Edgar Allan Poe - Contos
Aventuras de Arthur Gordon Pym
Título original: Narrative of A. G. Pym
Publicado em 1837
A Jane Guy era uma bela escuna de cento e oitenta toneladas. Era muito afilada à proa e, com bom tempo, era o veleiro mais rápido que vi até hoje. No entanto, as suas qualidades, como barco próprio para enfrentar o mar, estavam longe de ser tão boas e o seu calado era demasiado grande para o trabalho a que se destinava. Para este trabalho específico, precisa-se, sobretudo, de um navio maior e de um calado relativamente pequeno, isto é, de um navio de trezentas a trezentas e cinquenta toneladas. Deveria estar aparelhado com três-mastros a barca e diferir em todos os aspetos dos barcos que usualmente sulcam os mares do Sul. Seria indispensável que estivesse bem armado, com dez ou doze canhões de calibre doze e dois ou três maiores, com bacamartes de bronze e caixas de munições impermeáveis à água, por cada cesto de gávea. As âncoras e cabos deveriam ser muito mais fortes do que são exigidos por qualquer outro serviço e, além disso, precisaria de uma tripulação numerosa, de pelo menos cinquenta ou sessenta homens fortes. A Jane Guy possuía uma tripulação de trinta e cinco homens, todos bons marinheiros, mas não estava nem bem armada, nem bem equipada, como o desejaria um marinheiro familiarizado com os perigos e as dificuldades do ofício.
O capitão Guy era um cavalheiro de maneiras distintas, com uma notável experiência de todo o comércio do Sul, ao qual tinha consagrado a maior parte da sua vida, mas faltava-lhe a energia e, consequentemente, o espírito indispensável para uma empresa daquele gênero. Era coproprietário do navio em que fazia as suas viagens e tinha carta branca para cruzar os mares do Sul e embarcar a carga que lhe apetecesse. Tinha a bordo, como era hábito naquela espécie de expedições, colares, espelhos, isqueiros de pederneira, machados, machadinhas, serras, enxós, plainas, escopros, goivas, verrumas, limas, raspilhas, martelos, pregos, facas, tesouras, navalhas de barbear, agulhas, linhas, faianças, panos, joias de fantasia e outros artigos do mesmo gênero.
A escuna saíra de Liverpool no dia 10 de julho, passara o Trópico de Câncer a 25, a 20° de longitude Oeste, e a 29 chegara ao Sul, uma das ilhas de Cabo Verde, onde carregou sal e outras provisões necessárias para a viagem. No dia 3 de agosto, deixara Cabo Verde e navegara para Sudoeste, apontando para a costa do Brasil, de forma a atravessar o Equador entre 20° e 30° de longitude Oeste. É a rota habitual seguida pelos navios que vão da Europa para o Cabo da Boa Esperança, ou que vão ainda mais longe até às índias Orientais. Seguindo esta rota, evitam as calmarias e as fortes correntes que existem continuamente na costa da Guiné, de forma que este é o caminho mais curto, apesar de tudo, pois há sempre a certeza de encontrar a seguir ventos de Oeste que levam o navio até ao Cabo. O capitão Guy tencionava fazer a sua primeira escala em Kerguelen, não sei bem porquê. No dia em que fomos recolhidos, a escuna estava em direção ao Cabo de São Roque, a 31° de longitude Oeste, de forma que, quando nos descobriu, é provável que nos tivéssemos desviado pelo menos vinte e cinco graus de Norte para Sul.
A bordo da Jane Guy fomos tratados com todo o cuidado que o nosso estado lamentável exigia. Em cerca de quinze dias, durante os quais navegamos sempre para Sudeste, com bom tempo e bons ventos, Peters e eu restabelecemo-nos completamente das últimas privações e terríveis sofrimentos e, em breve, todo o passado nos apareceu mais como um pesadelo horrível a que o acordar, felizmente, nos tinha arrancado, do que a uma série de acontecimentos ocorridos na realidade. Mais tarde, tive ocasião de verificar que esta espécie de esquecimento parcial, habitualmente se deve a uma transição súbita seja da alegria para a dor, seja o contrário, sendo o poder de esquecer sempre proporcional à energia do contraste. Assim, no meu caso, parecia-me agora impossível realizar o total de desgraças que tinha suportado durante os dias passados no nosso pontão. Conseguimos lembrar-nos dos acontecimentos, mas não das sensações provocadas pelas várias circunstâncias. Tudo o que sei é que, à medida que estes acontecimentos se iam produzindo, eu pensava sempre que a natureza humana era incapaz de suportar uma dor maior.
Durante algumas semanas continuamos a nossa viagem, sem incidentes de grande importância, a não ser os naturais encontros com baleeiros, e mais frequentemente com baleias negras ou baleias brancas, assim chamadas para as distinguir dos cachalotes.
No dia 16 de setembro, como já estávamos perto do Cabo da Boa Esperança, a escuna foi apanhada pelo primeiro temporal desde que saíra de Liverpool. Nestas paragens, mas mais frequentemente a Sul e a Este do promontório (nós estávamos a Oeste), os navegadores têm muitas vezes de lutar contra tempestades do Norte, que sopram com uma fúria terrível. São sempre acompanhadas por vagas enormes e uma das suas características mais perigosas é a mudança repentina do vento, acidente que quase sempre acontece quando a tempestade está no auge. Num dado momento, poderá soprar um furacão de Norte ou Nordeste e no momento a seguir nem a mais leve brisa do mesmo lado, mas a Sudoeste sentir-se-á a tempestade com uma violência incrível. Uma aberta a Sudoeste é o melhor indício desta mudança e os navios têm, assim, oportunidade de tomarem as precauções necessárias.
Eram cerca de seis da manhã, quando chegou o vento, do Norte como era hábito, com rajadas que nenhuma nuvem tinha anunciado. Às oito horas o vento aumentara consideravelmente e fizera abater sobre nós um dos mares mais violentos que jamais vi. As velas tinham sido recolhidas, mas a escuna era terrivelmente fustigada e mostrava a sua incapacidade para aguentar o embate do mar, picando violentamente de proa, cada vez que descia numa onda, erguendo-se a seguir, com a maior dificuldade, para ser de novo engolida por outra onda. Antes do pôr do sol, a aberta que esperávamos com inquietação apareceu a Sudoeste e, uma hora mais tarde, a nossa única vela da proa relingava contra o mastro. Dois minutos depois, e apesar de todas as nossas precauções, tombamos de costado como que por magia e abateu-se sobre nós um tenebroso turbilhão de espuma. Por sorte, a ventania de Sudoeste, não passou de uma rajada momentânea e conseguimos levantar-nos sem perder um único mastro. O mar muito agitado ainda nos causou algumas horas de inquietação, mas, ao amanhecer, encontrávamo-nos quase com tão bom tempo como antes da tempestade. O capitão Guy disse que tínhamos escapado de boa e que a nossa salvação era quase um milagre.
No dia 13 de outubro, avistamos a Ilha do Príncipe Eduardo, a 46° 53’ de latitude Sul e 37° 46’ de longitude Este. Dois dias depois estávamos perto da Ilha da Possessão e em breve deixávamos para trás as ilhas Grozet a 42° 59’ de latitude Sul e 48° de longitude Este. A 18, atingimos a ilha de Kerguelen ou da Desolação, no Oceano índico do Sul e atracamos em Christmas Harbour, sobre quatro braças de água.
Esta ilha, ou melhor, este grupo de ilhas fica situado a Sudoeste do Cabo da Boa Esperança, a uma distância de cerca de 800 léguas. Foi descoberta em 1772 pelo barão de Kergulel ou Kerguelel, um francês que, julgando que aquele pedaço de terra fazia parte de um vasto continente ao Sul, de regresso à pátria, fez um relatório nesse sentido, o qual causou grande curiosidade. O governo, tendo conhecimento do caso, enviou o barão no ano seguinte, com o objetivo de confirmar a sua descoberta e foi então que ele se apercebeu do erro. Em 1777, o capitão Cook encontrou o mesmo grupo e deu à ilha principal o nome de Desolação, o qual ela certamente bem merece. No entanto, ao aproximar-se de terra, o navegador poderá convencer-se do contrário, porque as encostas de quase todas as colinas estão cobertas da mais viçosa verdura desde setembro a março. Esta ilusão é causada por uma planta rasteira, semelhante às saxífragas, muito abundante nestas ilhas, crescendo em grandes extensões sobre uma espécie de musgo sem consistência. Excetuando esta planta, poucos mais vestígios de vegetação se encontram, a não ser, junto do porto, um pouco de relva silvestre e dura, alguns líquenes e um arbusto parecido com uma couve, com um gosto amargo e ácido.
A região tem um aspecto montanhoso, embora nenhuma das suas colinas se possa chamar uma montanha. Os cumes estão cobertos de neves eternas. Há vários portos, mas Christmas Harbour é o melhor. É o primeiro que se encontra do lado oriental da ilha, quando se dobra o cabo Francês, que forma o lado Norte e que, pela sua forma particular, serve para distinguir o porto. Projeta-se, na extremidade, num rochedo muito alto, no meio do qual há um buraco, que forma uma espécie de arco natural. A entrada situa-se a 48° 40’ de latitude Sul e 60° 6’ de longitude Este. Passado este ponto, encontra-se um bom porto de abrigo constituído por algumas ilhotas que são uma proteção suficiente contra os ventos de Este. Avançando para Leste a partir deste ancoradouro, encontra-se a Wasp- Bay à entrada do porto. É uma pequena bacia completamente rodeada de terra, dentro da qual se entra sob quatro braças de água e se encontra um lugar para acostar com dez a três braças de água, sobre um fundo de argila compacta. Um navio pode lá permanecer um ano inteiro, apenas com a segunda âncora, sem correr qualquer risco. À entrada de Wasp-Bay, do lado Oeste, corre um riacho que fornece uma água excelente, muito fácil de recolher.
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.
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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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