão, se a galinha volta sempre na nossa capoeira e os ovos você é que apanha... Mas nga Zefa não ficava satisfeita. Arreganhava o homem era um mole e jurava se a atrevida tocava na galinha ia passar luta.

— Deixa, Zefa, pópilas! — apaziguava Miguel. — A senhora está concebida então, homem dela preso e você ainda quer pelejar? Não tens razão!

Por isso, todos os dias, Zefa vigiava embora sua galinha, via-lhe avançar pela areia, ciscando, esgaravatando a procurar os bichos de comer, mas, no fim, o caminho era sempre o mesmo, parecia tinha-lhe posto feitiço: no meio de duas aduelas caídas, a Cabíri entrava no quintal da vizinha e Zefa via-lhe lá debicando, satisfeita, na sombra das frescas mandioqueiras, muitas vezes Bina até dava-lhe milho ou massambala∗. Zefa só via os bagos cair no chão e a galinha primeiro a olhar, banzada, na porta da cubata onde estava sair essa comida; depois começava apanhar, grão a grão, sem depressa, parecia sabia mesmo não tinha mais bicho ali no quintal para disputar os milhos com ela. Isso nga Zefa não refilava. Mesmo que no coração tinha medo, a galinha ia se habituar lá, pensava o bicho comia bem e, afinal, o ovo vinha-lhe pôr de manhã na capoeira pequena do fundo do quintal dela...

Mas, nessa tarde, o azar saiu. Durante toda a manhã, Cabíri andou a passear no quintal, na rua, na sombra, no sol, bico aberto, sacudindo a cabeça ora num lado ora noutro, cantando pequeno na garganta, mas não pôs o ovo dela. Parecia estava ainda procurar melhor sítio. Nga Zefa abriu a porta da capoeira, arranjou o ninho com jeito, foi mesmo pôr lá outro ovo, mas nada. A galinha queria lhe fazer pouco, os olhos dela, pequenos e amarelos, xucululavam na dona, a garganta do bicho cantava, dizendo:

... ngala ngó ku kakela∗ 

ká... ká... ká... kakela, kakela...


E assim, quando miúdo Beto veio lhe chamar e falou a Cabíri estava presa debaixo dum cesto na cubata de nga Bina e ele e Xico viram a senhora mesmo dar milho, nga Zefa já sabia: a sacrista da galinha tinha posto o ovo no quintal da vizinha. Saiu, o corpo magro curvado, a raiva que andava guardar muito tempo a trepar na língua, e sô Zé da quitanda ficou na porta a espiar, via-se bem a zanga na cara da mulher.

Passou luta de arranhar, segurar cabelos, insultos de ladrona, cabra, feiticeira. Xico e Beto esquivaram num canto e só quando as vizinhas desapartaram é que saíram. A Cabíri estava tapada pelo cesto grande mas lhe deixava ver parecia era um preso no meio das grades. Olhava todas as pessoas ali juntas a falar, os olhos pequenos, redondos e quietos, o bico já fechado. Perto dela, em cima de capim posto de propósito, um bonito ovo branco brilhava parecia ainda estava quente, metia raiva em nga Zefa. A discussão não parava mais. As vizinhas tinham separado as lutadoras e, agora, no meio da roda das pessoas que Xico e Beto, teimosos e curiosos, queriam furar, discutiam os casos.

Nga Zefa, as mãos na cintura, estendia o corpo magro, cheio de ossos, os olhos brilhavam assanhados, para falar:

— Você pensa eu não te conheço, Bina? Pensas? Com essa cara assim, pareces és uma sonsa, mas a gente sabe!... Ladrona é o que você é!

A vizinha, nova e gorda, esfregava a mão larga na barriga inchada, a cara abria num sorriso, dizia, calma, nas outras:

— Ai, vejam só! Está-me disparatar ainda! Vieste na minha casa, entraste no meu quintal, quiseste pelejar mesmo! Sukuama! Não tens respeito, então, assim com a barriga, nada?!

— Não vem com essas partes, Bina! Escusas! Querias me roubar a Cabíri e o ovo dela!

— Ih?! Te roubar a Cabíri e o ovo!? Ovo é meu!

Zefa saltou na frente, espetou-lhe o dedo na cara:

— Ovo teu, tuji! A minha galinha é que lhe pôs!

— Pois é, mas pôs-lhe no meu quintal!

Passou um murmúrio de aprovação e desaprovação das vizinhas, toda a gente falou ao mesmo tempo, só velha Bebeca adiantou puxar Zefa no braço, falou sua sabedoria:

— Calma então! A cabeça fala, o coração ouve! Pra quê então, se insultar assim? Todas que estão falar no mesmo tempo, ninguém que percebe mesmo. Fala cada qual, a gente vê quem tem a razão dela. Somos pessoas, sukua’, não somos bichos!

Uma aprovação baixinho reforçou as palavras de vavó e toda a gente ficou esperar. Nga Zefa sentiu a zanga estava-lhe fugir, via a cara das amigas à espera, a barriga saliente de Bina e, para ganhar coragem, chamou o filho:

— Beto, vem ainda!

Depois, desculpando, virou outra vez nas pessoas e falou, atrapalhada:

— É que o monandengue viu...

Devagar, parecia tinha receio das palavras, a mulher de Miguel João falou que muito tempo já estava ver a galinha entrar todos os dias no quintal da outra, já sabia essa confusão ia passar, via bem a vizinha a dar comida na Cabíri para lhe cambular. E, nesse dia — o mona viu mesmo e Xico também —, essa ladrona tinha agarrado a galinha com a mania de dar-lhe milho, pôs-lhe debaixo do cesto para adiantar receber o ovo. A Cabíri era dela, toda a gente sabia e até Bina não negava, o ovo quem lhe pôs foi a Cabíri, portanto o ovo era dela também.

Umas vizinhas abanaram a cabeça que sim, outras que não, uma menina começou ainda a falar no Beto e no Xico, a pôr perguntas, mas vavó mandou-lhes calar a boca.

— Fala então tua conversa, Bina! — disse a velha na rapariga grávida.

— Sukuama! O que é eu preciso dizer mais, vavó? Toda a gente já ouviu mesmo a verdade. Galinha é de Zefa, não lhe quero. Mas então a galinha dela vem no meu quintal, come meu milho, debica minhas mandioquei-ras, dorme na minha sombra, depois põe o ovo aí e o ovo é dela? Sukua’! O ovo foi o meu milho que lhe fez, pópi-las! Se não era eu dar mesmo a comida, a pobre nem que tinha força de cantar... Agora ovo é meu, ovo é meu! No olho!...




continua página 85...


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∗ fimbar — mergulhar na água.
∗ massambala — sorgo; grama.
∗ ngala ngó ku kakela — estava apenas a cacarejar.


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José Luandino Vieira -

Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.

As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.

E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).

Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.



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Resenha - Luuanda






a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)




Luuanda 
Estórias 

Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 3963. 

1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964. 
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares). 
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976. 
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977. 
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.

— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita           em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964. 
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965. 
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou,              1968. 


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