sexta-feira, 19 de junho de 2020

Pedagogia do Oprimido - 3. A dialogicidade... A investigação dos temas geradores e sua metodologia

Paulo Freire






“educação como prática da liberdade”:

alfabetizar é conscientizar 



AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



3. A dialogicidade – essência da educação 
como prática da liberdade




A INVESTIGAÇÃO DOS TEMAS GERADORES
E SUA METODOLOGIA




De modo geral, a consciência dominada, não só popular, que não captou ainda a “situação- limite” em sua globalidade, fica na apreensão de suas manifestações periféricas às quais empresta a força inibidora que cabe, contudo, à “situação-limite”. (1)


(1) Esta forma de proceder se observa, não raramente, entre homens de classe média, ainda que diferentemente de como se manifesta entre camponeses. Seu medo da liberdade os leva a assumir mecanismos de defesa e, através de racionalizações, escondem o fundamental, enfatizam o acidental e negam a realidade concreta. Em face de um problema cuja análise remete à visualização da situação - limite", cuja crítica lhes é incômoda, sua tendência é ficar na periferia dos problemas, rechaçando toda tentativa de adentramento no núcleo mesmo da questão. Chegam, inclusive, a irritar-se quando se lhes chama a atenção para algo fundamental que explica o acidental ou o secundário, aos quais estão dando significação primordial.


Este é um fato de importância indiscutível para o investigador da temática ou do “tema gerador”.

A questão fundamental, neste caso, está em que, faltando aos homens uma compreensão crítica da totalidade em que estão, captando-a em pedaços nos quais não reconhecem a interação constituinte da mesma totalidade, não podem conhecê-la. E não o podem porque, para conhecê-la, seria necessário partir do ponto inverso. Isto é, lhes seria indispensável ter antes a visão totalizada do contexto para, em seguida, separarem ou isolarem os elementos ou as parcialidades do contexto, através de cuja cisão voltariam com mais claridade à totalidade analisada.

Este é um esforço que cabe realizar, não apenas na metodologia da investigação temática que advogamos, mas também, na educação problematizadora que defendemos. O esforço de propor aos indivíduos dimensões significativas de sua realidade, cuja análise crítica lhes possibilite reconhecer a interação de suas partes.

Desta maneira, as dimensões significativas que, por sua vez, estão constituídas de partes em interação, ao serem analisadas, devem ser percebidas pelos indivíduos como dimensões da totalidade. Deste modo, a análise crítica de uma dimensão significativo- existencial possibilita aos indivíduos uma nova postura, também crítica, em face das “situações-limites”. A captação e a compreensão da realidade se refazem, ganhando um nível que até então não tinham. Os homens tendem a perceber que sua compreensão e que a “razão” da realidade não estão fora dela, como, por sua vez, ela hão se encontra deles dicotomizada, como se fosse um mundo à parte, misterioso e estranho, que os esmagasse.

Neste sentido é que a investigação do “tema gerador”, que se encontra contido no “universo temático mínimo” (os temas geradores em interação) se realizada por meio de uma metodologia conscientizadora, além de nos possibilitar sua apreensão, insere ou começa a inserir os homens numa forma crítica de pensarem seu mundo.

Na medida, porém, em que, na captação do todo que se oferece à compreensão dos homens, este se lhes apresenta como algo espesso que os envolve e que não chegam a vislumbrar, se faz indispensável que a sua busca se realize através da abstração. Isto não significa a redução do concreto ao abstrato, o que seria negar a sua dialeticidade, mas tê-los como opostos que se dialetizam no ato de pensar.

Na análise de uma situação existencial concreta, “codificada” (2), se verifica exatamente este movimento do pensar.



(2) A codificação de uma situação existencial é a representação desta, com alguns de seus elementos constitutivos, em interação. A descodificação é a análise critica da situação codificada.


A descodificação da situação existencial provoca esta postura normal, que implica num partir
abstratamente até o concreto; que implica numa ida das partes ao todo e numa volta deste às partes, que implica num reconhecimento do sujeito no objeto (a situação existencial concreta) e do objeto como situação em que está o sujeito (3).



(3) O sujeito se reconhece na representação da situação existencial “codificada", ao mesmo tempo em que reconhece nesta, objeto agora de sua reflexão, o seu contorno condicionante em e com que está, com outros sujeitos.


Este movimento de ida e volta, do abstrato ao concreto, que se dá na análise de uma situação codificada, se bem feita a descodificação, conduz à superação da abstração com a percepção crítica do concreto, já agora não mais realidade espessa e pouco vislumbrada.

Realmente, em face de uma situação existencial codificada, (situação desenhada ou fotografada que re - mete, por abstração, ao concreto da realidade existencial), a tendência dos indivíduos é realizar uma espécie de "cisão” na situação, que se lhes apresenta. Esta “cisão”, na prática da descodificação, corresponde à. etapa que chamamos de “descrição da situação”. A cisão da situação figurada possibilita descobrir a interação entre as partes do todo cindido.

Este todo, que é a situação figurada (codificada) e que antes havia sido apreendido difusamente, passa a ganhar significação na medida em que sofre a “cisão” e em que o pensar volta a ele, a partir das dimensões resultantes da “cisão”.

Como, porém, a codificação é a representação de uma situação existencial, a tendência dos indivíduos é dar o passo da representação da situação (codificação) à situação concreta mesma em que e com que se encontram.

Teoricamente, é lícito esperar que os indivíduos passem a comportar-se em face de sua realidade objetiva da mesma forma, do que resulta que deixe de ser ela um beco sem saída para ser o que em verdade é: um desafio ao qual os homens têm que responder.

Em todas as etapas da descodificação, estarão os homens exteriorizando sua visão do mundo, sua forma de pensá-lo, sua percepção fatalista das “situações-limites”, sua percepção estática ou dinâmica da realidade. E nesta forma expressada de pensar o mundo fatalistamente, de pensá-lo dinâmica ou estaticamente, na maneira como realizam seu enfrentamento com o mundo, se encontram envolvidos seus “temas geradores”.

Ainda quando um grupo de indivíduos não chegue a expressar concretamente uma temática geradora, o que pode parecer inexistência de temas, sugere, pelo contrário, a existência de um tema dramático: o tema do silêncio. Sugere uma estrutura constituinte do mutismo ante a força esmagadora de “situações - limites”, em face das quais o óbvio é a adaptação.

É importante reenfatizar que o “tema gerador” não se encontra nos homens isolados da realidade, nem tampouco na realidade separada dos homens. Só pode ser compreendido nas relações homens-mundo.

Investigar o “tema gerador” é investigar, repitamos, o pensar dos homens referido à realidade, é investigar seu atuar sobre a realidade, que é sua práxis.

A metodologia que defendemos exige, por isto mesmo, que, no fluxo da investigação, se façam ambos sujeitos da mesma – os investigadores e os homens do povo que, aparentemente, seriam seu objeto.

Quanto mais assumam os homens uma postura ativa na investigação de sua temática, tanto mais aprofundam a sua tomada de consciência em torno da realidade e, explicitando sua temática significativa, se apropriam dela.

Poderá dizer- se que o fato de sermos homens do povo, tanto quanto os investigadores, sujeitos da busca de sua temática significativa sacrifica a objetividade da investigação. Que os achados já não serão “puros" porque terão sofrido uma interferência intrusa. No caso, em última análise, daqueles que são os maiores interessados – ou devem ser – em sua própria educação.

Isto revela uma consciência ingênua da investigação temática, para a. qual os temas existiriam em sua pureza objetiva e original, fora dos homens, como se fossem coisas.

Os temas, em verdade, existem nos homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos. Um mesmo fato objetivo pode provocar, numa sub-unidade epocal, um conjunto de “temas geradores”, e, noutra, não os mesmos, necessariamente. Há, pois, uma relação entre o fato objetivo, a percepção que dele tenham os homens e os “temas geradores”.

É através dos homens que se expressa a temática significativa e, ao expressar-se, num certo momento, pode já não ser, exatamente, o que antes era, desde que haja mudado sua percepção dos dados objetivos aos quais os temas se acham referidos.

Do ponto de vista do investigador importa, na análise que faz no processo da investigação, detectar o ponto de partida dos homens no seu modo de visualizar a objetividade, verificando se, durante o processo, se observou ou não, alguma transformação no seu modo de perceber a realidade.

A realidade objetiva continua a mesma. Se a percepção dela variou no fluxo da investigação, isto não significa prejudicar em nada sua validade. A temática significativa aparece, de qualquer maneira, com o seu conjunto de dúvidas, de anseios, de esperanças.

É preciso que nos convençamos de que as aspirações, os motivos, as finalidades que se encontram implicitados na temática significativa, são aspirações, finalidades, motivos humanos. Por isto, não estão aí, num certo espaço, como coisas petrificadas, mas estão sendo. São tão histórico quanto os homens. Não podem ser captados fora deles, insistamos.

Captá-los e entendê- los é entender os homens que os encarnam e a realidade a eles referida. Mas, precisamente porque não é possível entendê-los fora dos homens, é preciso que estes também os entendam. A investigação temática se faz, assim, um esforço comum de consciência da realidade e de autoconsciência, que a inscreve como ponto de partida do processo educativo, ou da ação cultural de caráter libertador.




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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido




"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 



Opinião Pernambuco - "50 anos da Pedagogia do Oprimido"





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